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Compartilhamos com Freire (1991) do entendimento de que não é por decreto que se fazem as mudanças em educação, por isso temos a convicção de que a proposta deve ser construída com a participação efetiva da comunidade escolar com o objetivo de problematizar a educação instituída, discutir a educação desejada – os sonhos e utopias, e visualizar os desafios. Toda proposta pedagógica é expressão de um projeto político e cultural, portanto, relaciona-se à vida na escola e reúne tanto bases teóricas quanto diretrizes práticas nela fundamentadas.

Elaborar uma proposta pedagógica, um currículo que se fundamente na perspectiva freireana não é tarefa fácil e, cabe aqui recordar que Freire solicitava que nós o reinventássemos. Para ilustrar essa necessidade, vale lembrar-se da história que Benjamin (1995, p. 219-220) conta, falando de um rei que, apesar de muito poderoso, não se sentia feliz e se tornava cada vez mais melancólico. Mandou um dia chamar seu cozinheiro particular, pedindo-lhe que fizesse uma omelete de amoras tal qual havia saboreado há 50 anos, na sua infância. Nessa época, seu pai guerreava e, tendo perdido a guerra, tivera de fugir. Depois de muito vagar pela floresta, famintos e fatigados, o menino-rei e o pai encontraram uma choupana onde uma velha os fez descansar e lhes preparou uma torta de amoras. O cozinheiro – que recebera do rei, como promessa, a mão da filha e o reino, caso soubesse fazer aquela omelete, ou a morte, em caso negativo – escolhera de antemão morrer, já que, embora possuísse os ingredientes e a receita da torta, jamais conseguiria temperá-la com o gosto do perigo da batalha, da vigilância do perseguido, do calor do fogo e da doçura do descanso, do presente exótico e do futuro obscuro.

Esta história aponta o quanto à proposta pedagógica deve estar intimamente ligada à realidade a que se dirige, explicitando seus objetivos de pensar criticamente essa realidade, enfrentando os problemas. Foi este movimento que a rede municipal de Concórdia construiu no período analisado. A construção desta proposta de educação não pode ser dissociada de uma visão de processo, pois os movimentos de participação não são lineares, há avanços e retrocessos influenciados pelas contradições da realidade econômica, política e social e dos próprios sujeitos que a constituem. A implementação da proposta de educação democrática e cidadã para todos na rede municipal de Concórdia,

no período de 2000-2016, tem uma história, é situada, contém uma aposta e foi realizada com a intenção de criar uma alternativa ou proposição crítica, tomando a questão curricular e desenvolvendo-a na direção contrária à habitual, numa perspectiva contra- hegemônica, visando formar para a cidadania e contribuir para a transformação social. Na Educação Infantil, conforme os documentos analisados destacam-se os seguintes enfrentamentos: a preocupação em superar a concepção espontaneísta de educação, o trabalho escolar fragmentado e as metodologias clássicas de trabalho com a infância, evitando a mera utilização do quadro-negro, de atividades mecânicas e limitadas à sala de aula, baseadas na perspectiva bancária de educação onde o educador é quem sabe e determinada o que deverá ser feito, escolhe e dispõe os brinquedos para as crianças, determina a rotina, trabalha conteúdos alheios à realidade, etc... Enfim, o movimento de reestruturação curricular visava superar a concepção de criança baseada na passividade, como alguém incapaz, um “vir a ser”, bem como refutar a postura oposta, de tomar a criança como centro do processo pedagógico, de forma a imperar uma atmosfera não diretiva do trabalho pedagógico.

Nosso intento com esta pesquisa, como mencionado no início do trabalho, foi problematizar não uma proposta específica, mas a nós mesmas como protagonistas de vivências pedagógicas transformadoras. Para isso, levantamos algumas questões: é possível uma educação infantil freireana? Se sim, como se materializa no âmbito de uma proposta pedagógica? Que desafios se colocam para quem se dispõe a ela? Indagações que se traduziram no problema de pesquisa: Quais as possibilidades e desafios da pedagogia freireana no âmbito da organização da práxis pedagógica em contextos de educação infantil?

