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Por mais que se discuta e se critique o jornalismo, seus procedimentos e produtos, não se pode negar a importância da atividade no processo de constituição do atual. A prática jornalística procura de alguma forma dar conta das experiências do mundo e torná-las disponíveis para todos. Quer isso dizer que, mesmo sendo objeto de muitos questionamentos, o jornalismo é uma importante via de acesso à realidade e um lugar fundamental em que as sociedades contemporâneas partilham e reverberam seus valores e saberes.

O que procuramos esclarecer nesta pesquisa é que, nessa tarefa, o jornalismo se utiliza de um modo próprio de codificação; a atividade lança mão de uma forma específica de apropriação e significação da realidade. Está certo que as regras de redação e procedimento não funcionam como uma lei rígida e indiscutível; e também nos parece claro que os próprios valores do jornalismo, que servem de base para a definição das técnicas de produção jornalística, são sempre objeto de uma constante disputa. Mas como procuramos demonstrar, existe uma série de princípios, partilhados pelos que se ocupam da atividade, que estabelecem qual é a melhor maneira de “traduzir” os acontecimentos; neste trabalho, nos foi possível apontar quais são os valores que determinam o que é o “bom” jornalismo e como ele deve ser realizado.

Conforme esclarece Meditsch (1992), o procedimento jornalístico não é igual ao método científico e – até mesmo pela dinâmica da atividade – nem poderia ser. Mas isso não quer dizer que, por isso, o conhecimento produzido pela atividade seja necessariamente de menor valor. Sabemos que, muitas vezes, até mesmo o próprio senso comum põe em xeque a capacidade do jornalismo produzir conhecimentos confiáveis e livres de constrangimentos. E o que era dúvida acabou se transformando, de certa forma, em uma descrença generalizada, em um tempo de crise dos valores, como o que atravessamos hoje. Dessa maneira, o debate sobre os procedimentos da atividade, e a respeito da verdade dos seus produtos, permanece na ordem do dia. Porém, na nossa avaliação, não é porque não segue os mesmos procedimentos da ciência que a atividade não tem uma contribuição a dar na apropriação e produção do real. Assim como outras formas de conhecimento, o jornalismo revela o mundo de maneira particular, e, desse modo, a atividade pode até mesmo identificar aspectos da realidade que nenhuma outra forma de conhecimento seria capaz de desvelar.

Se é assim, esta investigação procurou analisar as particularidades do discurso jornalístico não para medir a legitimidade e autoridade dessa prática, muito menos para aferir o valor do conhecimento que ela produz. Como vimos, para a nossa perspectiva de análise, se quisermos dar conta da complexa tarefa de compreender o jornalismo enquanto uma forma particular de produção de conhecimento, em vez de avaliar a adequação das técnicas jornalísticas à realidade, é preciso investigar como a atividade atribui sentido aos fenômenos relatados. Neste trabalho, verificamos que um fértil caminho a se tomar é estudar o jornalismo como uma produção de linguagem que segue seus próprios parâmetros e valores.

A pesquisa indicou que as operações presentes na prática cotidiana dos jornalistas não se resumem a seguir as normas para a confeção de um bom lead. Há outras normas de redação e até mesmo de conduta que são, em verdade, efeitos dos princípios, das estruturas epistemológicas em que a atividade está calcada. Há um conjunto de normas e valores que são reflexo das estruturas que sustentam o jornalismo e de sua forma de produzir conhecimento. São sintomas da sua relação com o mundo, de sua maneira específica de apreensão e reprodução dos fenômenos.

Procuramos identificar as manifestações, ou seja, os efeitos desses princípios, para em seguida, fazer uma leitura semiótica dessas regras e de suas premissas. A partir dos dois autores que nos serviram de referência (Joly e Jacques) descrevemos em que medida o jornalismo pode ser considerado uma atividade livre, independente e autônoma; investigamos quais leituras podem ser feitas do método jornalístico; identificamos as condições para a produção e o reconhecimento de confiabilidade aos relatos que são produzidos e também caracterizamos quais relações podem ser estabelecidas entre o jornalismo e a verdade.

