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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento Pescadores na Bahia do Século XIX (páginas 120-123)

Após décadas de forte instabilidade e incertezas quanto ao futuro da nação, o Brasil viveria na segunda metade do século XIX um tempo de relativa paz. Uma vez consolidada a legitimidade real, sufocadas as rebeliões provinciais e garantida a unidade territorial, o jovem império brasileiro buscou modernizar suas instituições. Sendo setor estratégico de um país em ascenção, de vasto litoral e dimensões continentais, a Marinha foi parte fundamental desse processo, iniciado com a criação das Capitanias dos Portos. A partir delas, e imbuído de ideais racionalistas, o Estado buscou legislar, normatizar e gerir o mundo das águas, bem como controlar, disciplinar e usar os trabalhadores do mar para o seu benefício.

Imposições legais raramente se dão sem conflitos. No que tocou ao universo da pesca, isso se mostrou mais grave, pois havia nele relações costumeiras fortemente estabelecidas e sem grande histórico de intervenção estatal. Tentar fazer valer a lei entre eles foi muitas vezes empresa complicada, ainda mais com uma estrutura precária e insuficiente para tão grande tarefa.

Esta dissertação tratou das relações entre os pescadores e essas leis. Leis que foram escritas invariavelmente de cima para baixo, sem qualquer tipo de consulta a eles. Leis que em alguns casos contrariavam a prática por eles exercida por décadas. Em outros lhes ameaçava a própria liberdade. Nem por isso, houve algo como uma resistência obstinada por parte dos pescadores. Estando no lado mais fraco da corda, lidaram com as leis do modo que lhes parecesse mais conveniente a cada momento. Quando favorecia aos seus interesses, não relutavam em recorrer a ela. Se era vista como prejudicial, escapavam dela, boicotavam-na, ou buscavam negociar os termos de sua aplicação. Aliás, isso foi um padrão. Os pescadores pouco procuraram alterar a lei onde ela era feita. Entenderam ser mais estratégico disputá-la no terreno onde era aplicada, para o que souberam reunir força entre si e acionar autoridades simpáticas à sua causa.

A matrícula na capitania, que para uns era motivo de fuga por ver nela risco de ser recrutado para a Marinha, era a tábua de salvação de outros para escapar do serviço na Guarda Nacional. No conflito de Francisco Xavier de Santana e demais pescadores do Rio Vermelho, ambas as partes buscaram amparo na lei. A lei do “mar livre”, ora foi

reivindicada, ora ignorada, a depender da sua conveniência. A relação com a capitania seguiu no mesmo tom. Se muitas vezes esta encarnava a figura do inimigo, em outras os pescadores a tinham como aliada, ou elegiam-na como mediadora dos seus conflitos. No geral, os pescadores souberam analisar a conjuntura e decidir o que era melhor para eles em cada caso, mostrando comprometimento não com um ou outro costume em si, mas com seus interesses.

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Este trabalho foi uma primeira aproximação a uma temática ainda pouco explorada. A documentação é farta e as possibilidades de pesquisa são variadas. Muito ainda está por se fazer. Entre as questões mais prementes a se discutir, penso estar a questão da venda do pescado. Os primeiros passos foram dados por Wellington Castellucci Junior em seu estudo sobre a pesca de baleia na ilha de Itaparica. Lá, ele nos mostra um sistema envolvendo atravessadores, responsáveis por levar o peixe a diversas partes da província, e ganhadores, libertos e escravos de ganho; que o vendiam, junto com outros produtos, para o consumidor final. Eram na sua maioria mulheres forras que conciliavam a venda do pescado com outros afazeres domésticos e outras ocupações mercantis. Por um bom tempo, a Câmara Municipal de Itaparica empregou esforços em restringir, ou ao menos disciplinar, a sua atividade buscando fixar locais para a venda do pescado.1

Situação semelhante ocorreu na capital e merece ser estudada.2 Em 1857, a

Câmara Municipal de Salvador determinou que o fiscal da freguesia Francisco da Cunha Maciel vendesse o pescado diretamente aos consumidores, em cabanas próprias para tal, por pelo duas horas, a fim de evitar o atravessamento das ganhadeiras, descritas por Francisco como “meia dúzia de Africanas” junto com “algumas filhas do País”, que pegavam os peixes nas canoas “afim de trazerem para as barracas, impondo os preços, não atendendo as circunstâncias dos consumidores, nem também dos pescadores, arrancam-nos até a última gota de sangue”.

1 Wellington Castellucci Junior, Caçadores de baleia: Armações, arpoadores, atravessadores e outros

sujeitos envolvidos nos negócios do cetáceo no Brasil, São Paulo, Annablume, 2009, pp.119-152.

2 Ver João José Reis & Gabriela Delfim, “'Carne sem osso, farinha sem caroço': o motim de 1858 contra a carestia na Bahia”, Revista de História, nº135 (1996), 133-59.

O que nos traz também a questão do papel da mulher na pesca. Até hoje tida como ocupação eminentemente masculina, às mulheres estando relegado somente o trato do peixe e sua venda, há indícios de que a realidade fosse um pouco diferente. O ministro da Marinha referiu-se a “grande número de mulheres” empregadas no serviço da pesca na província do Pará. É de se pensar que na Bahia houvesse também mulheres pescando, mesmo com o silêncio da documentação. Mesmo hoje, muitas mulheres de comunidades pesqueiras não se dizem pescadoras, pois o título é exclusivo dos homens, mas elas jogam suas linhas e pegam seus peixes.

Por fim, cabe ainda aprofundar o estudo da participação escrava na pesca tanto dentro quanto fora do universo dos engenhos. Infelizmente, na documentação utilizada neste trabalho eles pouco apareceram. Localizei apenas uma referência de pescador que possuísse escravos, sendo que eles foram herdados da sua sogra, e não foi possível saber se esses escravos eram utilizados na pescaria. É diferente o caso da navegação de cabotagem, na qual vemos escravos trabalhando ao lado dos seus senhores, dividindo o mesmo barco. Talvez esse seja um problema da época estudada, já que na segunda metade do XIX, a crise de abastecimento de cativos motivou a venda de escravos para as áreas mais fortes da economia. Um recuo temporal pode nos ajudar a descobrir mais sobre essa coisa.

No documento Pescadores na Bahia do Século XIX (páginas 120-123)

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