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Considerações finais

No documento O processo de gestão pública da miséria (páginas 181-185)

A partir do Consenso de Washington (1989), iniciaram-se uma série de restrições às economias periféricas que, dentro da filosofia “neoliberal”, visavam o controle da inflação e a adoção de uma política monetarista atraente aos grandes investidores internacionais. Hoje, o déficit público é apontado como o principal gerador de inflação, o que só faz aumentar as críticas à rede de proteção social promovida pelo Estado e aos programas públicos sociais que, segundo políticos e economistas “neoliberais”, sobrecarregam os orçamentos públicos, ocasionando endividamentos e inflação. A partir disso, iniciaram-se o corte nos gastos sociais e as reformas no padrão de seguridade social, iniciativas adotadas como as principais estratégias para o controle da inflação e a retomada do crescimento econômico. Somaram-se a esse processo as transformações no mundo da produção, os chamados “ajustes estruturais”, a nova divisão internacional do trabalho, os acordos e as estratégias comerciais internacionais, o processo de despolitização da sociedade civil (que vem sendo convertida, pelos ideólogos do capital, no chamado “terceiro setor”), a ressemantização e banalização de conceitos (que, anteriormente, pertenciam ao repertório político da esquerda), dentre outras transformações. Tudo isso vem construindo a hegemonia “neoliberal” no mundo inteiro.

Os programas sociais governamentais e as políticas públicas nacionais de transferência de renda no combate à fome e à miséria são resultados do ajuste da economia brasileira aos interesses do mercado financeiro internacional. Contudo, esses programas e essas políticas de combate à fome não tiveram grande impacto na diminuição da fome e da miséria. No início do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995), o Brasil possuía 35,08% de “pobres” e 15,19% de indigentes e, em 2002, último ano de seu mandato, 34,34% de “pobres” e 13,95% de indigentes. Houve, durante o governo Fernando Henrique, dessa forma, uma redução de 0,74% da “pobreza” e 1,24% da indigência.91 Essas políticas, portanto, não

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representaram uma diminuição significativa da fome, da miséria e de suas expressões no Brasil.92 Além disso, esses programas e políticas caminharam na contramão da universalização dos direitos sociais de cidadania, uma vez que se fundamentaram no princípio de focalização. Afastado cada vez mais dos compromissos sociais, este Estado transferiu essa responsabilidade para o chamado “terceiro setor. A participação do ideologicamente chamado “terceiro setor” na execução de políticas sociais, além de favorecer a estratégia de focalização e fragmentação dessas políticas, extravia e arrefece a luta por direitos de cidadania.93 Essas políticas nunca foram universais, mas esse processo de focalização, de fragmentação e de privatização das chamadas “questões sociais” (efeitos do capitalismo) têm rompido com o princípio de universalidade e eqüidade. O Estado, pós-Consenso de Washington, vem diminuindo seus custos financeiros com a área social – por meio da focalização, fragmentação e precarização -, eximindo-se de suas responsabilidades sociais no âmbito do direito, da cidadania, repassando-as ao chamado “terceiro setor”. Tudo isso porque os direitos de cidadania tornaram-se um obstáculo ao desenvolvimento econômico. “A proteção social [...] [transformou-se] em ‘custo Brasil’”. (VÉRAS, 1999, p. 35).

Não é sem razão que a cidadania está sendo apropriada pela direita (e pela pseudo- esquerda) e seu conteúdo vem sendo banalizado por empresários, por organizações do ideologicamente chamado “terceiro setor”, pelos meios de comunicação de massa. Como bem destaca Arantes (s.d.), o que vem ocorrendo é uma disputa acerca do sentido das palavras, e uma ressemantização dos seus conteúdos. Isso faz lembrar o romance de George Orwell, “1984”, no qual as palavras eram ressignificadas, esquecidas, e, principalmente, perdiam seu conteúdo histórico, passando a constituir um novo dicionário, o New Language - 10th Dictionary. Já não se busca mais a origem dos conceitos, o seu conteúdo ao longo do processo histórico e, por isso,

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CF. Gráfico 3, página 19.

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[...] de uma hora para outra, “direito” tornou-se privilégio, além do mais em detrimento dos “excluídos”; sujeito de direitos, usuário de serviços; destruição social virou sinônimo progressista de “reforma”; previdência social, um mal-entendido num país de imprevidentes crônicos; sindicalismo, crispação corporativista; “cidadania”, mera participação numa comunidade qualquer; “solidariedade”, filantropia, é claro; bem público, interesses agregados de grupos sociais; desempregado, indivíduo de baixa empregabilidade; “parceria”, sempre que a iniciativa privada então com a iniciativa e o poder público com os fundos etc. (ARANTES, s.d, p.16-17)

A sociedade civil também é outro conceito que foi vulgarizado, deixando de ser uma “arena de lutas”, para transformar-se, no repertório do chamado “terceiro setor”, em um espaço de harmonia e solidariedade, onde o “todos juntos” faz a diferença.

A categoria solidariedade tem sido usurpada e utilizada pelos intelectuais orgânicos do capitalismo “neoliberal” para despolitizar, desmobilizar e domesticar. Nesse contexto, o desafio que a história nos coloca é recuperar a solidariedade em sua dimensão emancipatória, na qual os trabalhadores e os integrantes da superpopulação relativa possam retomar suas condições de sujeitos históricos e serem protagonistas de sua própria libertação. Para ser emancipatória, a energia substancial da solidariedade deve ser o confronto. Caso contrário, sem confronto, a solidariedade produz rendição e alienação, que são, nas palavras de Demo, “efeitos de poder”. “[...] A solidariedade precisa, dialeticamente, compor-se com a noção de confronto[...]”, elaborada e praticada pelos trabalhadores e pela superpopulação relativa, “[...]sem que isso necessariamente desande em violência física [...]”, mas que inclua sempre “[...] a violência da práxis alternativa. (DEMO, 2002, p.13).

Nesses programas e políticas públicas, o acesso à educação muitas vezes se apresentava como a principal condição para a ruptura com o ciclo reprodutor da miséria. Conforme já foi apresentado, a educação é incapaz de resolver, por razão ontológica, os conflitos e as contradições que estão circunscritas na esfera da produção. A fome e a miséria são de origem estrutural, são resultados de uma miséria produzida socialmente.

Cidadania para todos não é possível no interior do capitalismo, assim como acabar com a fome e com a miséria. Por isso, pensamos que as soluções para os efeitos do

capitalismo, entre eles, a fome e a miséria, está na subversão do sistema, e não no interior dele.

Não se quer, com isso, desvalorizar os movimentos sociais que lutam por direitos, por cidadania. A luta por direitos é legítima, desejável e necessária. Contudo, a cidadania, enquanto direitos e deveres limitados às leis burguesas, não produz emancipação. É importante sempre revelar as condições históricas para a prática cidadã, apontar os limites do Estado, da democracia e do sistema capitalista.

Além disso, a redução dos níveis de pobreza e desigualdade não dependem de uma boa administração dos recursos públicos. Por melhor que seja essa gestão, ela é limitada pelas determinações da sociedade, produtora de desigualdades.

Assim, esses programas e políticas públicas de combate à fome e à miséria, sob a bandeira da educação e da cidadania, não eliminaram a fome e a miséria no Brasil.

No documento O processo de gestão pública da miséria (páginas 181-185)

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