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buscamos. O novo nascimento realçado por João Cabral é a lembrança de que o humano é capaz de reconstituir-se e reinventar-se diante dos mais pavorosos sinais de desalento e fracasso.

Nas narrativas do Evangelho de João, percebemos que a fonte-Cristo, tendo como elemento sinalizador da revelação a água, ressalta esse movimento de travessia, que tem como apelo essa reconstituição do ser humano frente aos lugares de morte. Existe ainda, um profundo apelo ao valor intrínseco que Deus dá ao homem por intermédio do amor que se faz doação. A aliança restabelecida nas bodas de Caná, o diálogo entre as diferentes posições e gêneros no contexto da narrativa da Samaritana e Jesus, a cura do paralítico e do cego de nascença que fazem oposição a um sistema legalista que privilegia um determinado grupo, em detrimento da vida no seu mais profundo valor, trazem o símbolo da vida nova restabelecida pelo complexo sentido da travessia humana.

Valendo-nos da construção poética de João Cabral de Melo Neto, pudemos notar que a poesia, quando se refere ao mundo, torna suspensa a simples descrição das coisas, fazendo-nos perceber que a nossa pertença ao mundo, nas mais variadas maneiras, bem como nossa relação com ele, estão marcadas por esse transpor das palavras e das coisas, pois muitas vezes a poesia é um instrumento de libertação que ultrapassa a simples forma da composição poética para dar lugar ao ser pessoal, moral e social que age no mundo e o influência.

A comunicação estabelecida aqui pela obra Morte e vida severina (2007) e pelas narrativas joaninas renova os sons, as cores, as convivências, os lugares, transpõe o interior, pois que, a linguagem poética se torna esse aporte que ao se dirigir ao interior do humano procura trazer novas possibilidades de estar-no-mundo, de confrontá-lo, de conviver com suas mais densas afirmações. A poesia aqui se faz experiência de vida. Coloca-nos, por isso, em diálogo direto com a realidade, realçando valores culturais, questionando os mesmos valores, para assim nos colocar no trabalho intenso que dinamiza a vida e os fatos, os sonhos e a realidade.

Tal dinâmica, verificada durante a elaboração desse trabalho de dissertação, revelou -nos duas formas para pensarmos a vida e a morte: a primeira é a singularidade de cada ser, cada movimento que o homem e a mulher fazem no exercício de sobreviver; a segunda forma é a vida celebrada, a dimensão de memória e esperança que cada movimento suscitou em nós.

Ao nos permitir o movimento de transcender as simples coesões racionais que poderíamos ter sobre o poema Morte e vida severina (2007), buscamos extrair da riqueza de símbolos e experiências do humano uma leitura simbólico-ritual entre o caminho do rio na obra cabralina em questão e a metáfora de Cristo como fonte da vida nas narrativas colacionadas no Evangelho de João. A linguagem poética, sob o enfoque da transdisciplinaridade, possibilitou-nos realçar uma pedagogia litúrgica, na qual podemos ser despertados ao mistério e, assim, cada vez mais, tornarmo-nos parte dele.

A partir do desenvolvimento de uma leitura crítica de Morte e vida severina:

auto de Natal pernambucano (2007), os vários temas tratados, dentre os quais, a condição da água como travessia, fazem-nos, primeiramente pensar a questão batismal cristã que tem esse sentido de passagem para uma vida nova em Cristo, uma vez que será Ele mesmo a fonte a nos alimentar em todo nosso caminho. Cada travessia ou êxodo tem como guia essa fonte.

Nesse sentido, o diálogo entre a Literatura e a Teologia nos ajuda a tomar consciência do mistério celebrado na liturgia cristã, em seu sentido simbólico e metafórico, por meio dos gestos, ritos, iconografias, palavras e cantos, danças. Essa liturgia e também marcada pelo drama da vida humana, nos gestos e ritos que comporta, sendo a vida de cada um de nós representada no mistério celebrado.

Enfim, nesse movimento dialético entre as metáforas do rio e da água, percebemos que nossa travessia ainda está em curso. Significa afirmarmos que as representações, pesquisas, teorias e conceitos aqui apresentados não nos levam a um fechamento concreto do pensamento lógico os temas, mas alcançam o objetivo de – pensando o diálogo entre Literatura e Teologia e, norteados por uma perspectiva teórica transdisciplinar – aproximar a riqueza inscrita na literatura produzida por João Cabral de Melo, aqui representada por Morte e vida severina (2007), e as quatro narrativas escolhidas dentre as que fazem parte do Evangelho de João, o Discípulo amado.

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