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Os dados apresentados neste trabalho apontam, de um lado, para o enorme incremento das responsabilidades dos municípios na oferta da educação básica. Por outro, mostram também a ausência de uma estru- tura de gestão e planejamento capaz de responder aos novos desafios colocados a esses entes federados. Indicam ainda o papel equalizador do Fundeb, mas igualmente acendem um sinal de alerta, dada a grande fra- gilidade institucional do novo fundo. Ao transferir, anualmente, cerca de 26 bilhões de reais – segundo valores de 2012 – em recursos federais e

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estaduais aos municípios, o Fundeb gerou uma situação de dependência extrema para boa parte desses entes, de tal forma que o seu fim, previs- to para 2020, representaria o caos na oferta da educação básica no Brasil. Cabe então, e desde já, o início da construção de um sistema permanen- te de financiamento desse nível de ensino que integre União, estados e municípios. Nesse aspecto, há que se concordar com Lima (2008, p. 252) quando, ao analisar a situação do SUS, afirma que “o federalismo fiscal pragmático brasileiro, aderindo à terminologia proposta por Fiori (1995) [...] não promoveu a expansão do papel do Estado na proteção social e não promoveu a superação das desigualdades regionais”. E acrescenta:

[...] no Brasil, diferentemente de outros países, a Constituição e as leis federais não se traduzem como garantias para o pacto federativo, o que contribui para um clima de incertezas e tensões permanentes. Os canais de negociação intergovernamental também são insuficientes para a criação de mecanismos de coordenação e cooperação que ex- pressem objetivos comuns e diminuam a competição entre os entes federados por recursos financeiros. (LIMA, 2008, p. 252)

A expressão “federalismo fiscal pragmático” é, de fato, bem apli- cada, pois ajuda a entender as peculiaridades da federação brasileira. Um exemplo nesse sentido é o Programa de Ações Articuladas – PAR –, por meio do qual o governo federal busca fomentar o planejamento nos muni- cípios. Embora seja um esforço válido de resposta às dificuldades de gestão e planejamento indicadas neste trabalho, esse tipo de programa tende a re- forçar a atomização das políticas, sem criar os “mecanismos de coordena- ção e cooperação que expressem objetivos comuns”, indicados acima por Lima (2008, p. 252) e tão necessários. Tendem a reforçar também a velha prática de ligação direta entre governo federal e municipal, já observada no estudo de Leal (1975) desde a época colonial. Além disso, esse tipo de programa enquadra-se nas transferências voluntárias do governo federal, as quais, como o nome diz, podem ser extintas a qualquer momento, além de não mobilizarem recursos financeiros significativos (CRUZ, 2014).

Com relação à maior ou menor eficiência na utilização dos re- cursos, pesquisas ainda necessitam ser realizadas, mas há que se atentar para o alerta de Morduchowicz (2011, p. 16) de que

[...] las formas de transferencias intergubernamentales – sobre todo en aquellas cuyo cálculo se basa en la cantidad de alunos – no han promovido procesos de eficiencia en el uso de los recursos destinados a las escuelas estatales.

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Além desse alerta, a própria ausência de uma estrutura adequada de gestão e planejamento por parte dos municípios conspira contra uma potencial melhoria na eficiência da utilização dos recursos.

O estudo ainda chama a atenção para dois outros aspectos im- portantes. O primeiro refere-se à diferença entre a capacidade de fi- nanciamento da educação dos municípios do interior, que dependem basicamente das transferências do Fundeb, e aqueles das capitais. Ao passo que o segundo trata da sobrecarga representada aos municípios pela oferta da educação na zona rural, cujos custos, para se garantir um padrão básico de qualidade (CAQi), estão excessivamente acima dos recursos propiciados pelo Fundeb, o que tem levado ao fechamento de escolas e estimulado o transporte discente às instituições urbanas, com fortes prejuízos à qualidade do ensino, bem como à efetivação de uma política de educação do campo nos termos colocados pelas diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo (BRASIL, 2001). Essa sobrecarga atinge principalmente os municípios das regiões Norte e Nordeste.

Finalmente, não se pode concluir este trabalho sem um breve co- mentário acerca dos efeitos do novo PNE (BRASIL, 2014) em relação aos mu- nicípios. No que se tange às metas quantitativas da educação básica, os im- pactos são evidentes. Somente a obrigatoriedade na faixa de quatro e cinco anos até 2016, somada ao atendimento de 50% na faixa de zero a três anos até 2024, implica um adicional de 4,5 milhões de novas matrículas. Além dessas, há metas relativas à alfabetização e à educação de jovens e adultos, modalidades em que o atendimento é majoritariamente municipal.

As metas relativas à implementação do CAQi, posteriormente do custo aluno-qualidade – CAQ – e da equiparação salarial docente com a remuneração de outros profissionais com nível de formação equivalente implicarão igualmente um esforço significativo, em especial conside- rando a meta de ampliação de professores com formação em nível supe- rior, com particular impacto na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental.

Embora – e felizmente – o PNE aponte a ampliação dos gastos públicos de forma a atingir 10% do PIB até o final do decênio, faltou definir como se dará a divisão dos esforços entre os entes federados para que esse escopo seja atingido. E aqui a questão da brecha fiscal, já comentada no início deste texto, volta a aparecer. Estados e municípios, principalmente estes últimos, já estão trabalhando no limite dos seus esforços para o financiamento da educação, tendo em vista o atual siste- ma tributário, que dificilmente se alterará no próximo decênio, dadas as enormes dificuldades políticas de aprovação de uma reforma tributária. Resta, portanto, à União ficar com mais da metade da receita tributária total e contribuir com cerca de um quinto do total de recursos para o financiamento da educação.

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Assim, se não houver uma mudança significativa no envolvimen- to do governo federal com o financiamento da educação básica, em es- pecial quanto à viabilização do CAQi e do CAQ, inicialmente via Fundeb e posteriormente por meio de um mecanismo permanente que regule o regime de colaboração na oferta educacional, pouca coisa mudará e o PNE 2014-2024 correrá o risco de ser estigmatizado e ter o fim ingló- rio do PNE 2001-2011. Contudo, dado em virtude do consenso nacional sobre a prioridade que deve ser dada à educação, há chances efetivas de mudanças, em especial se houver mobilização social. E, nesse novo contexto em que os municípios responderão por mais de dois terços das matrículas da educação básica, é fundamental pensar em um siste- ma de planejamento educacional que envolva os três entes federados de maneira articulada. Hoje, estados e municípios, quando dialogam, o fazem apenas a fim de resolver os problemas emergenciais e o governo federal tem exercido um papel ainda muito tímido na suplementação financeira. Com o esperado aumento dos recursos federais no âmbito do Fundeb para viabilizar o CAQi/CAQ, um importante passo a ser dado seria pensar a montagem de estruturas regionais, que poderiam se valer das já existentes diretorias/superintendências de ensino das secretarias estaduais que abrigariam técnicos concursados federais, especialistas em planejamento e avaliação do ensino, profissionais que prestariam suporte às escolas estaduais e municipais da respectiva região, na pers- pectiva de construir ações integradas a objetivos comuns.

Parece pouco, mas já seria um bom começo.

reFerÊnCias

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JOSÉ MARCELINO REZENDE PINTO

Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – USP/Ribeirão Preto – e presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação – Fineduca

jmrpinto@ffclrp.usp.br

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