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NA LITERATURA INFANTIL

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quantas vezes já deitado, Mas sem sono, inda acordado Me ponho a considerar Que condão eu pediria, Se uma fada, um belo dia, Me quisesse a mim fadar… (…) E que amanhã acordasse E me achasse… eu sei! me achasse Feito um príncipe, um emir!… Até já, imaginando, Se estão meus olhos fechando… Deixa-me já, já dormir! (“As Fadas” – Antero de Quental)

De acordo com Marisa Lajolo (1986), “[l]iteratura não transmite nada. Cria” (p. 46). Essa essência criadora da literatura se liga muitas vezes às transformações e à busca que empreendemos em reinos e caminhos por ora bastante desconhecidos. As fadas, ao longo do tempo, visitam umas às outras em diferentes lugares: “A literatura, como bem o sabemos, não oferece soluções – apresenta enigmas. É capaz, ao contar uma história, de desdobrar as confabulações infinitas e a íntima simplicidade de um problema moral” (MANGUEL, 2009, p. 54). Nessa infinidade de fadas e caminhos que a literatura apresenta, ela simplesmente é, como nos afirma Maurice Blanchot (2011). Ela desperta para a constante transformação do ser.

As metamoforses são muitas, e entrar no reino das fadas exige deixar o que se é para ser outro, é dor, mudança e busca. Mas apesar das dores e dos mistérios, transitar no reino das fadas é certeza de magia, de encantamento, e principalmente de leveza. Tal como nos permite refletir Calvino (1990), leveza é uma das propostas para novos tempos na literatura e é também o principal atributo das fadas. Um leve que podemos enxergar não somente pelo viés da leveza estrita em si, mas através de uma profundidade que consegue adentrar outra matéria, que por ser leve consegue passar pelo peso, por ter essa outra vibração menos densa da qual as fadas são feitas:

189 Magia feérica, sim, quotidiana – sem distância, pela inspiração, mais que o pleno inflando um deslizamento, a manhã ou tarde, de cisnes de nós; nem além que não se aclimate, das asas desviada e de todos os paraísos, o entusiástico caráter inato da juventude numa profundidade de jornada. (MALLARMÉ, 2010, p. 98)

Nesta dissertação empreendemos uma jornada pelas fadas, que começou com a mitologia céltica, passou pelos contos maravilhosos de origem celta, caminhou pelos contos de fadas clássicos, por livros da literatura infantil mundial e brasileira, com o objetivo de delinear um trabalho que manifestasse todo um possível estudo dessa personagem mítica e clássica.

É evidente que nessas páginas não se esgotou a análise e muito menos as fadas, muitas histórias ficaram de fora e muitas fadas também. Como no conto “O livro de areia” de Borges, um livro infinito é impossível de ser lido e compreendido, e assim como vimos em A fada que tinha ideias, um livro único e repetitivo, mesmo que mágico, com o tempo também se torna bolor. Portanto, a intenção aqui com essa seleção é transformar ideias e colocá-las em palavras que possam ser lidas, mostrando-se múltiplos olhares através de diferentes obras, e abrindo as margens do infinito, que não cabe aqui, mas que caberá – talvez – em outras linhas, sempre nos outros livros por vir, que desejarem ser lidos e que se encontram nas entrelinhas como as fadas em vários contos clássicos. Este estudo visa demonstrar que muitos olhares são possíveis sem preenchê-los somente em um único lugar, pois sempre haverá outros lugares em um constante criar, recriar e voltar.

Este trabalho evidenciou que além das formas conhecidas das fadas, e de suas participações muito parecidas nas narrativas, elas representam o mistério do ser, elas são como algo invisível no visível: “Eu diria que esse é o tema básico de toda mitologia: o de que existe um plano invisível sustentando o visível” (CAMPBELL, 1990, p. 76). As fadas nunca se mostraram inteiramente, mas sempre sustentaram o plano que visitam de alguma forma.

190 Outra característica que fica é a constante ambiguidade das fadas, são boas, mas podem ser maléficas, suas intenções nunca são muito claras e compreensíveis. Segundo Maurice Blanchot:

A ambiguidade diz o ser enquanto que dissimulado, diz que o ser é enquanto que dissimulado. Para que o ser realize a sua obra, é preciso que seja dissimulado: trabalha dissimulando-se, é sempre reservado e preservado pela dissimulação, mas também subtraído a ela. (2011, p. 289).

Essa ambiguidade é essencial para a jornada, não saber o que se espera, mas mesmo assim se lançar ao mundo das fadas, é a coragem que todo herói possui. Acreditar muitas vezes pelos sentidos e pela fé, mesmo quando tudo despenca, é o que nos faz acreditar nas histórias, o que nos faz colocar os ouvidos atentos para ouvir uma, ou os olhos para ler suas linhas. Segundo ainda Blanchot (2011), o tempo da narrativa é um tempo de metamorfoses, essas contínuas mudanças que delineiam o ser, é essencial para as fadas, para que elas possam se mostrar sem se revelarem por completo.

