• Nenhum resultado encontrado

Falar sobre a pós-modernidade é redundante e requer uma percepção ampliada de todo o redor que nos cerca, uma vez que a conceitualização deste termo ainda é muito insipiente e discutível. O que me faz sentir as marcas da pós-modernidade é, sobretudo, o testemunho da grande virada de paradigma que o século XXI, aportado nas contribuições do século passado, vem performizando.

Mais do que isso, o entronamento da razão e do metodicismo vem sendo corroído no discurso das Humanidades, posto que a perspectiva do sujeito e não mais a do objeto vem tomando espaço nas discussões filosóficas. Percebo o eco desta mudança, a partir de Albert Einstein e Sigmund Freud, teóricos que deram suporte às discussões de Michel Foucault (1992), Homi Bhabha (1998) e Stuart Hall (2006), para citar alguns dos autores cujas obras compõem o aporte teórico desta dissertação.

Portanto, preteri o delinear deste posicionamento epistemológico em trazer as discussões de Sherry Ortner (2007), por exemplo. Ao considerar a subjetividade, encontro a permissão para falar sobre a autobiografia em várias esferas: como gênero, como narrativa de si, como marca identitária e como expressão do eu diante dos contextos interno e externo em que está circunscrito.

Uso a palavra circunscrito e não inscrito, em virtude da significação do primeiro termo ser mais abrangente para a discussão levantada nesta pesquisa. A ideia de circularidade que a referida palavra conota, permite-me reconhecer que o sujeito faz uso dos lugares internos e externos para produzir- se/conscientizar-se na representatividade da escrita de si. Este hibridismo de tempo/espaço/discursividade reforça o mesmo caráter discutido aqui da pós- modernidade.

Sendo assim, acho coerente trazer uma mulher como Maya Angelou para análise sob esta vertente teórico-metodológica, uma vez que ela é-se plural em várias esferas de representação de si mesma. Na expectativa que eu tenha alcançado o objetido de apresentar estas multidimensões na referida autora, a que o primeiro capítulo se propunha a cumprir, ressalvo algumas palavras.

As identidades culturais móveis nesta dita pós-modernidade põem em xeque as desbotadas ideias de que o sujeito é unívoco em quaisquer que sejam as atribuições oferecidas a ele na/pela sociedade. Ou seja, o sujeito não performiza as mesmas funções e se caracteriza sob as mesmas acepções do discurso hegemônico como o sujeito iluminista preconizava, a exemplo. Todas as guerras, as práticas gratuitas de violência, as dores e os sofrimentos são consequências desta postura ideológica monolítica.

Acreditando que o discurso acadêmico deve transpor as barreiras estéreis da discursividade, pretensamente, objetiva, a minha concepção de identidade e de texto literário caminha nas questões da cultura. Haja vista, o conceito de homem e de cultura de Geertz (1989), considero que a autobiografia The Heart of a Woman, de Maya Angelou, configura-se na chamada perspectiva das Afroamericanidades. Digo Afro, por reconhecer elementos de matrizes africanas; americanidade, por perceber um hibridismo cultural de que Said fala; e –s, por considerar uma autobiografia imersa em

pluralidades.

Já o segundo capítulo aborda a autobiografia, na circunscrição da discursividade do testemunho. Para a discussão convidei autores como Nara Araújo, Philippe Lejeune e Elizabeth Jelin para entender como este gênero se configura. A partir de Lejeune (2008), cuja discussão é referência no assunto, percebi a estrutura de textos autobiográficos, a partir da identidade de quem escreve. No entanto, na trama da ficção, não se pode perceber que o pacto estabelecido entre autor e leitor abrange a discursividade de tal gênero.

