• Nenhum resultado encontrado

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2010 (páginas 197-200)

Esta dissertação centrou-se na análise histórica da produção da realidade corporal feminina pelos médicos da cidade de Fortaleza, a partir da criação, em 1915, da Maternidade Dr. João da Rocha Moreira, primeiro estabelecimento hospitalar no gênero fundado no estado do Ceará.

Orientadas pelo paradigma clínico, segundo o qual as verdades do corpo humano eram produzidas prioritariamente pelo exame detalhado da densidade orgânica, as práticas médicas realizadas nas enfermarias da Maternidade Dr. João Moreira não inauguraram propriamente esta perspectiva epistemológica na capital cearense. Já presente entre os médicos da cidade desde a segunda metade do século XIX, o paradigma clínico de leitura do corpo feminino foi, em realidade, significativamente sistematizado, aprofundado e, em certa medida, difundido entre a população citadina, a partir das atividades da Maternidade Dr. João Moreira.

Desta forma, os médicos da Maternidade Dr. João Moreira não se dedicaram de forma restrita aos atendimentos às pacientes que iam ter às enfermarias do serviço obstétrico, mas agregaram a esta série de atividades um empreendimento pedagógico, a saber, o Curso de Parteiras Diplomadas. A organização de um curso de partos nas dependências da Maternidade Dr. João Moreira apresentava a finalidade de habilitar mulheres a realizar uma assistência domiciliar ao parto orientada pelo saber obstétrico. A iniciativa dos médicos da Maternidade Dr. João Moreira de formar parteiras diplomadas expressou o interesse em espraiar, na capital cearense, modalidades clínicas de cuidar do corpo feminino, em especial quando este experienciava a gestação, o parto e o puerperio. Ademais, as parteiras diplomadas carregavam a dupla incumbência de enfraquecer o prestígio das comadres ou aparadeiras – agentes tradicionais que realizavam majoritariamente as assistências ao nascimento na cidade –, e de propiciar os encontros e fortalecer as confianças entre as mulheres e os médicos da capital.

A realização da investigação trouxe à baila não somente as intenções médicas de vulgarizar o paradigma clínico, mas também seus embaraços, estes últimos advindos de atuações imprevistas das parteiras diplomadas e, em grande medida, de atitudes assumidas pelos próprios médicos. Nesse sentido, flagrou-se a emergência de uma situação de empoderamento da parte das parteiras diplomadas que, livres de qualquer

fiscalização, muitas vezes, não seguiram à risca as recomendações dos médicos: deixaram de executar práticas corporais tidas como necessárias, não solicitaram a presença de um médico, ao mesmo de forma imediata, quando da configuração de estados patológicos, e realizaram procedimentos técnicos propalados como exclusivos dos profissionais da medicina. Da parte de alguns médicos, foi possível perceber também a relativização de alguns rigores que deveriam ser dedicados às parteiras diplomadas, tais como a própria permissão médica da execução de procedimentos técnicos mais delicados, ou ainda o tratamento pouco hierárquico em sessões da agremiação médica local. Certa permissividade dos médicos em relação às parteiras diplomadas não significou, todavia, que aqueles profissionais abriram mão de sua autoridade, fato percebido a partir de algumas reclamações e mesmo desqualificações direcionadas às atuações das parteiras de curso.

Diga-se de passagem, que não apenas nos atendimentos domiciliares as ambiguidades e os conflitos que permearam as relações entre médicos e parteiras diplomadas ganhavam visibilidade, mas também no interior da própria Maternidade Dr. João Moreira. Neste estabelecimento hospitalar, importa ressaltar, prestavam seus serviços não somente médicos, mas igualmente parteiras diplomadas que, de um modo geral, deveriam: realizar integralmente a assistência aos partos naturais, auxiliar os médicos na execução das parturições artificiais, acompanhar os tratamentos das diversas mulheres internadas, e proceder ao registro contínuo dos movimentos do serviço obstétrico. Todavia, apresentando uma jornada de trabalho mais intensa, que incluía ademais o pernoite nas enfermarias do estabelecimento, as parteiras diplomadas passavam não somente mais tempo no serviço obstétrico do que os próprios médicos, como também aí permaneciam longos períodos sem a sua supervisão, donde a possibilidade de efetuarem práticas além das permitidas, principalmente em se tratando de uma situação de urgência. Resta destacar, todavia, que as circunstâncias que propiciaram as parteiras diplomadas a proceder à relativização do poder médico no interior do próprio templo da medicina (a saber, o hospital) foi a mesma utilizada pelos médicos do estabelecimento para culpabilizar estas profissionais pelas ocasionais falhas detectadas nos atendimentos prestados na Maternidade Dr. João Moreira

