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O juizado de fora representava, em geral, o primeiro emprego na hierarquia da carreira burocrática para os formados em direito que se interessassem em ingressar no serviço público. Alguns dos oficiais que atuaram na capitania do Mato Grosso tiveram sucesso em suas carreiras nos períodos posteriores ao mandato cumprido na fronteira oeste da América Portuguesa, em especial os quatro últimos magistrados que atuaram a partir de 1775. Destes, três conseguiram ocupar uma vaga no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro ou no do Porto. Dois deles, Diogo Toledo de Lara Ordonhez e Luís Manoel Moura Cabral, destacaram-se na carreira por mais de trinta anos e ultrapassaram o período do vínculo político entre Portugal e Brasil. Isso pode ser um indicativo de que o cargo na Vila do Cuiabá ganhou importância com o passar dos anos, e de que a atuação nessa localidade como juiz de fora significava uma certeza de nomeações futuras para cargos mais importantes.

Constatou-se que foram necessários mais de vinte anos de implantação do cargo para que ele fosse “enraizado” como um polo de poder no cotidiano da vila, e para que seu ocupante pudesse ter maior possibilidade de ação no âmbito jurisdicional e maior rigor na interferência da vida pública de sua população. Contudo, tal fenômeno não ocorreu em Vila Bela da Santíssima Trindade, visto que nessa vila o cargo de juiz de fora existiu por menos de dez anos, e foi extinto para que a ouvidoria fosse transferida para a capital.

As origens dos oficiais a que se teve acesso mostra que havia uma igualdade em número de nascidos no reino e de nascidos na colônia, o que pode significar que atuar na América Portuguesa era um caminho para que os nascidos longe de Portugal atingissem ocupações mais importantes na burocracia letrada do Império Português. Mesmo que, para isso, tivessem que concordar em receber o baixo salário que lhes era destinado, se comparados aos dos ouvidores, aos dos provedores e aos dos intendentes na capitania de Mato Grosso. Apesar dessas possíveis dificuldades financeiras, à exceção de Manuel Fangueiro Frausto, nenhum outro oficial tinha família para prover. Ao menos é o que indica a documentação – o único oficial que pediu auxílio para esposa, filhos, sogra e cunhadas foi o juiz de fora mencionado.

O acúmulo de cargos anexos ao juizado de fora é outro fator crucial para se compreender a importância política desse cargo na capitania de Mato Grosso. Conforme Cristiane Maria Marcelo, Balthazar da Silva Lisboa, juiz de fora da cidade do Rio de Janeiro, não tinha força política nem social para impor suas prerrogativas, por atuar em uma cidade

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recheada de oficiais que ocupavam ofícios mais importantes, como o de ouvidor, o de desembargador e o de vice-rei1. Na Vila do Cuiabá, verifica-se que a situação era bem diferente, uma vez que a distância de aproximadamente um mês de viagem entre Cuiabá e a capital Vila Bela, assim como a falta de outros poderes letrados para concorrerem com o juiz de fora, tornou esse cargo o mais importante no âmbito da justiça na vila.

Além das competências inerentes ao juizado de fora, os ocupantes do cargo ainda tinham sua jurisdição estendida ao atuarem também como juiz dos órfãos, como provedor dos defuntos e ausentes, como provedor dos resíduos e capelas e como provedor das terras e águas minerais, que lhes eram anexos. Essa extensão lhes abria outras parcelas jurisdicionais que iam muito além da aplicação da justiça. Em relação a isso se podem dar dois exemplos: a provedoria das terras e águas minerais permitia ao juiz de fora escolher as pessoas que teriam direito de explorar ouro nos rios e terras de seu termo. Ainda que dependesse da aprovação do governador para efetivar sua escolha, considera-se que o fator da distância entre as vilas diminuía a influência do governador nas maiores decisões dos juízes de fora nesse aspecto. O segundo exemplo vem do acesso dos oficiais letrados aos cofres dos defuntos e ausentes e ao cofre dos órfãos, e a possibilidade de usá-los para realização de empréstimos a instituições e moradores da vila. Essa autonomia ou permitia aos oficiais ajudar aliados e amigos, ou permitia prejudicar opositores e inimigos políticos a partir da autorização ou não de um empréstimo ou do direito de exploração das águas e terras minerais da vila.

