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MARCAS IDENTITÁRIAS NA OBRA AUTOBIOGRÁFICA DE VICTORIA OCAMPO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como afirmamos em toda a nossa análise, o trabalho com a escrita de si no âmbito da literatura permite que entrelacemos vários campos de estudo: de um lado os recursos textuais utilizados pelos autores para transpor as fronteiras entra a experiência privada e a narrativa e em outro lado complementar as marcas de pessoalidade intrínseca que este tipo de texto carrega consigo.

Apesar de tratar-se de um gênero textual categorizado como autobiografia é possível perceber, de acordo com o estilo, prática escrita de cada autor e momento de publicação, que o gênero autobiográfico assumiu, com o tempo, diversas funções e disposições diferentes. Isto é, cada texto carrega consigo uma chave estética própria que está relacionada com a experiência narrada e com os próprios sentidos textuais e estéticos que ele possui.

Ao analisarmos o caso da autobiografia de Victória Ocampo optamos por trazer à luz aquilo que, no contexto do próprio texto, salta à vista como uma constante que poderíamos chamar de estilo, além de temáticas recorrentes no curso da narrativa.

O tamanho da obra autobiográfica de Ocampo (originalmente publicada em seis livros, mas recentemente reeditada em três volumes) nos parece natural porque ela, além de tentar alcançar a completude de sua história de vida, como em várias autobiografias mais tradicionais, traz no corpo do seu texto o pensamento narrado em forma de ensaio, além de cartas escritas por ela a outras pessoas e de outros autores direcionadas a ela. Esses recursos nos ajudam a entender melhor a imagem da figura pública que é previamente existente e cada uma desses recursos nos proporciona uma experiência distinta: as reflexões sobre temáticas variadas permitem que acompanhemos os pensamentos da autora em suas reflexões específicas, além de permitir que Victoria deslanche sua erudição ao fazer citações para comprovar suas idéias; já as cartas por ela escritas na época que está sendo posteriormente narrada, nos permitem entrar em contato com uma Victoria que já não corresponde àquela que é a autora do texto, mas à Victoria personagem. Esse recurso é muito utilizado quando a autora vai tratar de um sentimento que ela já não consegue respeitar completamente (a exemplo de seu enamoramento por M. nas cartas à Delfina) e em outros casos para explicar a proximidade e o teor de alguma relação. Nesse segundo caso é comum que haja capítulos com cartas escritas por amigos e célebres autores. A particularidade desse evento se dá no fato de que Ocampo cede, em uma narrativa autobiográfica, a voz para o outro. A voz para aquele

102 que a ajuda a construir a sua imagem pública, que é a instância social. Como os caminhos traçados por Victoria vão desde a intimidade da infância até a sua consolidação como figura pública na sociedade argentina, é comum que os capítulos compostos por cartas de outros escritas para ela estejam mais presentes nos últimos volumes de seu livro. Além disso, tais cartas (de acordo com a autoridade e o perfil de quem as escreve) servem para reafirmar o valor de Ocampo como pessoa e escritora. Um exemplo do segundo caso é quando uma carta escrita por Ocampo é narrada na íntegra em uma obra de Ortega y Gasset.

Além dessas características formais que se combinam funcionalmente para a construção da imagem pública da autora, percebemos também a presença de temáticas recorrentes. Essas temáticas trazem à tona características também publicamente defendidas pela autora em toda a sua vida: a primeira no que se refere à universalidade da ideia de cultura sem afastar-se do pertencimento da ideia de nação, por outro lado a mulher que defende, como mulher, uma posição mais avançada para todas as mulheres, pautada no princípio de equidade de gênero, ainda que de maneira limitada se compararmos com os atuais pensamentos sobre gênero, mas atualiza e avant garde para uma mulher latino-americana em sua época. Todas essas temáticas, no entanto, possuem uma origem em comum: a familiaridade que Victoria tinha com a Europa, com os pensamentos europeus vigentes que vão desde um padrão e ideal estético, até defesas de teses feministas com as ideias de Simone de Beauvoir e Virgínia Wolf, sua grande amiga.

Todas essas características elencadas e ancoradas em suas memórias, como espaço íntimo, mas que ao mesmo tempo torna-se público pela intenção da escrita, confluem para a construção de uma personagem que, inegavelmente, se percebe construída. A consciência da escrita em Ocampo é um dos traços mais interessantes de seu texto: ela sabe a personagem que cria, ainda que esteja atendo-se somente à verdade.

Há algumas outras características relevantes para a organização do texto autobiográfico de Ocampo que por nós não foram analisadas com a precisão merecida por havermos encontrado outros trabalhos que se dedicaram a estudar com mais atenção, como é o caso do bilinguismo, por exemplo.

Como um exemplar de autobiografia, único por seu estilo e por haver sido escrito por uma mulher tão importante como foi Ocampo, esta análise pretende juntar-se a um grupo maior de trabalhos de pesquisadores que buscam compreender os recursos utilizados pelos

103 mais distintos autores para efetuar a difícil passagem da experiência para a narrativa através da escrita. Além de estudar, tendo como elemento de análise a obra de Ocampo, uma possibilidade narrativa dentro de uma gama infinita de configurações que a escrita de si proporciona, justamente por basear-se naquilo que é único e ao mesmo tempo transitório: o sujeito.

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