• Nenhum resultado encontrado

Neste estudo buscamos analisar a questão do corpo em algumas obras de Nazareth Pacheco, sem perder de vista o contexto em que foram realizadas. Num primeiro momento, nosso olhar voltou-se ao início de sua trajetória profissional, no final dos anos 1980 e início de 1990, fase em que produziu uma série de objetos considerados herdeiros da tradição Pós-Minimalista, em que não havia qualquer referência explícita ao corpo, senão como metáfora: do sofrimento (via objetos de borracha vulcanizada) e da pele que denota a fragilidade da vida (via peças de látex). Naquele momento, a artista estava mais preocupada em investigar as qualidades intrínsecas dos materiais na produção tridimensional.

Mostramos que a partir de 1992, começou a construir um novo trabalho pautado na história de seu corpo, incorporando materiais ligados aos processos cirúrgicos pelos quais passou na elaboração de objetos e/ou instalações. No desenvolvimento desta pesquisa, sustentamos que tal interesse vinculava-se a uma forte tendência no campo das artes visuais, sobretudo no Brasil, que buscava trazer questões do corpo do artista como elemento central da obra, inscrevendo discursos que, em muitos casos, extrapolavam as fronteiras do particular identificando-se com os problemas mais urgentes da época. Nesse sentido, sua postura, naquele momento, condizia com a dos seus colegas de geração.

Contudo, se no decênio de 1990 parecia sentir-se à vontade em dizer que seu trabalho tinha ligação com experiências vivenciadas no seu próprio corpo, pouco tempo depois, a relação imediata entre vida e obra tornou-se um obstáculo a ser vencido por ela mesma. Passou a lhe incomodar o fato de os críticos constantemente darem ênfase a sua biografia, deixando de abordar aspectos de seu trabalho fora dos limites estreitos de sua história pessoal. A artista, por várias vezes, demonstrou insatisfação com a maneira como sua vida passou a ser frequentemente fundida com a interpretação de suas obras:

Acho perigoso as pessoas não conseguirem separar a minha produção da minha história. A obra tem de se sustentar por si mesma. E isso é possível. Quando mando meus trabalhos para o exterior, onde ninguém sabe o que

eu passei, a produção acaba sendo percebida normalmente. Cada vez mais estou saindo das questões pessoais137.

Ao longo deste estudo, algumas vezes, mencionamos que a obra – mesmo sendo autobiográfica – sempre se distancia daquele que a criou em prol de uma universalidade. Desse modo, por mais que alguns dos materiais utilizados pela artista (agulhas, bisturis, lancetas, frascos de medicamentos, receitas etc.) estejam relacionados à memória de seu corpo, eles não informam nada além de si mesmo, nada além de suas cores, formas ou brilhos. A obra está continuamente à espera de um sentido que somente o espectador poderá lhe dar.

A potencialidade da obra de Nazareth Pacheco não nos remete ao seu corpo cirurgicamente cortado ou às suas cicatrizes, mas ao nosso próprio corpo. A artista soube criar mecanismos que atuam na percepção sensorial e na elaboração mental daquele que observa suas obras. Construiu alternativas que permitem entrever algo além da superfície visível dos objetos de arte por ela criados; algo como a configuração invisível de carnes, vísceras, sangue ou até mesmo a perda fantasmática de um corpo; mediante o medo recalcado em todos nós da dor e da morte. Propôs situações instigantes ao utilizar as particularidades expressivas do próprio material, com a intenção de envolver-nos num jogo de sensações antagônicas: atração x repulsa. À distância, sua obra brilha, atrai o olhar, seduz e induz ao toque. De perto, causa estranheza, repele o tato, provoca aversão, porquanto pode destroçar o corpo.

Esse caráter perverso, já se manifestava de modo sutil nas peças formuladas com pinos de borracha preta vulcanizada que traziam certa semelhança com instrumentos tortura. Fica mais evidente nos objetos do cotidiano que Pacheco produziu valendo-se de materiais cortantes e perfurantes. Criou vestido(s), colar(es), balanço, berço, banco, enfim, “utilitários” que ao invés de embelezar, adornar ou prover conforto ao corpo, representavam um perigo à integridade física. Tal produção pratica a própria impossibilidade... Diante da impossibilidade do contato físico, o espectador – para não correr o risco de ser dilacerado – é encorajado a

137

PACHECO, Nazareth apud FERNANDES, José Carlos. Colares Colados à pele de Nazareth Pacheco. Gazeta do Povo. São Paulo, 25 de jun. 2000, p. 3.

projetar-se mentalmente para os objetos. Imagens corporais mutiladas, retalhadas, abjetas emergem de modo evocativo para preencher o lugar vago do corpo na obra. Assim, o ausente se presentifica na relação dinâmica entre sujeito e objeto.

A radicalidade do trabalho de Nazareth Pacheco com suas lâminas e pontas afiadas cria uma sensação de ameaça, de perigo que nos leva a questionar aquilo que vemos: a vida como violência permanente e a precariedade da condição humana. Referência de nossa própria fragilidade, sua obra demonstra quão vulneráveis somos, nos confronta com a realidade de nosso próprio corpo perecível que sente dor, sangra, sofre, deseja. Por outro lado, contrasta com o corpo perfeito cultuado na sociedade ocidental, (re)construído cirurgicamente.

Nossas análises nos levaram a perceber que a segunda metade da década de 1990 foi um momento de definições na carreira da artista. Nesse período, produziu obras que se tornaram a sua marca registrada, objetos do cotidiano desviados de sua função original que vieram a defini-la como uma das mais prestigiadas artistas de sua geração. A singularidade de sua poética repousa nas contradições, no jogo perverso que opera entre os materiais e as formas que constrói. São esses dados que determinam a particularidade de sua prática artística no âmbito das artes visuais no Brasil.

Apesar de neste estudo termos enfocado as séries de objetos criados até o ano 1999, não constitui impertinência informar que o trabalho de Pacheco vem mantendo coerência ao longo destes anos. O corpo humano continua sendo a diretriz de sua poética. Recentemente, em uma de suas obras a artista introduziu o próprio sangue dentro de pequenos, belos e delicados frascos de vidro, o que demonstra que atração e repulsão ainda têm lugar privilegiado em sua produção até os dias atuais.

6. REFERÊNCIAS

Documentos relacionados