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A trajetória da pesquisa realizada ao longo destes quatro anos começou de forma diferente. A escolha por Gonzaguinha não foi a primeira, mas se mostrou adequada e produtiva. Estudar sua obra é estudar também a história do Brasil e as transformações sociais e políticas que acompanharam sua produção ao longo das décadas em que o compositor esteve ativo. A análise de suas canções mostra um compositor prolífico, antenado e sem medo de se expor, coerente com seus ideais, mas que, acima de tudo, se dizia pessoa. Gonzaguinha foi um compositor que se entregou à sua arte, de peito aberto, com suas emoções à mostra e que, corajosamente, encarou as consequências dessa entrega.

A proposta desta tese foi fazer um estudo da obra de Gonzaguinha a partir de um recorte temporal que privilegiasse dois momentos históricos distintos: a ditadura militar, através de canções dos LPs lançados entre 1973 e 1978, e a redemocratização, através dos LPs lançados entre 1979 e 1988. Esse recorte temporal se justifica porque a intenção foi verificar, em um primeiro momento, de que maneira Gonzaguinha se relacionou com a censura, em seus primeiros anos de carreira e como essa censura impactou sua escrita e, num segundo momento, entender o que mudou em suas composições quando já não existia mais a repressão do regime militar. Além disso, buscamos entender como Gonzaguinha se relacionou com a mídia, representada pela TV e pela indústria fonográfica, representantes da indústria cultural, e de que maneira essas instâncias influenciaram sua escrita. O que nos moveu, nesse sentido, foi tentar verificar se houve alguma alteração significativa no conteúdo das letras escritas por Gonzaguinha quando a censura se abrandou e finalmente acabou e se isso teria a ver com a força da mídia em sua carreira.

Para realizar este estudo, buscamos num primeiro momento verificar quais aspectos da obra de Gonzaguinha haviam sido abordados em estudos acadêmicos, através da leitura de artigos, dissertações e teses a respeito do compositor. A análise dessa produção nos revela um dado interessante, que é o fato de que não há, até o momento, um estudo que tenha se dedicado a analisar a obra do compositor pelo viés puramente musical. O que se observa é que grande parte desses estudos é oriunda de áreas como literatura, linguística e

história. Isso não significa, contudo, que a análise musical tenha sido esquecida, pelo contrário, ainda que o foco principal não seja um estudo criterioso sobre aspectos musicais, estes estão presentes nos textos estudados, contribuindo para uma visão mais ampla da obra de Gonzaguinha. A revisão bibliográfica realizada tornou possível observar a produção do compositor sob os mais diferentes aspectos, permitindo vê-lo a às suas canções para além da imagem veiculada pela mídia.

Em um segundo momento, a proposta foi verificar o engajamento nas canções de Gonzaguinha. A ideia de que ele foi um cantor e compositor engajado se justifica - até mesmo antes da análise de suas canções – pela fala do próprio em entrevista dada ao Jonal Hoje (1979) quando afirmou ser uma pessoa engajada, que lutava conta aquilo que não concordava, procurando uma prática no cotidiano a nível revolucionário. Foi possível atestar que o engajamento de Gonzaguinha não se ateve aos anos ditatoriais, mas se estendeu ao longo de sua carreira, ultrapassando os limites de sua canção, sendo visível também na sua postura como figura pública.

Em seguida, buscou-se analisar as canções de Gonzaguinha sob a ótica da literatura de testemunho, mais precisamente com a noção de teor testemunhal, que é aquele que aparece em obras que não chegam a ser o relato de um sobrevivente de uma tragédia, mas que, de certa forma, funcionam como porta-vozes daqueles que não puderam ou não conseguiram testemunhar. Foi possível verificar, tomando como base as canções selecionadas dentro do recorte temporal que abarca o período ditatorial, que Gonzaguinha agiu como o que Gagnebin chama de testemunha solidária, aquela que empaticamente empresta sua voz aos que não puderem se manifestar. Partindo dessa perspectiva, percebemos que Gonzaguinha conseguiu retratar os sofrimentos daqueles oprimidos pela censura do regime e marginalizados por um sistema político e econômico que privilegiou uma pequena parcela da população. As canções selecionadas abrangem um período em que Gonzaguinha se mostrou mais ácido em suas críticas – não que ele o tenha deixado de ser, posteriormente – firmando seu posicionamento de oposição ao regime ditatorial bem como à repressão imposta por este. Foi possível, portanto, verificar que há um forte teor testemunhal em grande parte da obra do compositor.

A carreira musical de Gonzaguinha teve início no final da década de 1960 e se consolidou ao longo dos anos 1970, o que influenciou fortemente sua produção, uma vez que o compositor retratava em suas canções o momento histórico em que viveu, trazendo para suas canções fatos do cotidiano e problematizando a situação política, social e econômica vigente. É nessa perspectiva que temos um compositor bastante crítico e um observador atento da realidade que o cercava.

Ao analisarmos a obra de Gonzaguinha pós-abertura política, entretanto, percebemos que o compositor - ainda que muito coerente com o que sempre havia sido e dito – foi se tornando mais suave, voltando seu olhar para outros problemas do país e se permitindo compor de forma mais leve e descompromissada com relação à situação política do país. Pensando nisso, o questionamento que surgiu foi de que maneira Gonzaguinha se relacionou com o novo modelo político e econômico que se delineou a partir da abertura e de que forma sua produção foi afetada e / ou incentivada pelo enorme crescimento da televisão e da indústria fonográfica.

A fim de entender a relação entre Gonzaguinha, a mídia televisiva e o mercado fonográfico, foram selecionadas canções compostas principalmente no final da década de 1970 e década de 1980, tendo como aporte teórico as noções de conteúdo de verdade e indústria cultural elaboradas por Adorno e Horkheimer. A escolha pelos autores se deu a partir da percepção de que foi durante este período que a indústria cultural se consolidou no país, impulsionada por fatores como o “milagre econômico”, o surgimento da televisão e a ampliação do mercado fonográfico. Estes fatores, atuando conjuntamente, forneceram um panorama bastante diferente daquele das décadas anteriores e isso impactou diretamente na produção musical de Gonzaguinha.

Foi possível observar, ao longo da pesquisa, que Gonzaguinha se beneficiou dessa crescente indústria e, ao invés de ceder aos seus apelos, se aproveitou dela para impulsionar sua carreira. Da mesma forma que conseguiu driblar a censura quando ela se fez mais rígida, Gonzaguinha embarcou na onda de crescimento da televisão e da indústria fonográfica, e ampliou a abrangência da sua música através de participações em programas de TV e em trilhas sonoras de novelas. O fato de Gonzaguinha ter se aproveitado das benesses da indústria em nenhum momento desmerece a qualidade de sua música. Pelo

contrário, o compositor conseguiu se manter coerente com sua essência ao longo dos anos.

A pesquisa que se encerra neste momento teve como proposta resgatar um compositor de grande relevância para a MPB, cuja obra contribuiu para delinear e consolidar o novo gênero musical surgido em meio aos turbulentos anos 1960. Gonzaguinha conseguiu mostrar a que veio, sem meias palavras, deixando uma produção que não só é o retrato de sua vida, mas também do Brasil. Nas palavras dele, “o moleque desceu o São Carlos, pegou um sonho e partiu, [...] e hoje, depois de tantas batalhas, a lama nos sapatos é a medalha que ele tem pra mostar”. Gonzaguinha nos deixa um legado rico não só musicalmente, mas de grande relevância histórica e que ainda nos oferece muitas possibilidades de estudo.

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