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A conceituação da dor [luto] como uma doença estava condenada a falhar, pois não tomava em conta o papel desempenhado pelas representações da morte em mudança na recente história social inglesa. [...] há relevantes diferenças geracionais nos modos como as pessoas expressam as suas emoções. Estas diferenças não são simplesmente modeladas por questões de idade, senão por normas sociais que entram e saem de moda. Uma apreciação da relatividade cultural da emoção também ajuda a explicar as sutis diferenças transculturais da expressão e experiência da perda e da dor (BRADBURY, 1999, p. 180-81, tradução nossa, grifo nosso).

A definição do objeto central deste estudo não foi fácil tarefa, visto que a morte, ainda que seja a experiência essencial à concretização dos demais objetos analisados – a perda e o luto – é, na mesma medida, por eles consubstanciada. Além do que, trata-se de objetos com inúmeras variantes, desde a forma real por realizações físicas, até a forma simbólica em suas expressões subjetivas (mas nem por isso menos realística). Contudo, a vivência em foco é a perda do “outro” em sua mais severa manifestação: quando ocasionada pela falência biofisiológica do organismo humano. Ao fim, a perda se tornou o conceito-chave.

A análise do fenômeno da “perda por morte” se deu pela articulação de artigos de pesquisa que abordavam a morte, a dor e o luto por meio de distintas empirias. A articulação dos artigos originou uma triangulação conceitual e do método que exigiu a consideração global dos resultados, possibilitando a delineação e a interpretação de práticas sociais ativas, e a identificação de tênues “fios condutores” que norteiam atividades mortuárias na GV.

O primeiro artigo, Representações sociais de profissionais da saúde sobre morte, luto e dor, compreende os especialistas como realçados contribuintes à natureza das práticas em e da concepção de saúde atual (ESTEBAN, 2012; GURGEL, 2008; CASTRO, 2007; CAMPELOS, 2006; ELIAS, 2001; BRADBURY, 1999), visto que a Ciência, a partir de fins do século XVIII europeu, passa a dispor de grande força sociopolítica, orientando políticas públicas, definindo conceitos de saúde e normalidade, e a organização sócio-geográfica das cidades. Por esta senda, passa a desempenhar um importante papel de dimensão organizadora de comportamentos das coletividades e indivíduos num período em que, gradativamente, enraízam-se o individualismo e o consumismo (objetificação) como valores indeléveis ou de difícil

modificação no tecido social. Pessoas, profissionais, instituições de saúde e sociedade se veem entrecruzados por representações socialmente compartilhadas que logram orientar a formação em saúde, bem como a sua prática, segundo critérios tecnicistas, normativos e que podem estimular a obstinação terapêutica, a despeito da relevância da democracia e do respeito à pessoa humana apregoados no ocidente, segundo os quais as dimensões ontológica e psicossocial são cruciais à conceituação ampliada de saúde (CÂMARA, et al., 2012).

Verificou-se que no momento da perda do paciente, os especialistas apresentam respostas ao evento ancoradas em aspectos técnico-científicos e metafísicos, visando o “consolo” deles mesmos e dos sobreviventes, gerindo uma concepção híbrida de saúde, pois variáveis do universo consensual interferem nas cognições, orientando uma atuação de acordo com a seguinte orientação: a dor deve ser tratada, a morte, de algum modo, justificada e o luto não lhes cabe considerar, desvelando o distanciamento entre profissionais e clientela. O conjunto representacional apreendido indica que a dor foi medicalizada, e a morte e o luto não integram a grade de responsabilidades das instituições hospitalares, o que é potenciado no Brasil e na América Latina, devido à histórica desestruturação dos sistemas de saúde (GURGEL, 2008; LAGO et al., 2007; GARROS, 2003).

O segundo artigo, Representações sociais sobre a perda em obituários e elogios fúnebres, aponta o emprego dos artefatos mortuários como potentes ritos de passagem e estratégias de enfrentamento da perda. Observou-se que os obituários são majoritariamente empregados pelos católicos e remotamente por espíritas e protestantes, sendo que o emprego articulado de ambos os artefatos é específico do catolicismo. O uso articulado promove a intensificação de suas funções de oficiar, memorizar e dar concretude à perda, de conclamar aos eventos de sepultamento e enterro, e de rito de passagem e estratégia de enfrentamento, representando uma tradição com características religiosas de lida coletiva com a perda. Inferiu-se que, pela mediação dos ritos mortuários, é provocado o ajuntamento de familiares, parentes e amigos num contexto sócio-religioso, passando o grupo a compartilhar a experiência pela transmissão e produção de ideias e expressão de sentimentos, a partir do que reconfigurações sociocognitivas podem ser instiladas e demarcada a mudança na etapa da vida dos enlutados. O estudo revelou a vitalidade dos rituais e

a expressividade e funcionalidade dos costumes e do pensamento fantástico na atualidade, a despeito da concepção corrente de que a contemporaneidade é o lócus do pragmatismo e da objetividade (ELIAS, 2001; BRADBURRY, 1999).