Estabelecemos como objetivos para esta investigação: identificar as características que assumem o desenvolvimento humano na perspectiva da teoria histórico-cultural; caracterizar a concepção freireana de educação e suas implicações para a organização de processos pedagógicos no âmbito da educação infantil e analisar a proposta político pedagógica de educação infantil do município de Concórdia e demais documentos que registram a caminhada do processo de reorientação curricular vivenciado no período 2000-2016. Para atingi-los, buscamos primeiramente realizar através de revisão bibliográfica a contextualização da infância no Brasil, percebendo-a como uma construção social que não pode ser compreendida fora de um contexto sócio-econômico, político e cultural, evidenciando as mudanças de paradigmas em relação a infância nos diferentes

períodos históricos: a criança naturalizada; a criança como problema social; a criança como sujeito de direitos. Em consonância com a concepção da criança como sujeito de direitos, investigamos as contribuições da sociologia da infância para pensar a educação das crianças e percebemos a aproximação desta com as idéias da pedagogia freireana. Enfatizamos a educação infantil como espaço/tempo de humanização, priorizando a análise do papel da educação escolar à luz das contribuições da teoria histórico-cultural abordando as relações entre o trabalho, a linguagem e a consciência e como estas se constituem um importante fundamento para o desenvolvimento de funções psicológicas superiores, onde o educador deve considerar as especificidades do desenvolvimento na infância, ou seja, a atividade principal em cada estágio do desenvolvimento, conforme preconiza Elkonin. Num segundo momento apresentamos os aspectos centrais da pedagogia freireana que envolve três dimensões fundamentais: a dimensão política, a dimensão epistemológica e a dimensão ética/estética, com ênfase central na conscientização como tarefa educativa, onde o conhecimento é um dos elementos mediadores no processo de construção do novo homem e da transformação social.

Como não basta defender a educação numa perspectiva libertadora sem pensar os modos concretos de garantir a sua dialogicidade, demonstramos como esta proposta de educação pode ser materializada, ou seja, descrevemos a dinâmica de investigação dos temas geradores, mediante o desenvolvimento de um processo sistematizado por Delizoicov (1991), em cinco etapas, a saber: a) Levantamento preliminar; b) Análise das situações e escolha das codificações; c) Diálogos descodificadores; d) Redução temática; e) Trabalho em sala de aula. No último ponto, mais especificamente, são detalhados os três momentos pedagógicos (estudo da realidade, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento), como uma das possibilidades de organização do trabalho pedagógico em sala de aula, sobretudo na Educação Infantil, onde a criança assume a condição de sujeito, que é e está sendo, com capacidade para ser mais, vocação ontológica do ser humano.

O último momento foi da análise documental realizada acerca da experiência de educação democrática e cidadã da rede municipal de Concórdia, onde recorremos à epistemologia materialista histórico-dialética, para analisar o conteúdo da sistematização curricular - versão 2010 e 2016 e demais documentos que registram a caminha do processo de reorientação curricular no âmbito da educação infantil onde realizamos o detour a partir das categorias prévias elencadas: ser humano (sujeito),

dialogicidade/problematização, intencionalidade e conhecimento visando resgatar a história deste fenômeno e caracterizar as mudanças qualitativas que ocorreram neste período, lidando também com as contradições deste processo de construção.

Constatamos que é possível implementar a pedagogia freireana no âmbito da Educação Infantil e que Freire fez sim referência ao trabalho educativo que pode ser realizado com as crianças. As contribuições de Freire explicitam alguns elementos fundamentais, como: a democracia deve ser exercitada desde a educação infantil; educador e educandos são sujeitos de conhecimento; a democracia não exime o educador da diretividade da ação pedagógica. Reitera, portanto, a necessidade de um educador democrático, por isso mesmo, nem autoritário, nem licencioso.

