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A imagem medieval é um objeto de muitas facetas e para interpretá-la podemos nos munir de variados aparatos conceituais, para deste modo ultrapassar uma visão simplificadora da imago no medievo como mera ferramenta de dominação pedagógica. Em nosso primeiro capítulo intencionamos fazer esta discussão, elucidando ao leitor os caminhos tomados nesta pesquisa para alçar mão deste objeto historiográfico. Para tanto, se lançou mão do conceito de imagem-corpo, para destacar a importância presentificadora da imagem medieval, que torna corpóreo realidades intangíveis aos homens, os aproximando e servindo como ponte de conexão para a realidade sacra.

Deste modo, definimos nossos conceitos de análise e o método analítico utilizado para a compreensão do fenômeno iconográfico, o proposto por Erwin Panofsky, explicitando a qualidade da metodologia para se trabalhar com imagens medievais e ao mesmo tempo os seus limites e como os referenciais teóricos auxiliam na superação destes limites.

Tecemos relações entre o mundo visível, invisível e tangível, estabelecendo pontos de contato entre a cultura material e visual, que se torna essencial para a análise da escultura românica, a partir da compreensão das questões que envolvem o site-specific e a composição visual e material dos elementos, sempre vistos em relação ao conjunto que estes ocupam.

Ao falarmos sobre a localidade de uma imagem, nos referimos a isto em duas escalas: micro e macro, sendo a micro sua localização na própria malha arquitetônica, e o macro a sua condição geográfica e temporal. Por isso foi fundamental ao decorrer desta dissertação pensarmos na condição própria da arquitetura românica, e também nas relações políticas estabelecidas nas regiões de Marca, em específico na Marca Galesa.

Ginzburg (1993, p. 13) nos traz um resumo de sua leitura Bakhtiniana sobre o “termo circularidade: entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo”. Em nossa pesquisa, ainda que de modo muito introdutório, foi desejado demonstrar como a circularidade pode ser vista para além da literatura ou do relato individual, inclusive adentrando os locais do poder consagrado. Não se defende deste

modo uma homogeneidade cultural que perpassa por variadas camadas sociais, mas sim um hibridismo entre culturas que são em sua essência de matriz diferenciada, que se encontram materializadas através de um longo processo de circularidade cultural. Há na sociedade diversas formas de diálogos entre os indivíduos, sendo que a arquitetura e a iconografia podem nos servir como mais um modo de detectar como este diálogo se concretiza para além dos termos linguísticos. A Igreja de St, Mary e St. David nos traz um relato deste diálogo em um tempo e espaço específico, o século XII na Marca Galesa.

Para compreender a questão espacial que afeta a iconografia de Kilpeck no século XII, foi feito um retorno ao contexto pré-conquista Normanda, pensando um período de longa duração, onde as relações estabelecidas naquela região já se mostravam conflituosas e fluídas. As modificações trazidas pela corte de William afetaram profundamente a ilha inglesa, sendo a arquitetura e a iconografia mais um reflexo destas modificações, que acompanhavam o modo de governar normando, incorporando em sua malha de domínio a presença do castelo e a igreja de pedra, e permitindo que variados elementos locais se mantivessem nestes novos espaços.

Após estabelecermos este contexto mais amplo das modificações oriundas deste novo poder, nos focamos no contexto próprio de Kilpeck, dentro do que a escassa documentação nos permite aferir. Apesar de ser uma comunidade de poucas centenas de habitantes, se mostrou importante pela questão de defesa e expansão territorial da Marca Galesa.

No subtítulo sobre as Fronteira Culturais, buscamos estabelecer relações entre o País de Gales e a Inglaterra através do testemunho iconográfico. A análise feita dos guerreiros galeses sugere que sua presença na iconografia não é hostil, mas de convivência, pela posição de suas armas e pela região que ocupam no portal. O fato da dedicação da igreja ser exclusiva a um santo galês, diferente do que é hoje em dia, denota a importância da cultura galesa nesta região de domínio normando e também evidencia as liberdades de que gozavam os senhores da Marca em suas administrações.

Em nosso Capítulo 4 buscamos identificar as relações de hibridismo e circularidade cultural na escultura de Kilpeck que incluía variados espaços do prédio: desde o conjunto misular, partindo para o portal, os arcos internos, a janela oeste os

elementos de ornamentação dos contrafortes, englobando praticamente todo o universo visual da igreja de Kilpeck.

Alguns dos elementos de maior destaque de todo este conjunto seriam a Sheela-na-Gig, o Green Man e o grande número de trançados célticos e elementos vegetativos que formam a iconografia da igreja e as mísulas, analisadas em uma outra pesquisa, mas aqui relembradas. Considerando o contexto histórico próprio da Inglaterra, que após a saída romana viu as tribos célticas serem deslocadas para as regiões do País de Gales e da Escócia por conta do avanço saxão, encontrar tantos elementos culturais típicos desta cultura é um denotativo da importância do site-

specific no desenvolvimento artístico.

Símbolos como a Sheela-na-Gig, mesmo que sejam reapropriados como símbolos do pecado carnal, o que não é uma certeza para o caso de Kilpeck e de outras localidades onde, por exemplo, estes ocupam as pias batismais, já é um forte indicativo da circularidade cultural e do método utilizado pela igreja católica em um longo processo de conversão que ainda é perceptível mesmo no século XII. Podemos considerar o espaço arquitetônico e o mundo visual, neste caso, como um local de negociação, onde não vemos necessariamente a imposição violenta e indiscriminada de uma religião dominante sobre outra que se pretende dominada, mas onde a circularidade se mostra via eficiente de contato entre ambas.

Através destas construções visuais, fruto de variados processos culturais, Kilpeck nos traz um discurso geral na iconografia sobre a eterna luta entre o Bem e o Mal, e a salvação ou danação da alma. Porém, este discurso é construído dentro de um almofariz cultural, que engloba elementos célticos, vikings (dentro de um processo de “normandização”), galeses e cristãos.

Para chegarmos a esta leitura geral do discurso iconográfico foi essencial a organização do conjunto iconográfico em um banco de dados através do Access 2016, que permitiu um controle da totalidade das imagens e a esquematização dos ambientes, elementos ornamentados, assim como uma visão clara da mescla alegórica que compõe a igreja, através de uma classificação pré-iconográfica e da identificação da natureza destes elementos, que no caso dos animais foram auxiliados pelo uso dos Bestiários medievais.

A análise das imagens só foi possível dentro da totalidade do conjunto que a cercava, sem fazermos uma separação de cada elemento daqueles que o

circundavam. Deste modo, o significado foi atribuído por meio de uma composição que prezava pelo conjunto e o espaço ocupado por cada imagem dentro do mesmo. Esta questão espacial fica evidenciada por símbolos sacros que são chaves de identificação da santidade dos espaços e da hierarquia que existe entre eles, como a exemplo dos Agnus Dei.

Nossa pesquisa se pretende uma introdução e uma pequena contribuição para os estudos dos processos de circularidade e hibridismo cultural, e para uma compreensão das relações inter-culturais estabelecidas nas regiões da Marca Galesa no período do domínio normando, principalmente, naquelas que podem ser analisadas através do cunho material e iconográfico, de modo que Kilpeck se coloca como um micro-universo, sendo necessário uma expansão do recorte geográfico para as outras regiões que compunham esta Marca além de Herefordshire, deste modo incluindo igrejas de Cheshire e Shropshire. Pesquisas que apontamos para o futuro.