Pensando nisso, Jelin (2002) faz uma crítica ao modo estruturalista de análise baseada no aporte metodológico que Lejeune (op. cit.) apresenta. Concordo com a autora Jelin no que diz respeito ao elemento da discursividade

como meio de investigação do texto autobiográfico. Logo, busquei apoio em George Yúdice (1992) para compreender a natureza do testemunho em narrativas de vida. Segundo ele, os testemunhos são discursos que pretendem resultar num alívio ao sujeito que escreve, uma vez que dá margem ao processo de autocompreensão, a partir da escrita do que um narrador experienciou, do qual Foucault argumenta em seu A Escrita de Si (1992).

Ora, se essa discursividade testemunhal desencadeia um momento de autocompreensão e associado ao postulado de Lejeune sobre a identidade do autor, Nara Araújo (1996), Doris Sommer (1994) e Sidonnie Smith (1987) concordam no quesito: as mulheres escrevem de forma circular, falam do espaço privado e, através de silêncios e segredos na narrativa, vinculam aspectos sociohistóricos e culturais da coletividade de uma dada sociedade.

Assim, entendo que The Heart of a Woman se trata de uma autobiografia disposta numa discursividade de testemunho, acrescento, em crônicas. Autobiografia porque, além do nome próprio no ato da assinatura e da edição The Collected Autobiographies of Maya Angelou – As Autobiografias Completas de Maya Agelou – (2004), observo o hibridismo de três elementos textuais que compõem este gênero: auto (representatividade de si); bios (história de vida); graphos (narratividade).

Autobiografia em testemunho porque percebo uma narradora que narra as histórias da própria vida por experiência/vivência, como registro memorialístico da história da coletividade, através de uma metonímia da vida pessoal da própria instância que escreve. Testemunho em crônicas, porque o assunto tratado parte do trivial do cotidiano, mas que representa a História Social dos EUA, no período entre 1957-1962. Em outras palavras, H.W. trata- se de uma autobiografia moderna de testemunho em crônicas, em prosa- poética, assunto que nos leva para o terceiro capítulo.

O último capítulo versa sobre a canção na narrativa da autobiografia de Angelou, de 1981. Na tentativa de demonstrar que H.W. é escrita em ritmo, a partir da hibridização de duas linguagens: a narrativa e a música, encontrei apoio em Solange de Oliveira (2002) quanto à metodologia para análise desta empreitada. A última autora citada se apoia na disciplina proposta por Steven

Scher (1992) chamada de Melopoética para demonstrar a palavra-música expressa ora pelo poema, ora pela narrativa.

Ademais, encontrei um ritmo de canção, ao mesmo tempo que percebi o ritmo da descontinuidade narrativa no momento que a narradora vai contando assuntos dos âmbitos público e privado. Desta forma, o espaço público é constituído por um ritmo acelerado, dinâmico; ao passo que o espaço privado é representado por um ritmo desacelerado, monótono. O efeito provocado é de uma quebra na linearidade da narrativa, através da categoria tempo.

Portanto, esta proposta de leitura de H.W. sugere que a ação do leitor deve caminhar entre a Literatura e a Música. Recomendo que se leia esta autobiografia ao som de um Spiritual de acompanhamento. Ainda gostaria de somar esta abordagem com a imagem de uma cantora num palco, diante de sua palteia. Os instrumentos de percussão ao fundo, a união das vozes no teatro, protagonizando um momento histórico, pelas vias das produções culturais.

Minha auto + bios + graphos me incubiram desta pesquisa e ditaram o que escrever e como escrever nesta/esta dissertação. Apesar da resistência dos modelos unívocos de estilo de escrita, ousei romper com a rigidez acadêmica, com a mesma audácia com que me debrucei sobre a investigação de uma autobiografia escrita por uma mulher negra.

Para finalizar, entendo que a LITERATURA é isso: mais uma linguagem que promove a inscrição do ser humano no estado da transcendência. Reconheço Shakespeare até hoje, apesar de ele ter morrido em 1616. Concluo minhas palavras com o poema de Cecília Meireles, presente no livro Vaga Música, de 1942:

CANÇÃO

Pus meu sonho num navio