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Se Shakespeare nunca houvesse existido perguntou-se – seria hoje o mundo muito diferente do que é? Será que o progresso da civilização depende dos grandes homens? Seria o destino do ser humano médio melhor hoje do que no tempo dos Faraós? […] Possivelmente o bem-estar da humanidade exige a existência de uma classe de escravos.

(Virginia Woolf, Rumo ao farol)

O trabalho crítico que pudemos levar a cabo – e que teve a intenção de propor uma leitura dos romances Crônica da casa assassinada e O morro dos ventos uivantes – presta-se a confirmar o ensinamento de Todorov (1992), para quem a obra literária é “uma estrutura que pode receber um número indefinido de interpretações” (p. 103), a depender do contexto histórico de seu enunciador.

Talvez nunca se tenha escrito tanto a respeito de Lúcio Cardoso, esse herdeiro do Romantismo que sempre escolheu, como preferência literária, o desenvolvimento de temas atemporais e apartados de qualquer condicionamento histórico – com efeito, a lista é extensa: amor, ódio, inveja, vingança, intolerância, homossexualidade, transcendência, morte etc. Eis a imagem de um escritor que jamais fizera da literatura um diletantismo: criar, para essa alma passionalmente tempestuosa – e, paradoxalmente, filosoficamente lúcida –, corresponde ao átomo da existência, à possibilidade contínua de manter-se vivo e de compreender um mundo defeituoso, imperfeito, humano.

O mesmo pode ser afirmado de Emily Brontë, cuja limitada biografia nos instiga o espírito: como pudera uma jovem escritora – confinada à limitada geografia de Yorkshire – tocar, com sua pena, questões que até hoje (quase dois séculos depois) não são passíveis de ser integralmente desvendadas? Dotada de uma escritura que se caracteriza pela intervenção de seu engenho, Brontë é-nos

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prova de que a limitação carnal não é impedimento para que o espírito alce voos maiores.

A partir do que delimitamos nas páginas anteriores, somos levados a validar a tese levantada no princípio: de fato, soubemos existir um frutífero diálogo entre os romances em estudo e, também a partir de nossa argumentação, constatamos que Lúcio Cardoso permanece um escritor à parte de sua geração, ou seja, a geração introspectiva do romance brasileiro da década de 30.60

É bem verdade que as obras cardosianas, de uma ou outra maneira, acabam por evidenciar discussões – como a hipocrisia do matrimônio – que também são postas em jogo, por exemplo, por escritores contemporâneos, como Lúcia Miguel Pereira e José Geraldo Vieira.61 Não obstante, o empenho cardosiano em apreender as motivações e contradições da alma humana é mais amplo – e singularmente mais pitoresco – e, nesse sentido, sua poética dialoga ainda mais com a de Brontë, que também toma a finitude carnal como inquietação que motiva a reflexão filosófica e, principalmente, a criação estética.

Por que continuamos a ler Crônica da casa assassinada e O morro dos ventos uivantes? Porque – à parte a magnífica criação cênica, que atinge o sublime, e o delineamento incisivo de temas profundos e perenes – os dois textos são histórias bem contadas, que aguçam a curiosidade do leitor e que o obriga a permanecer na leitura das obras, como uma criança que se deslumbra diante de um conto de fadas. Como não se dispor a acompanhar a trajetória de Nina, de Heathcliff, de Nelly e de Valdo? Acompanhamos a vida de cada um desses personagens e ficamos à espera de respostas; no entanto, somente conseguimos colecionar perguntas.

Por fim, vale retomar uma colocação feita pelo próprio Lúcio Cardoso, que, em fevereiro de 1961, ao comentar a respeito da criação literária de William Faulkner, afirmou ser o escritor americano um ícone da literatura de sua época, embora não fosse o que chamou de “marco intransponível”. Segundo Lúcio, “o

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Conferir, a esse respeito, as obras de Santos (2001) e de Camargo (2001).

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A respeito dessa temática, consultar, por exemplo, A mulher que fugiu de Sodoma (1931), de José Geraldo Vieira, e Maria Luísa (1933), de Lúcia Miguel Pereira.

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destino de todo marco, queiram ou não queiram os nossos inteligentes, é ser ultrapassado” (CARDOSO, 2012, p. 486). Permanecemos, pois, à espera de uma nova alma indômita que talvez seja a responsável por superar a profundidade das discussões existenciais postas em cena por esse bravio corcel de fogo.

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