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Nosso objetivo com este trabalho foi pesquisar a trajetória de participação política da Pastoral Carcerária.

Para a construção do marco teórico que subsidiasse nossas análises e que sustentasse nossos posicionamentos político-ideológicos no fazer científico no campo multidisciplinar da Psicologia Política, foi necessário abordar o campo de estudos sobre o tema da criminalização seletiva dos povos considerados inferiores, e tecer diálogos entre a tendência latino-americana e libertadora com as discussões em torno da criminalização e do aprisionamento, e do fenômeno do grande encarceramento seletivo que ocorre na atualidade da realidade social brasileira.

Assim foi possível ensaiar uma perspectiva de compreensão psicopolítica das práticas de criminalização e aprisionamento no Brasil, a partir do compromisso ético-político da Psicologia Política latino-americana com a libertação dos povos historicamente oprimidos, criminalizados e aprisionados, e de contribuir para a mudança social.

E é também a partir desse compromisso ético-político que se desenvolve a atuação da Pastoral Carcerária, uma organização de pessoas que se envolvem em ações coletivas e na participação política, em uma luta cotidiana contra o Estado penal.

Antes de iniciarmos nossa pesquisa de campo com as entrevistas, a nossa hipótese era de que a Pastoral Carcerária teria surgido em São Paulo, a partir de 1986, em resposta à continuidade das práticas de tortura no interior dos locais de privação de liberdade e ao aumento do encarceramento que ocorre a partir da abertura democrática no Brasil. E, conforme vimos nas análises das entrevistas, esta é a data de sua formalização como organização da sociedade civil, e o seu surgimento data os anos anteriores ao golpe militar de 1964.

E isso nos mostra a importância e a necessidade de trazer para as análises o componente histórico das ações coletivas da Pastoral Carcerária, por meio das narrativas de uma memória política da luta da organização, pois, apesar de uma longa trajetória, essa história estava invisibilizada. Desta forma, procuramos com este trabalho cumprir com uma função política de dar voz e visibilidade à história de luta da Pastoral Carcerária, que começa muito antes de sua formalização na década de 1980.

Também não esperávamos que o surgimento da organização coincidisse com o próprio nascimento da Teologia da Libertação latino-americana, e faz ainda mais sentido o

posicionamento de Martín-Baró (1998) em relação às condições em que ocorrem os comportamentos considerados criminosos das pessoas pobres, pois essa era uma das discussões que estavam em pauta naquele momento histórico.

E isso reforça ainda mais o nosso posicionamento de que estudos inseridos na tendência latino-americana da Psicologia Política, comprometida com a libertação dos povos historicamente oprimidos, para os quais são negados os direitos básicos de sobrevivência, jamais deve individualizar e despolitizar a questão do encarceramento seletivo de pessoas negras e pobres que ocorre no Brasil. E em relação a defesa do punitivismo aos comportamentos violentos, em uma sociedade que tem como base a exploração de umas pessoas sobre as outras, que socializa a violência nas relações e valores que desumanizam, esperar que as pessoas se relacionem de forma ética é esperar um comportamento que foge às normas simbólicas, que não estão escritas nas leis, mas que produzem a realidade concreta.

E, neste sentido, a Pastoral Carcerária nos convida a pensar em outras formas de socialização de relações humanas que devem ser trabalhadas por outras formas de educação, e desde a infância, propondo uma mudança nas formas de mediação e de resolução de conflitos por meio da Justiça Restaurativa enraizada na comunidade, que tem um potencial transformador para a responsabilização e restauração do dano, e de conscientização sobre as formas de relacionamentos humanos considerados antiéticos. E esse modelo alternativo de Justiça se apresenta como um começo possível de transformações que podem levar ao ideal de abolição das prisões.

Mas enquanto essa meta se apresenta como de alcance à longo prazo, que necessita de outras etapas anteriores, a Pastoral Carcerária exerce um importante papel no controle da sociedade civil sobre o Estado penal, assumindo uma função política de minimizar os danos causados pela situação de aprisionamento, e, assim, representa uma importante referência no debate público da questão prisional, contribuindo para a conscientização política em relação à esta realidade social.

As condições dos locais de privação de liberdade e as formas como opera o Poder Judiciário na prática, que foram narradas pelas vozes da Pastoral Carcerária, mostra-nos que “a prisão é uma máquina de infligir dor para certos comportamentos entre certas classes sociais e também entre os resistentes de cada ordem social” (Batista, 2014, p. 91). E convida-nos a pensar e a trabalhar com o que é concretamente o sistema penal, e não na chave do que “deveria ser”, quer dizer, trabalhar com a concreta função social e política do presídio, como um sistema

de dominação e controle, em uma relação “entre quem tem o poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização”. (Batista, 2014, p. 91)

Ou seja, não há transformação dessa realidade social injusta que não passe pela mudança do sistema social. E defendemos que uma Psicologia Política que se pretende libertadora e transformadora da realidade social deve necessariamente passar pelo cárcere e se conscientizar em relação à essa realidade concreta.