Neste trabalho vimos ainda como essas vozes míticas, folclóricas e clássicas ecoam nas nossas palavras mais atuais. A literatura infantil, ao representar essa figura em suas narrativas, resgatou da mesma forma que reinventou as fadas. Elas ao longo do tempo diminuíram, aumentaram, tomaram rostos de diversas idades, asas, varinhas, e muitas vezes somente o andar misterioso e a linguagem divina, quem sabe ainda possamos escutar essa voz sussurrada de outro lugar.

Fizemos então por aqui uma passagem ao mundo das fadas, entramos por um portal para encontrá-las:

Porque o portal é um lugar de onde eu vejo pela primeira vez a paisagem e, ao mesmo tempo, um espaço de trânsito, uma passagem é um convite para ser atravessado. O portal abarca tanto a perspectiva, como a possibilidade de experiência dentro da paisagem. (MACHADO, 2004, p. 178).

191 Assim como um personagem que se move dentro da estrutura narrativa para alcançar um propósito, essa jornada foi realizada, entrando nessa terra longínqua que nos dá poucas respostas, mas muitas visões e espaços imaginativos. Começamos pela imaginação, de como a criatura fada, além de ser uma personagem literária, foi vista aqui também como uma figura de crenças imaginárias. Seres como fadas, elfos, duendes, bruxas, magos, feiticeiras, gênios, e outros, sempre exerceram fascínio e mistérios em vários povos e culturas, suas histórias nos chegam de muito longe no tempo e espaço, e assim nos abrimos novamente pela natureza e pela voz distante da magia às quais a literatura nos devolve:

A liberdade da abertura voltada para a natureza e suas representações provocará uma espécie de efeito perverso duplo: por um lado, a imagem do homem apaga-se cada vez mais da paisagem natural das águas, florestas e montanhas; por outro, paradoxalmente, o culto à natureza facilita o retorno das divindades elementais mais antropormóficas dos antigos paganismos. (DURAND, 2004, p. 21).

Esperamos que essa abertura ecoe e que ainda produza mistérios, o assombro e o encantamento humanos são chaves essenciais para sair em jornada e em busca, para sonhar desejos, para a travessia da metamorfose da vida. Entrar na Terra-Fada não é fácil, sair e voltar ao lugar onde estávamos também; o tempo confunde, o espaço parece banhado de outra luz, essa luz da qual necessitamos, que a literatura exige para imaginar. No mundo das fadas, como nos diz Tolkien (2015), seremos visitantes, e quem sabe um dia, habitantes. Essa breve visita teve a intenção de se realizar nesta dissertação.

Para finalizar, deixamos uma imagem como reflexão: trata-se da pintura La fata ignorante (A fada ignorante, 1950) de René Magritte, pintor belga surrealista. No quadro temos uma mulher metade luz e metade sombra, o dia está claro ao fundo, porém ela está de costas para a janela, há uma cortina do lado da sombra e uma vela, mas a vela não parece emanar luz, e sim escuridão. A metade do rosto que está iluminada parece ser banhada pela luz do dia claro, mesmo ela estando de costas para ele. Curioso que, pela presença de uma vela, o rosto em sombra deveria estar mais iluminado, mas não, o que acontece é um jogo de luzes contrárias. Há também na

192 pintura uma estranha esfera branca no parapeito da janela, que parece não fazer sentido algum, mas lembra, ainda que vagamente, a bola de cristal de uma cigana, ela faz uma simetria com os globos oculares da mulher e também está em parte banhada pela sombra que a vela irradia. Queria a fada descobrir seu destino? Algo que não sabe, não vê? Ter sua mão e sua face lidas? Algumas representações de mundos mágicos, como de fadas e de elfos, ao serem colocados e ilustrados em uma cosmologia mitológica, muitas vezes eram representados como outras esferas, outros mundos concomitantes ao mundo dos homens. A esfera pode ser associada também à forma perfeita do círculo, ao feminino, bem como à ideia do ciclo da vida, sendo o fim um renascimento, ou melhor, uma metamorfose.

O que desconhece a fada ignorante? Algo está encoberto, como sugere também a cortina. Nunca saberemos o lado que revelamos e o que escondemos. Há partes que mesmo colocadas em luz ainda irão permanecer na sombra, há mistérios de fadas que mesmo que tentemos fornecer uma leitura, mesmo colocados perto da luz de uma vela para serem lidos, não irão se revelar.

Figura 42: La fata ignorante. Rene Magritte (1950).

A fada, obscura claridade, depois de tanto tempo, continua caminhando nas linhas do mistério, do indizível, do irrepresentável, do vazio, das sombras e da luz, mas não é

193 apenas um vazio sem palavras, e sim um vazio que diz, um vazio que se transforma e é conhecimento da mudança, tornando nossos mais profundos desejos em magia, uma sombra-luz que re-vela, para que possamos ainda realizar essa tão profunda jornada em busca desses outros reinos, que as palavras ainda tentam desbravar.

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