Desta análise pudemos inferir as seguintes potencialidades: i.) A escola tem como função a socialização do saber sistematizado visando contribuir para a formação e o exercício da cidadania, portanto, a apreensão dos conhecimentos possibilita a retomada da realidade, compreensão e posicionamento diante do mundo - processo esse que não dispensa o rigor científico e a construção da curiosidade epistemológica; ii.) a concepção de criança adotada é a de sujeito social e histórico, o que implica no reconhecimento de que o contexto e a cultura influenciam a visão de mundo das crianças, sua subjetividade sendo que cabe a escola dialogar/problematizar os “saberes de experiência feitos” constituídos nas interações sociais, bem como construir novos conhecimentos, saberes e significados; iii.) As crianças são sujeitos com vez e voz no fazer pedagógico, onde os educadores demonstram a preocupação em planejar com as crianças e não para as crianças; iv.) A proposta sinaliza para a articulação da pesquisa e do ensino como momentos do ciclo gnosiológico e remete à necessidade da investigação temática da realidade e neste sentido, escutar, para além de ouvir, envolve a disponibilidade para abertura às necessidades e problemas para o outro demandados pelas falas significativas; v. ) Pertinente compreensão do que seja tema gerador explicitando a necessidade de contradição nas visões de mundo; (vi.) O diálogo é entendido como práxis, compromisso entre a palavra dita e a ação humanizadora; vii.) Clareza acerca da necessidade de tomar a prática social como ponto de partida e de chegada, porém, esta última modificada pelo trabalho feito pela escola, mediada pelas situações de ensino; viii.) A brincadeira é percebida como estratégia para a construção do conhecimento, pois encontramos menção ao brincar, faz-de-conta, organização de espaços e sugere-se o brincar como referencial epistemológico para auxiliar o professor no planejamento

pedagógico.iv.) Construção coletiva e adoção dos referenciais epistemológicos do educador, sendo que muitos destes se identificam com os fundamentos da pedagogia freireana.

No entanto, esse processo não está isento de dificuldades e desafios, pois, percebe-se na sistematização curricular de 2010 uma maior aproximação da pedagogia freireana, enquanto há um distanciamento maior na sistematização curricular de 2016. Diferente do que sugere a metáfora acima descrita na história do rei onde se cria muros intransponíveis para a realização de novos projetos e utopias e, portanto, gera a vontade de morrer ao invés de viver, a proposta pedagógica de Concórdia coloca a utopia no horizonte e, ao reconhecê-la como processo histórico, como um permanente movimento dialético e contraditório, há que se reconhecer que a luta se faz pelo enfrentamento da contradição histórica inerente aos processos humanos. Neste viés, a proposta está sendo, conforme afirma Freire, de gente que se faz enquanto a faz.

Os limites aqui evidenciados, ao serem lidos como processos sócio-históricos, têm aqui a tarefa de sinalizar a todos nós comprometidos com uma educação infantil freireana, os desafios que se constituem em conteúdo das lutas empenhadas por aqueles e aquelas que se concebem inconclusos, condicionados, mas não determinados em busca da utopia de um outro mundo possível e, portanto, de uma outra educação possível e por isso, com possibilidade de mudar o curso da história. Em síntese, constituem-se desafios: i.) Ainda se encontra nos documentos indícios da compreensão da criança como indivíduo empírico em detrimento de indivíduo concreto que contribui na legitimação do discurso de naturalização e padronização do desenvolvimento infantil, e conseqüentemente, orienta posturas e práticas contemplativas por parte do educador; ii.) Apesar de considerar a criança como sujeito com vez e voz, onde todos são objetos e sujeitos da avaliação, não se encontra nenhuma orientação no sentido da institucionalização de espaços/tempos para que as crianças avaliem/opinem sobre o processo de educação vivenciado; iii.) Apesar de sinalizar para a necessidade de realização da investigação temática e construção de redes para definir a programação, ainda percebe-se uma justaposição dos conteúdos, onde a rede temática é mero exercício com o objetivo de encaixar uma programação convencional pré-estabelecida, ou seja, a seleção dos conhecimentos não está vinculada às necessidades das falas; iv.) A brincadeira, sobretudo os jogos de papéis sociais, ainda não são percebidos como estratégia para fazer pesquisa com as crianças e fica explícita a fragilidade na orientação acerca da necessidade da mediação do educador