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PARTE 2 O PATROCÍNIO NO SETOR PÚBLICO

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

(...) Os burocratas do século passado eram mais ligeiros. Hoje, para levar adiante um patrocínio cultural, você tem que viver um verdadeiro inferno das exigências burocráticas. Isso é uma das piores distorções do capitalismo. Hoje, os patrocínios culturais não atendem mais aos artistas, mas aos produtores culturais, que são empresários, são mercadores, e isso é uma inversão.93

Cada empresa precisa fazer seu dever de casa e entender qual é o seu objetivo. Ela vai lançar um produto novo? Ela é líder de mercado e precisa defender seu market share? O mercado dela é de massa ou de nicho? O público-alvo dela é bem definido? Respondidas estas e outras perguntas, aí ela pode entender se ela deve atuar no esporte ou na cultura de forma eficaz. Se um destes campos fizer sentido, aí, sim, ela deve vir a definir, por exemplo, em quais eixos ela deve atuar – atleta, clube, competição, evento pontual ou confederação.94

“Quando Heinecken, Rebok e Coca-Cola falam do mundo, não se está apenas vendendo esses produtos. Eles denotam e conotam um movimento mais amplo no qual uma ética específica, valores, conceitos de espaço e de tempo são partilhados por um conjunto de pessoas imersas na modernidade-mundo. Nesse sentido a mídia e as corporações (sobretudo transnacionais) têm um papel que supera a dimensão exclusivamente econômica. Elas se configuram em instâncias de socialização de uma determinada cultura, desempenhando as mesmas funções pedagógicas que a escola possuía no processo de construção nacional. A memória internacional-popular não pode prescindir de instituições que a administrem. Mídia e empresas são agentes preferenciais na sua constituição; elas fornecem aos homens referências culturais para suas identidades. A solidariedade solitária do consumo pode assim integrar o imaginário coletivo mundial, ordenando os indivíduos e os modos de vida de acordo com uma nova pertinência social (Ortiz, p, 144.) 93 Entrevistado 11. 94 Entrevistado 12.

Hoje, no mundo, existe uma valorização cada vez maior da cultura nas sociedades. A ideia do patrocínio cultural como uma das principais ferramentas de comunicação acaba por levar ao centro das discussões o que e como uma empresa deve patrocinar. No caso desse campo de patrocínio, essa questão vai envolver a definição de que categorias, segmentos e tipos serão alvo de interesses. Como vimos antes, diversos fatores vão nortear tais decisões.

Entende-se que uma parcela significativa dos projetos culturais realizados hoje no país é de responsabilidade de grandes empresas públicas, configurando-se como patrocinadores, e de empresas patrocinadas, especializadas na produção de eventos e que possuem reconhecida experiência nessa atividade.

Por meio de festividades, obras de arte, mitos, folclore e manifestações artísticas, a cultura pode ser considerada uma unidade de identidades e de identificações.

O Brasil e as outras nações sul-americanas mostram uma realidade cultural feita de contradições e diversidade. Para Sodré (1999), durante todo um século a partir da Independência, o estabelecimento da identidade nacional, a definição de “brasilidade”, apesar do tom culturalista, tinha de fato grande importância política para uma classe dirigente destinada a perpetuar a nação como um “negócio” não mais do rei de Portugal, mas certamente das oligarquias rurais, em coalizão com os burocratas que administravam o Estado agroexportador. Era preciso ter um perfil identitário com alguma valorização frente à Europa e, ao mesmo tempo, manter em seus lugares

dominados os negros e os índios, esses que efetivamente constituíam as possibilidades concretas de povo.

E o que ocorre de fato é que o mercado de bens culturais, o que se chama de indústria cultural,95 vem perpetuando essa dinâmica, dirigindo-se principalmente a sujeitos consumidores, afastando cada vez mais duas instâncias: a que produz e a que consome.

O conceito de indústria cultural parte da ideia de “caos cultural” e diversificação das experiências culturais. O conteúdo do conceito

não se dá de uma vez – daí o perigo oferecido por essas definições retiradas de alguma frase solta – mas se desdobra ao longo de uma reflexão que envolve a cada passo mais âmbitos, ao mesmo tempo que a argumentação vai-se estreitando e se unindo. (MARTIN- BARBERO, 1997, p. 65.)

Sobre indústria cultural, vale aqui assinalar ser ela fruto da sociedade industrializada, do tipo capitalista, e que ela coloca a existência de uma oposição entre a cultura dita superior e a de massa (TEIXEIRA COELHO, 1988, p. 30).