Ao mesmo tempo, essa autonomia aliada a diversos outros fatores poderia desencadear conflitos de jurisdição, como aconteceu com Antônio Rodrigues Gaioso. Seu mandato foi marcado por contendas com pessoas dos mais diversos setores da sociedade cuiabana, o que resultou em uma grande agitação política nos primeiros anos de seu mandato, incluindo um atentado, por três dias contra sua casa e diversas cartas de seus opositores que foram enviadas ao governador Luís de Albuquerque Melo Pereira e Cáceres, e chegaram às mãos do Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Matinho de Melo e Castro. Em um segundo momento, já no fim do seu mandato, em 1784, Antônio Rodrigues Gaioso ainda sofreu um atentado contra sua vida, cometido por um taverneiro que havia sido preso pelo juiz de fora, tempos antes.

Porém, o principal adversário do juiz de fora foi o mestre de campo Antônio José Pinto de Figueiredo. O conflito se instaurou logo após a chegada do juiz de fora à Vila do Cuiabá e se estendeu até o fim do mandato deste. Inimigos irreconciliáveis, segundo a

1 MARCELO, C. M. Os embates de um juiz de fora: Balthazar da Silva Lisboa na capitania do Rio de Janeiro

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documentação, os dois oficiais enfrentaram-se abertamente no âmbito público da Vila do Cuiabá. Acredita-se que o que propiciou para que o mestre de campo, assim como outras pessoas da vila, enfrentassem tão abertamente o juiz de fora, foi o fato de o oficial de justiça não haver se envolvido em redes de poder, enquanto que o mestre de campo era o representante, na Vila do Cuiabá, de uma rede de poder que girava em torno do governador, na capital Vila Bela. Por Antônio Rodrigues Gaioso não haver se envolvido em nenhuma rede, tornou-se um alvo fácil para que sofresse a oposição das elites locais da sua localidade de atuação.

Em toda a documentação consultada, identificaram-se os nomes dos maiores inimigos e opositores de Antônio Rodrigues Gaioso, a partir de denúncias e reclamações, entre outros vestígios. Já na relação de documentos produzidos, tanto pelo mestre de campo Antônio José Pinto de Figueiredo quanto por outras pessoas, não foi possível encontrar a menção a outros parceiros do juiz de fora, com exceção de Manuel José, um soldado dragão. O único tipo de apoio recebido pelo juiz de fora se deu no momento em que a câmara municipal indicou seu nome para a ocupação dos cargos de provedor e de ouvidor, em que seus membros pediam em cartas ao Conselho Ultramarino. Mas, mesmo assim, interpreta-se esse apoio como “institucional”, ou seja, os sujeitos que faziam parte da câmara municipal não eram aliados do juiz de fora, mas sim se utilizavam da importância do cargo de juiz de fora para ter uma força maior na oposição à capital Vila Bela e a seu governador, Luís de Albuquerque.

Tendo como referência as conclusões de Maria de Fatima Gouvêa sobre as redes de poder, entende-se que a aliança da câmara municipal com Antônio Rodrigues Gaioso resultaria em uma possibilidade ainda maior da instituição de “influir, de intervir, de desenvolver estratégias, de alterar o ritmo e o rumo de acontecimentos em razão de um dado objetivo ou interesse – ou conjunto de objetivos e interesses”.2 Podemos concluir que os conflitos do juiz de fora Antônio Rodrigues Gaioso com o mestre de campo e com outros membros da elite cuiabana eram puramente jurisdicionais, ou movidos por um abuso de poder, já que não foi possível encontrar qualquer vestígio de envolvimento de Antônio Gaioso com o comercio (lícito ou ilícito), com o contrabando, ou com outra forma de uso do cargo para enriquecimento.

Por quais motivos, então, é possível explicar tamanhas tensões e crises durante o cumprimento de seu mandato? Conforme ressaltado no primeiro capítulo, um dos fatores

2 GOUVEA, M. F. Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português, c. 1680-1730. In:

FRAGOSO, J; GOUVEA, M. F. (orgs.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII, p. 167-168

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preponderantes para possíveis abusos de poder é justamente a existência de uma grande quantidade de poder em mãos inexperientes, já que o juizado de fora era o primeiro cargo no degrau da hierarquia dos cargos de justiça do Império Português. O caso se torna ainda mais latente se levarmos em consideração o fato de a Vila do Cuiabá não oferecer cargos de maior importância, em razão da transferência da ouvidoria, da provedoria e da intendência para Vila Bela até os anos 1760. Esse poder expressivo, nas mãos de um oficial inexperiente poderia, então, tornar possível uma série de conflitos, como as vividas por Antônio Rodrigues Gaioso e seus opositores. Por fim, deve-se salientar que, fruto direto das reformas universitárias implantadas em Coimbra em 1772, Antônio Rodrigues Gaioso ganhou inimizades na Vila ao tentar implantar, a todo custo, as leis régias em contraposição aos costumes anteriormente existentes em Cuiabá.

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