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Capítulo III: O marfim, da Bahia seiscentista ao Brasil colonial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Na Bahia do século XVII, com uma presença maciça de cidadãos lusitanos dos diversos espaços coloniais, a religiosidade européia se adaptou à uma expressividade e irreverência local consequente das mestiçagens ali proliferadas e identificada com o fervor das devoções populares. Os componentes pastoris da imagem do Bom Pastor encontraram nas festividades natalinas a perpetuação do culto ao Menino Jesus, além das tradições dos presépios e de manifestações folclóricas como as pastorinhas. Este Deus Menino preenchido de um culturalismo plural, peculiar às tradições luso-afro-orientais, é uma síntese do imaginário português em seus processos de recriações e resignificações. Do mesmo modo, os desdobramentos sócio-religiosos da Virgem. A Madona que se adaptou às expressões e festejos das religiosidades do recôncavo baiano é o feminino na própria identidade do povo que vê-se identificado com a maternidade e com as águas, que dão cheiro, que lavam e inundam as praias com sons e encantos, os acalantos do mar. As mulheres que compõem as irmandades femininas, a figura típica e folclórica da baiana vendedora de iguarias, e a Nossa Senhora da Conceição que torna-se, na Bahia, a Conceição da Praia, popularmente assim cultuada, traçam as linhas que desenham o feminino no sagrado, nas tradições baianas que vão adiante, se unem à herança africana e se estabelecem como marca da sua gente. A estatuária em marfim apenas observa e testemunha, sutilmente, quão intensa é a veneração pela Virgem e como a santa é amplamente louvada pelo seu povo que sabe que ela prevalece sobre os espaços geográficos, que é atemporal, memorável e por isso Mãe de todos os homens. As curvas e formas arredondadas visíveis na iconografia indo-portuguesa lembram os rios indianos, reconhecidos enquanto divindades femininas, como se vê no mito da deusa Ganga que dá origem ao nome do Rio Ganges. Nas religiosidades afro-baianas o culto às orixás do candomblé conhecidas como yabás, divindades femininas, Oxum – senhora dos rios, da fertilidade e da riqueza, Iemanjá – soberana dos mares, senhora do lar e do amor, Nanã –

que traz o domínio das águas profundas dos lagos, rios e oceanos e Iansã – senhora dos raios e das chuvas, certamente estão dissociados das tradições da Índia e do extremo Oriente, mas terão na venerável presença de Nossa Senhora e das santas católicas, nas suas mais variadas denominações, o núcleo unificador, o elo que circula, vincula e socializa

costumes, crenças e práticas em torno de uma ancestralidade comum, humana e divina e que se realiza no seio da Mãe.

É claro que foi o comércio ultramarino e a exploração de recursos humanos e naturais que fundamentou as aproximações e trocas nos espaços que a pesquisa percorreu. Escravos, ouro ou especiarias, há tempos são contemplados como objetos de trabalhos historiográficos importantes, para falar de diásporas, mercantilização, e colonialismos. O marfim protagonizou este trabalho porque é o testemunho das práticas artísticas e comerciais de povos milenares na África e na Índia, e teve, como os outros dispendiosos produtos, importante papel nos intercâmbios mercantis, portanto, tem também, muito a dizer.

A perspectiva econômica geralmente é o ponto de partida para o entendimento das dinâmicas sociais. Entretanto uma história da religião frente à antropologia histórica aprofunda, esclarece e responde sobre os complexos fenômenos sociais que se tornam visíveis quando se permite dar voz e vez aos mitos e símbolos. Metáforas, códigos e alegorias poderão desempenhar um papel metodológico e/ou epistemológico, essencial numa análise historiográfica. Em qualquer dos modos, fontes como a imaginária goesa em marfim, oferecem um terreno inesgotável para relevantes estudos, em quaisquer das perspectivas escolhidas, sobretudo na contemporaneidade que tem na imagem a mais poderosa das formas de comunicação.

Do viés político muito ainda há que se rever num momento em que o mundo se volta para as questões dos BRICS, bloco político composto por nações de economia emergente, do qual fazem parte Índia e Brasil. Cientistas políticos são unânimes em reconhecer o papel determinante que estes países desempenham enquanto lideranças regionais e partícipes de poder decisivo em fóruns de âmbito mundial. Publicações como da Fundação Getúlio Vargas – Os BRICS e a Ordem Global (vários autores, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009) analisam estes quadros. Quer seja um discurso capitalista ou estratégia de afirmações políticas, as atuais relações internacionais vigentes destes dois grandes líderes continentais estão fundamentadas, sob aspectos históricos, nas relações intracolonias e periféricas do mundo colonial português. Os diálogos estabelecidos nas dimensões culturais do passado colonial são hoje instrumentos para reflexões, análises e estudos pós-coloniais, já que vivenciam em suas realidades consequências e desdobramentos comuns das ações imperialistas. O debate da produção historiográfica desenvolvida após as comemorações dos quinhentos anos dos descobrimentos, tem buscado releituras e atualizações de uma história a ser contada em uníssono, pelos subalternos, longe dos nacionalismos, próximos de um pensamento crítico e universal. Uma revisão histórica das aproximações e circularidades que irmanam estas nações não deve se restringir às dimensões políticas e econômicas, ao contrário, estas deverão trazer subsídios para que os estudos culturais nas

ex-colônias do Império português possibilitem reflexões urgentes para o criticismo pós- colonial e um debate sempre atual, pela promoção humana, sua ancestralidade e sobretudo, sua história social.

Imprescindível mencionar as pesquisas do CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia / UFBA, em Salvador,o trabalho do Centro de Estudos

Africanos da Universidade de Mumbai, o programa homônimo da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Delhi, além do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Goa, na Índia. Todos estes departamentos, além de núcleos de pesquisa de universidades e instituições portuguesas, e de organismos internacionais atuantes na investigação científica e em programas de desenvolvimento social – como o SEPHIS, muito tem feito em ações e projetos, ao divulgar e fomentar a produção acadêmica voltada às discussões, como as que foram propostas por este trabalho. No próprio CEAO estão disponíveis artigos como o de Carlos Ott – Influência arábica na arte baiana, de Ary Guimarães – O pensamento político de Gandhi, de Luís Gonzaga Gomes – Estabelecimento

das primeiras relações entre o Ocidente e o Oriente, de David Kimche – A África negra e o

movimento de solidariedade dos povos afro-asiáticos, assim como as produções sobre a

literatura viva da África e da Ásia, e da presença emblemática do Mahatma Gandhi – a maior personalidade da história da Índia, como modelo de resistência e de valores humanos adotados pela maior agremiação carnavalesca, de militância negra, do carnaval da Bahia, o

Afoxé Filhos de Gandhi.

Finalmente, cabe lembrar, que a Gondwana, o super-continente do sul, do período jurássico, que unia toda a península do subcontinente indiano, a África e a América do Sul, cujo termo foi cunhado pelo geólogo inglês Edward Suess, em 1861, simboliza hoje um espaço de convivências e dialogias, nascidas no mundo lusófono, elo comum de afinidades, aproximações e permanências, que se expressam em mentalidades, no fazer artístico e no anseio de uma sociedade universal onde fronteiras e intercâmbios não precisamente separem ou comercializem, ao contrário, que multipliquem saberes e conduzam a um humanismo libertador, tal como Gandhi vislumbrou, Rabindranath Tagore e Cecília Meireles escreveram e os homens e mulheres negras do carnaval baiano tem dançado; um mundo em movimento.

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