O terceiro artigo, Luto por viuvez: estudo sobre representações sociais em narrativas de enlutados, apresenta o enlutamento como uma experiência multifacetada, de difícil aferição da intensidade e demarcação da duração. As experiências dos sujeitos são marcadas por particularidades, mas, a despeito delas, os enunciados indicam elementos comuns, evidenciando que apesar de variáveis pessoais serem importantes e necessárias à compreensão do evento, elas estão inexoravelmente vinculadas aos ambientes sociais em que são elaboradas e onde ganham sentidos (WACHELKE, 2012; BRADBURY, 1999; JODELET, 1986). Por conseguinte, o evento não pode ser reduzido a aspectos psicocognitivos. O luto é socialmente representado como uma experiência repleta de ambiguidades, antes marcadamente orientadas por ações psicossocialmente fundadas nos costumes do que em proposições científicas.

Considerando-se que a GV é a principal área urbana e industrial do ES, onde há o mais elevado nível de privatização e terceirização de práticas, é provável que as coletividades experimentem mais diretamente a intervenção do estado, e de suas agências, nas questões de vida e de morte, e que não se ocupem tão estreitamente delas, transferindo-as aos especialistas (DESPELDER; STRICKLAND, 2002; ELIAS, 2001; BRADBURY, 1999). Se concordamos que esse panorama tende a gerar desfamiliarização com a perda (ARIÈS, 2003), sem embargo, as análises da tese revelam que as culturas podem se adaptar às demandas dos sujeitos históricos que constroem e transformam o habitus, ratificando a epígrafe desta seção: os resultados indicam que a lida com a perda na Região está num intermezzo, coexistindo formas tradicionais e modernas de ação.

Os homens, grosso modo, têm mais dificuldade que as mulheres para se realinhar à nova vida, muito provavelmente pelas novas responsabilidades que devem assumir como cuidadores. Já as mulheres tendem a se posicionar de maneira menos instável, porquanto são cuidadoras “de ofício”, não sendo raro que acumulem os papéis de cuidador e provedor. Ademais, há que se considerar a relevância dos

direitos civis que têm sido ampliados, o apoio sociocognitivo ofertado pela dedicação mais integral à família e pela religião. Em relação aos gays, notamos a maior preocupação com questões de direitos civis e finanças, muito provavelmente pelos seus direitos civis ainda estarem estabelecendo-se no Brasil. Portanto, homens e mulheres que se posicionam no meio termo entre os papeis sociais de provedor e cuidador parecem elaborar de modo menos instável a transição, a despeito da orientação sexual, idade, natureza e tipo de morte.

Não nos parece incorreto inferir que à lida com a perda mais importam os papéis sociais e as suas prerrogativas, numa perspectiva relacional, do que questões psicocognitivas, dado os imprints sociais (MORIN, 1998) em atividade. A despeito da força do modelo organicista em vigor e mesmo que a perda seja significada como uma experiência pessoal e que deve ser administrada de modo sóbrio34, de longe evoca a formalização comportamental apresentada na pesquisa de Bradbury (1999) com viúvas inglesas: os modelos das fases do luto, aqui, não são consagrados. Ao contrário, os ritos mortuários e os costumes sociais mostraram-se ativos e hábeis à lida com a perda, mesmo que não sejam valorados pelos círculos acadêmicos e pelos profissionais em saúde.

