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Ao analisar as relações existentes entre a literatura e o jornalismo, procuramos entender como a realidade social se constrói através das representações textuais e em que instância se processa a conexão entre a literatura e o jornalismo. Acreditamos que nosso esforço possa contribuir para melhorar a qualidade da leitura e das discussões sobre o que se pensa e se produz nestes campos da representação e do conhecimento.

Neste estudo, observamos as múltiplas dimensões da narrativa literária em contraste com a jornalística que, embora explorando técnicas e recursos narrativos, não consegue se desatar do referencial, que é o que a limita, mas também o que a define.

Antonio Candido (2004) analisando a narrativa naturalista d’ O cortiço afirma que se é para a literatura plasmar a realidade, é melhor deixar a realidade em paz, e assim ele procura um outro olhar para interpretar a obra de Aluísio Azevedo, preferindo vê-la como “um objeto manufaturado com arbítrio soberano” (p. 106). Não poderíamos dizer o mesmo do jornalismo por duas razões, primeiro porque é atributo do jornalismo justamente retrabalhar o aparente caos do mundo e organizá- lo para apresentá-lo aos leitores, e segundo porque a atividade jornalística se constitui a partir de critérios próprios à natureza e à cultura jornalísticas – e também, não se pode esquecer, a partir das exigências e demandas das grandes empresas de comunicação e do mercado editorial.

Se de um lado o jornalismo é tido hoje como um discurso inferior em relação à literatura, numa postura sem dúvida ideológica, de

outro é preciso reconhecer que este olhar sobre a produção jornalística também reflete, a nosso ver, o caráter industrial da grande imprensa que afeta a qualidade dos textos jornalísticos da atualidade. Benjamin percebeu a imprensa como uma usina de informação – uma indústria que capta, processa, analisa, organiza e distribui os fatos do mundo, um instrumento poderoso do alto capitalismo – e nesta perspectiva viu a informação se impor e provocar uma crise na narrativa. Mas, como costumava afirmar Borges, a narrativa vai sempre estar presente, e como nos apontou Santiago, neste estudo, a necessidade de narrar persiste e por isso as narrativas se reinventam e se renovam constantemente.

O jornalismo literário que volta com força nos tempos presentes busca suprir a lacuna deixada pela grande imprensa e retoma a tradição narrativa do fazer jornalístico para aprimorar técnicas, olhares e texto. Entretanto, a prática jornalística está inserida num contexto social que se projeta para além do texto, pois os personagens narrados fazem parte do mundo, e, portanto, questões éticas devem ser sempre consideradas.

A conduta ética e responsável inclui uma atitude transparente para os leitores e para as fontes. As fontes, que podem se tornar os personagens das narrativas jornalísticas, têm o direito de saber com quem e para quem estão falando. Uma reportagem de imersão requer não apenas que os entrevistados sejam alertados sobre os procedimentos do jornalista, como também que estejam de acordo com os mesmos. Como vimos com as críticas recebidas por Barcellos, não bastam boas intenções e justificativas pelas escolhas e atitudes. Neste sentido o texto jornalístico tem mais força que o literário pela possibilidade de interferência concreta na vida das pessoas, principalmente daquelas sobre as quais se narra.

A produção contemporânea na literatura e no jornalismo ressalta a violência dos grandes centros urbanos associada ao

narcotráfico e à corrupção policial. A criminalidade violenta há muito deixou de ser um assunto de exclusivo interesse da justiça ou de autoridades policiais. É um tema que, pela urgência pública e pela relevância política, ocupa a atenção de pensadores, pesquisadores e atores sociais dos mais diversos segmentos. Mas se problematiza questões urgentes e busca transcender o mero factual, a abordagem realista destes problemas – na literatura e no jornalismo – tem sido muitas vezes criticada por se concentrar excessivamente na marginalidade e no mundo do crime, e se apartar de um contexto social e político mais amplo e mais complexo. Pode-se avaliar objetivamente a internacionalização do crime organizado, com suas características político-econômicas particulares e lucrativas, mas não se deve ignorar o impacto na vida das pessoas que vivem esta realidade de perto, permitindo entrever no plano subjetivo a ruptura que se verifica com os valores comunitários e a desestruturação dos laços familiares e das relações interpessoais, e suas consequências no agravamento dos conflitos sociais.

A análise de Abusado, de Caco Barcellos, e de Cidade de

Deus, de Paulo Lins, ilustra as aproximações entre jornalismo e literatura

quando se trata de narrar a realidade, mas também mostra como estas duas linguagens se distanciam no trato do tema. O jornalismo não consegue – e não pode mesmo, por sua natureza – se descolar do referencial, mas pode nele interferir de forma mais incisiva. A literatura, em sua liberdade criativa, consegue retirar do real questões mais contundentes e talvez por isso provocar reflexões agudas, desestabilizando os leitores, sem que isso se encaminhe para transformações efetivas.

Uma questão ainda a ser observada é a das aproximações e distanciamentos entre estas duas práticas e linguagens – se o jornalismo e a literatura guardam tantas afinidades, o que então os diferenciaria? Talvez pudéssemos voltar mais uma vez à questão do olhar que o

narrador coloca sobre os fatos e arriscar dizer que no jornalismo predomina o olhar fragmentado e fugaz do narrador pós-moderno, sua focalização se dá com as lentes do instante e do sensacional; a literatura, quando parte da experiência e busca origens e causas, aprofunda os significados do presente em processo. São atividades que sem dúvida, em muitos planos, convergem, mas ao jornalista que quiser entender e comunicar o mundo para além do imediato é preciso ajustar as lentes e mudar o olhar.

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