André Joly é herdeiro do paradigma que localiza a linguagem no universo da representação. Por isso, vimos que, para o autor, produzir um relato verdadeiro dependeria da intencionalidade e da habilidade dos jornalistas representarem a realidade de maneira apropriada. Sua verdade é uma espécie de verdade de adequação e seria consequência de uma efetivação da linguagem realizada de maneira “correcta”. As regras de redação, e toda a técnica de produção das notícias seriam o resultado, ou seja, a consequência de uma cristalização das maneiras mais adequadas de produção de sentido. Esse arcabouço partilhado por todos constitui o saber-dizer específico do

jornalismo. As normas de codificação da atividade teriam sido construídas, testadas e aprovadas pelos jornalistas, que a cada vez que se utilizam do sistema, o reforçam e reatualizam. Sendo assim, se quiserem e souberem dizer em verdade, os enunciadores têm à disposição a linguagem, um instrumento que construíram justamente para isso: dizer o universo físico e mental.

Vimos também que, na avaliação de Francis Jacques, a verdade não está relacionada a um poder da linguagem representar as experiências do mundo. Para esse autor, esse princípio precisaria ser reconduzido à sua condição histórica, finita e intersubjetiva. Em Jacques, na realidade, é a situação discursiva partilhada entre locutor e alocutário que define a verdade. Por isso, ele afirma que não faz mais o menor sentido falar em verdade fora das relações que se estabelecem, no discurso. E as normas de codificação do jornalismo em vez de representarem a maneira mais correta de se chegar, de fato, à verdade, são o produto da relação interlocutiva que é realizada. O método jornalístico é uma maneira de se estabelecer um padrão que possa ser reconhecido pelo público como verdadeiro. Verdade pretendida pelos jornalistas, verdade reconhecida por aqueles que consomem seus produtos.

Como esta investigação procurou demonstrar, os dois horizontes de análise representam, cada um, uma leitura possível dos valores e procedimentos jornalísticos. Entretanto, não é porque apresentamos e reconhecemos tanto a perspectiva de André Joly quanto a de Francis Jacques como válidas, ou porque não optamos por uma delas e nem mesmo estabelecemos uma classificação hierárquica das duas maneiras de se avaliar o jornalismo, que não reconhecemos que cada uma das perspectivas tem consequências bem diferentes.

Isso porque, por mais que reconheça o papel dos jornalistas na cristalização de uma forma mais “apropriada” de discurso, a primeira leitura acaba naturalizando as normas de codificação, já que as entende, não como o resultado de uma convenção arbitrária, mas como sendo a maneira mais adequada, em si mesma, de se apropriar e significar a realidade. Por outro lado, o horizonte de Jacques causa um outro efeito: a leitura do autor permite a afirmação da opacidade desse processo. Isso porque, a partir da sua perspectiva, podemos concluir que o método jornalístico, assim como os próprios jornalistas (sujeitos do discurso) são produzidos pela situação interlocutiva, e não o contrário. Na interpretação de Jacques, poder-se-ia até falar em história da verdade.

Aquilo que é estabelecido e reconhecido como maneira mais apropriada, as normas de redação e conduta jornalística, não são mais ou menos adequadas à realidade, por natureza, já que dependem e são o resultado da situação discursiva que se estabelece. É exatamente por isso que, com o passar do tempo, essas regras – que não são fixas – se modificam com alguma frequência. Quando a situação é outra, sujeitos e seus métodos também são outros.

Também podemos concluir, como consequência de cada uma das leituras realizadas, que o grau de criticidade daqueles que se utilizam do modo de codificação jornalística varia bastante, de acordo com a perspectiva que se adota. Reforçamos que o que se pretende aqui não é estabelecer uma hierarquia ao valor de verdade das proposições dos dois autores com os quais estamos trabalhando. Mas, se o primeiro horizonte afirma a transparência do método e a adequação do código à realidade, não há motivo para desconfiar ou para analisar criticamente os valores e procedimentos jornalísticos. O resultado é que as regras são aceitas com naturalidade pelos falantes.

Já na interpretação de Jacques, como a verdade depende da relação interlocutiva que se estabelece, e o método é apenas o resultado dessa configuração, a opacidade das regras de redação e conduta pode ser mais facilmente visualizada, e consequentemente, também pode ser mais bem avaliada por quem se ocupa da atividade. Neste horizonte as regras são uma construção humana, o que permite uma avaliação da historicidade do processo de padronização, ou seja, da construção da maneira mais “adequada” de significar.

Acreditamos que aqueles que produzem as notícias devem conhecer com mais clareza quais são as estratégias e procedimentos que são subjacentes à sua prática e que podem estar a serviço de um fazer menos crítico e mais automatizado. Esta investigação quer deixar essa contribuição: a identificação de como o jornalismo produz conhecimento e de como essa estrutura epistemológica particular pode ser analisada. Procuramos dar conta de identificar, pormenorizadamente, a gramática da atividade, seus modos próprios de codificação e também de avaliá-los criticamente.