A rigidez do modelo organicista contribui à não ressocialização da experiência da perda, da morte e do luto, e da maior integração, democratização e autonomia dos pacientes e participação dos envolvidos nos processos de cuidados. Por esta razão, quando nos opomos ao emprego das usuais expressões morte domada e morte selvagem, é por preconizarmos serem antes construtos do que verdades em si, visto que sempre se ancoram em contextos sócio-históricos específicos. A morte domada se refere a recortes da história ocidental de menor complexidade civilizatória, cujos contextos sociais são menos expressivamente mediados pelo estado, e que não possuem o nível de tecnologia, especialização de funções, e ideais tão fortemente marcados pelos princípios de democracia, isonomia e autonomia. A morte selvagem, por seu turno, refere-se a um período em que a complexidade do desenvolvimento

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Era previsto o desenvolvimento de uma investigação relacionada ao comportamento e a atitudes durante sepultamentos e velórios, que por razão dos prazos para a conclusão desta pesquisa não nos foi possível desenvolver. Tal estudo nos forneceriam dados de atividades implementadas em loco, o que indiciaria mais claramente a intensidade do controle social, bem como de possíveis mudanças nas práticas mortuárias contemporâneas.

socioestrutural é mais fortemente marcado pela crescente cooptação dos afazeres, outrora a cargo das famílias e dos grupos sociais, pelo estado e instituições por ele referendadas.

Parece-nos que a nostalgia expressa no conceito de morte domada não considera os prós e contras das atividades sociais do período em que se encontra em maior atividade, assim como o de morte selvagem, que não leva adequadamente em conta que as produções da episteme, conjunturalmente, são produzidas por indivíduos em sociedade. Mudanças na lida com os moribundos, idosos e com a saúde são orientadas segundo as premissas do tempo social, e é a partir dele que entendimentos e eventuais aprimoramentos devem ser interpretados e implementados. O balancete sobre perdas e ganhos entre epistemes não é de fácil avaliação (ELIAS, 2001; DURKHEIM, 1983).

Apesar do peso atual da Ciência, talvez em parte pela estrutura da saúde no Brasil não lograr operacionalizar os seus misteres e ideais, os enlutados fortemente ancoram a lida com a perda em concepções de natureza mágico-religiosa que desempenham as funções de estratégia de enfrentamento e de rito de passagem. E, os profissionais em saúde, por seu turno, possivelmente devidos às lacunas na formação acadêmica em tanatologia e à hermética tradição de associar o trato da saúde à medicalização do “corpo vivo” (ESTEBAN, 2012; OLIVEIRA, 2011; GURGEL, 2008; NASCIMENTO, ROAZZI, 2007; LAGO et al., 2007; GARROS, 2003; CAMPELOS, 2006; COUTINHO, TRINDADE, 2006) contribuem à manutenção de práticas em saúde de natureza híbrida: quer organicista quer mágico-religiosa. A insistência em se manter uma atuação profissional refratária às premissas dos contextos sociais é uma realidade há tempos contemplada no conceito de themata (HOULTON citado por LIMA, 2008), que, em sua abordagem na Filosofia da Ciência, desvela que o universo reificado produz modismos. Este postulado foi ratificado pelos estudos em RS de Oliveira (2011), Nascimento e Roazzi (2007), Bradbury (1999) e Sá (1998).

Consoante o mosaico de resultados obtidos, apreendemos como RS da perda por morte um conjunto de entendimentos que orientam práticas em saúde que são técnico-científicas quando se referem ao “corpo vivo” e que são trespassadas por

elementos do universo consensual (notadamente religioso) nas situações limítrofes de morte e luto. Noutros termos, a RS norteia atividades antitéticas entre os universos reificado e consensual, “até certo ponto”, no processo de cuidados, visto que ambos os universos (guardadas as devidas proporções), equivalentemente estão impregnados por elementos “não científicos” em contextos extremos e por “científicos” quando envolvem a possibilidade, real ou suposta, de cura ou amenização do sofrimento. Essa assertiva ratifica a compreensão sociológica de Despelder e Strickland (2002) de haver, contemporaneamente, um ativo jogo sociocognitivo de aceitação e de negação da morte. A conveniência dos atores sociais se torna, por assim dizer, a medida de todas as coisas.

Moveu-se o tempo, mudaram-se as estações, seguindo o senso comum em sua sempre “primavera” de produções e a Ciência num “inverno” de reflexões que lhe resulta em não lograr executar a práxis da transdisciplinaridade e do multiculturalismo (MORIN, 1998; 1997), fulcrais à interpretação das produções e das necessidades humanas. Perdura a forte impressão de que há equivalência entre as práticas intrainstitucionais e as extrainstitucionais em saúde, aplicando-se naquelas conhecimentos híbridos e nestas os costumes e as constantes releituras das verdades acadêmicas. Contudo, este fato não desvale as produções científicas, haja em vista que a própria Ciência tem promovido metateorizações que possibilitam monitorar as suas produções e resguardar o que lhe é mais característico e vanguardista: ser um campo de produções e refutações (JESUÍNO, 1998).