Por outro lado, com os novos dispositivos de mercado cultural, abre-se a oportunidade para que as classes dirigentes de certo modo corrijam um fracasso histórico: a integração das diferentes camadas sociais (burguesia, classes médias, operários, subempregados) por meio da cultura objetivada, da culturalização. Isso fora impossível no século XIX europeu, em que a produção e o consumo culturais resistiram à sua democratização por meio de discriminações do tipo erudito/popular, sublime/vulgar etc. Hoje, sem conseguir gerar por si própria valores de legitimação, a

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estrutura de economia capitalista volta-se para a esfera da cultura como um meio de fornecer aos diversos grupos sociais modelos universais de comportamento, como um meio de organizar as massas (SODRÉ, 1984).

Lia Calabre chama a atenção para a relevância que vêm tomando os processos culturais, não só pela importância do campo da cultura como elemento na composição da diversidade cultural e da identidade brasileiras, mas também porque entende esses processos como fortes geradores de emprego e renda. Portanto, segundo ela, “os diálogos no campo das políticas culturais devem ocorrer nas mais diversas direções, entre as diferentes direções, entre os tempos e os espaços geográficos, entre as diferentes formas de ver e de fazer” (CALABRE, 2005, p. 18).

Mas, quando a cultura de mercado funciona muito com base numa relação entre patrocinador e patrocinado, ela se restringe a uma motivação econômica do retorno do capital, do lucro (paga-se um valor para se obter retorno de imagem). Há um poder crescente que se opera por meio da política do patrocínio e do exercício da publicidade nas sociedades capitalistas contemporâneas, como forma de comunicar-se com seus públicos.

No caso do setor público, é notável a existência de uma política sempre incentivada pela burocratização dos processos organizacionais das grandes empresas. No interior das gestões públicas da cultura, a expressão cultural acaba recorrentemente apresentando-se como um conjunto de simples recursos de entretenimento. Dessa forma, é comum o patrocínio cultural acabar sendo interpretado como a burocratização da cultura.

Hoje, na democracia ensejada pela organização de mercado, a cultura industrializada se impõe como dispositivo técnico de gestão da vida social, por meio da persuasão e da sedução. Isso porque não se transmite nenhum conhecimento realmente produtivo, se considerarmos que o saber só tem poder transformador quando é acompanhado da possibilidade de produzir.

Contudo, uma evolução na relação entre patrocinador e patrocinado depende cada vez mais de um entendimento claro e pleno entre as demandas, incluindo aí as de ordem burocrática, de cada um desses atores. Para isso, é preciso trazer à discussão, além de análises histórico-culturais e teorias de marketing e comunicação, o fornecimento de dados objetivos da vida prática profissional de um gestor cultural público. Isso abre a possibilidade de se avaliar mais concretamente as situações e os desafios que se colocam.

Ao olhar essas questões, fica bastante claro como a “cultura” e a “sociedade brasileira” são transformadas em objetos de uma máquina operacional cada vez mais reflexo do mercado e dos discursos legitimadores das estratégias de comunicação e

marketing.

Nesse sentido, cabe concluir que, se, por um lado, a gestão cultural pública sofisticou-se no sentido de organizar seus processos – diante do aumento de recursos destinados ao patrocínio, do próprio crescimento dos projetos e da maior profissionalização dos produtores culturais –, por outro, essa gestão parece engessada na própria definição conceitual de patrocínio, em que o que se busca é o retorno de imagem, em conjunto com a realização do projeto.

Na prática, o que se coloca como desafio à gestão do patrocínio cultural na esfera pública de governo é incorporar o princípio público, diferindo assim do setor privado, para o desenvolvimento de suas ações, contemplando novas visões jurídicas, inclusive, reconhecendo a autoridade dos órgãos aos quais suas ações devam estar submetidas ou “fiscalizadas” (AGU, TCU, auditores e Secom), mas não se orientando somente a partir dela.

Ora, em outras palavras, a questão que está presente em todos os gestores de patrocínio entrevistados consiste na necessidade de atuar além das questões de mercado, além das burocracias públicas, transcendendo a preocupação onipresente em torno dos números – de projetos apoiados, de valores desembolsados ou do número de pessoas atingidas –, dos documentos e das certidões jurídicas.

Se isso for viável, talvez seja possível que um projeto cultural bom não seja assim considerado apenas porque foi capaz de inserir-se dentro de um processo de análise ou de contratação. Ele estará dentro do processo porque é bom. E, se o trabalho desenvolveu-se em torno de conceituações, caberia esclarecer que o conceito bom aqui se refere a um projeto cujos aspectos qualitativos estão além do desejo exclusivo da indústria. Algo que vislumbre a possibilidade de aproximar a produção e o consumo, assim como o artista, do processo como um todo.

Assim, o patrocínio à cultura deve de alguma forma promover a inserção da sociedade e de seus públicos-alvo naquilo que é produzido (e oferecido) e, ao mesmo tempo, construir formas de permitir a inserção destes no processo de produção.