A atribuição das parteiras diplomadas de arrefecer o prestígio das comadres ou aparadeiras, pejorativamente chamadas pelos médicos de curiosas, por sua vez, pôde ser matizada pelo fato mesmo de que estas últimas puderam ter sido admitidas, embora

sob a condição pouco atingível de serem alfabetizadas, como alunas do Curso de Parteiras Diplomadas da Maternidade Dr. João Moreira. Tal situação trazia à baila a possibilidade não de uma eliminação cabal das práticas corporais carregadas pelas comadres ou aparadeiras, mas de um processo de rearranjo ou reorganização das assistências ao parto empreendidas por estas mulheres, que passariam a incluir, talvez, simultaneamente, noções do paradigma clínico e elementos das matrizes tradicionais de leitura do corpo da mulher – estas últimas mais afeitas aos encontros com as forças sobrenaturais e aos contatos com a fauna e a flora locais. As probabilidades de hibridismos entre perspectivas corporais distintas não decorreram exclusivamente das proximidades e/ou coincidências entre parteiras diplomadas e parteiras “curiosas”, mas advieram igualmente das atuações conjuntas entre estas últimas e os próprios médicos, em especial nos casos em que as comadres ou aparadeiras não conseguiam sozinhas dar conta de um parto dificultoso, solicitando, por isso, a presença de um profissional da medicina. Estas parcerias de ocasião não só entre médicos e “curiosas”, mas também, entre parteiras diplomadas e “curiosas” ou mesmo entre médicos e parteiras diplomadas, culminavam por gerar a circulação imprevista das práticas, impedindo, pois, a afirmação de que agentes tradicionais de cura e profissionais instruídos pela ciência pertencessem, de fato, a continentes opostos e herméticos.

Os registros produzidos acerca dos atendimentos médicos prestados na Maternidade Dr. João Moreira, compostos, de modo geral, por estudos estatísticos e por relatos de casos clínicos, fornecem valiosos detalhes quanto aos modos pelos quais os médicos compreendiam o funcionamento do corpo feminino, em especial durante o momento do parto. Mediante a verificação dos trabalhos musculares do excerto uterino, instituídos como a força motriz da expulsão fetal, os médicos qualificavam os partos entre naturais e artificiais – os primeiros ocorrendo integralmente pelos trabalhos do músculo uterino, os segundos demandando alguma modalidade de intervenção obstétrica para conferir termo ao nascimento. Mediante as análises dos documentos estatísticos, foi possível tomar nota de que, durante as primeiras décadas de atividade da Maternidade Dr. João Moreira, os partos naturais foram preponderantes (mais de 90%), fato que constitui precioso indício da confiança que os médicos depositavam sobre os trabalhos do corpo, ou melhor, da natureza. Tal reverência a uma idéia de natureza corporal amparada na força física esteve presente também, inusitadamente, entre as parturições artificiais ocorridas, embora parcamente, nas enfermarias da Maternidade

Dr. João Moreira. A este respeito, importa ressaltar que as intervenções obstétricas mais comumente empregadas no estabelecimento hospitalar – o fórceps, a versão interna e a embriotomia – exigiam do médico-parteiro um gestual técnico amparado prioritariamente na força muscular que, curiosamente, intentava deliberadamente “imitar”, em maior ou menor medida, os trabalhos musculares do útero. Em outras palavras, esta perspectiva, segundo a qual, se o músculo uterino falhava, devia entrar em cena o músculo do médico, visava promover um estranho paradoxo, a saber, uma parturição artificial mais próxima possível da ação dita da natureza.

Apenas nos anos 1930, o paradigma obstétrico da força física, tributário dos trabalhos de uma natureza inventada como muscular, passou a ser, e muito timidamente, superado pelos médicos da Maternidade Dr. João Moreira. A realização, nas dependências do estabelecimento hospitalar, de duas intervenções obstétricas até então inéditas em território cearense, o método de Delmas e o parto cesáreo, expressaram momentos em que os médicos não mais se orientavam pela natureza muscular do útero (estimulando-a ou substituindo-a, como faziam até então), mas, rompiam com ela. Seja mediante a docilização das fibras uterinas, como ocorria no método de Delmas, seja pelo considerável grau de independência em relação aos trabalhos do útero, tal como se passava durante o parto cesáreo, os médicos da Maternidade Dr. João Moreira procederam à reorganização das distâncias entre natureza e artifício. Este último passava a expressar não mais a “imitação” dos trabalhos da natureza, mas contrariamente, sua superação, seu domínio e, no limite, o desejo de sua dispensa. Todavia, uma vez liberados dos trabalhos da natureza, os médicos conheceram outros desafios, prestaram-se, necessariamente a novos aprendizados e a novos controles. Desta feita, o emprego do método de Delmas e também do parto cesáreo passavam a exigir do médico um gestual técnico que não se manifestava, ao menos exclusivamente, tributário da força física, mas, em contrapartida, mais afeito à habilidade, à precisão e à sutileza. Sob a perspectiva da ciência médica, a história do corpo das mulheres é a mesma história do corpo do médico, de seus gestos, de suas percepções, de suas liberações e de seus controles.

Resta ressaltar, por fim, que a análise do funcionamento interno da Maternidade Dr. João Moreira – em especial, a pequena capacidade de sua estrutura física, e as regras de permanência, entrada e saída das pacientes – levou à constatação que, se o serviço obstétrico estava inquestionavelmente empenhado na promoção bem-sucedida dos

No documento MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2010 (páginas 197-200)

Documentos relacionados