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Este trabalho foi amadurecendo através do diálogo entre as pesquisas bibliográficas, o grupo de estudos (GEPP) e a pesquisa de campo. Embora não mencionado como recurso de pesquisa, não posso deixar de evidenciar a importância das discussões do grupo tanto para meu melhor entendimento sobre a religião como para desenvolver idéias e suas tratativas. Além do grupo, a pesquisa de campo se mostrou realmente fundamental para uma compreensão no mínimo adequada da religião e da forma como a vida das pessoas se dá na relação com os objetos estudos: os mitos e as experiências de transe.

No projeto de pesquisa descrevi sete hipóteses auxiliares que pudessem me auxiliar a compreender as muitas formas de se enxergar a experiência de transe religioso pentecostal. Tratarei de respondê-las antes de uma análise posterior da minha experiência com a pesquisa, para contextualizar algumas observações que eu tinha antes e depois deste trabalho.

As duas primeiras hipóteses falam do dom de falar línguas: I) O mito de Pentecostes é o mito fundador da religião pentecostal, e seu ponto de conexão com Deus. Assim, a glossolalia é a manifestação do encontro com a figura da Divindade (Espírito Santo)? II) A glossolalia constitui um status para o indivíduo dentro da religião, por ter se tornado elo direto com a divindade? Sim, não e sim. O mito de Pentecostes é, de fato, o mito fundante da religião, mas o dom da glossolalia não é a única manifestação que possa definir o encontro com a divindade. O dom de falar línguas é de grande importância na liturgia pentecostal, se traduzindo como um atestado da fé do indivíduo e do cumprimento de uma promessa de Cristo aos fiéis. No entanto, outros dons também o são, como o da profecia, da distinção de espíritos e da cura. Todos os dons têm maior ou menor relevância, dependendo da denominação e do grupo religioso, mas todos são vistos como uma prova da fé do crente e, por isso, são significativos para o indivíduo alcançar determinadas posições e papéis dentro do grupo – inclusive, em algumas igrejas, para a própria posição de pastor(a). No entanto, é necessário mencionar que a intenção da hipótese I estava completamente equivocada: o encontro com a divindade não promove a experiência do transe de falar línguas, ou da cura. O encontro com a divindade provoca, antes, uma experiência de êxtase, conforme mencionado no capítulo 4. O encontro entre fiel e divindade provoca, de início, a sensação do êxtase, podendo ocorrer na oração, no louvor ou nos procedimentos de libertação (cura). A partir dessa primeira experiência é que se abre as portas para as demais, como os dons, e não o contrário.

Sobre o êxtase, eu havia elaborado as seguintes hipóteses V e VI: V) O êxtase é uma manifestação coletiva, ou pode ser individual? VI) O êxtase pode ser motivado ou conduzido somente pela fé, ou deriva necessariamente da estética visual, de sons (músicas) e tons de voz (discurso) para emocionar o público? Ambas as hipóteses se complementam, na verdade. Primeiro, o êxtase pode ser experimentado tanto de forma individual – quando o crente está sozinho, orando e louvando – como coletivamente, quando está no culto. Na pesquisa de campo, o discurso dado, em geral, é de que a experiência é mais forte quando acontece no culto, em comunhão com outras pessoas. Além disso, o culto oferece sim uma estética musical bastante provocativa emocionalmente, o que exalta o seu público. A banda possui lugar de destaque no culto e na igreja, sendo os louvores momentos de intensa resposta corporal e emocional, mais que nas orações sem o apoio musical. No entanto, não houve informações que justificassem a estética visual como um fator de apoio ao transe, também. Como já mencionaram Jung (2014) e Durkheim (2008), as massas costumem ter suas próprias dinâmicas, abrindo espaço a manifestações comportamentais e experiências sensoriais que o indivíduo, sozinho, talvez não se permitisse ter. Ainda que seja difícil evidenciar se o transe do êxtase realmente se dá apenas na presença do apoio musical; tendo como critério de análise a fala dos participantes da pesquisa, formais e informais, o discurso do próprio grupo religioso parece coincidir com a afirmativa de Jung (2014, §225), que diz que “(...) a vivência grupal é muito mais frequente do que uma vivência de transformação individual. É também muito mais fácil alcançar a primeira, pois o encontro de muitas pessoas tem uma grande força sugestiva”. Diante dos dados apontados, posso afirmar que o louvor na igreja ou em grupos de oração é mais propício à experiência do êxtase.

Diferente dos dons do Espírito Santo e do êxtase, havia uma imagem carregada de preconceitos e apelos midiáticos a serem reconsiderados na observação da experiência da possessão, a qual eu havia elaborado a seguinte questão: III) A possessão é a experiência que traduz o mito da Guerra Espiritual? E de fato, não. Para ser a experiência, única, que traduziria este mito, seria necessário que a influência da figura do Diabo pentecostal se desse, tão somente, através da possessão física, quando na verdade a mitologia pentecostal aborda as investidas do Inimigo com imensa diversidade. A mítica Guerra Espiritual se encontra no dia a dia dos fiéis, desde as pequenas tarefas a desentendimentos pessoais, e no corpo também se expressa nas doenças e nos vícios. Por isso, enxergar a experiência de possessão como única forma de expressão do mito da Guerra Santa é subestimar a extensão simbólica deste mito. Diante das informações coletadas, entendo que os ritos foram reelaborados diante deste novo momento do

movimento pentecostal e, por isso, a possessão demoníaca enquanto um evento chamativo já não se adequava mais a realidade simbólica que a religião estava formando. Nessa nova realidade – que enfatiza a fé, o louvor, e protagoniza a ação do Espírito Santo – já não cabe mais possessões violentas e desmedidas no campo ritualístico. As possessões demoníacas persistem, sim, embora mais discretas em suas manifestações corporais, e sendo mais presentes na forma de situações desagradáveis da vida do indivíduo. Em outras palavras, a possessão não é mais apenas a situação em que um demônio busca invadir o corpo de um fiel sem permissão, mas agora, a possessão se dá através das próprias ações demoníacas na vida desse sujeito, como impedi-lo de ter um bom emprego, incitar brigas na família, causar dores e doenças, etc.

Diante das dinâmicas apresentadas, levanto a seguinte proposição: de que a experiência religiosa pentecostal não se fundamenta na experiência dos dons nem na possessão – apesar da importância de sua crença – ou no transe que leva a tais manifestações, que teriam uma funcionalidade objetiva no culto, como passar uma mensagem (uma revelação), realizar uma cura ou intuir a presença do Inimigo. Enquanto experiência vivida pelos religiosos pentecostais, a experiência fundamental se dá no êxtase, com uma funcionalidade subjetiva que se dá somente entre o fiel e a divindade, tendo a igreja como um intermediador que deve assegurar as condições necessárias para que o encontro aconteça. Essas condições se apresentam na forma da fé do corpo pastoral, dos fiéis e na divulgação da palavra, ensinando como os fiéis devem se comportar para receber o Espírito Santo.

Essa proposição se fortalece quando coloco o transe religioso em comparação às experiências de transe das religiões espiritualistas, principalmente, as afrobrasileiras, que têm sido um ponto comum de estudos na área. A primeira observação que faço é que as religiões afrobrasileiras costumam evidenciar a experiência de transe como objetivo do rito religioso, ou seja, a intenção da gira a é que a experiência da incorporação em médiuns ocorra para que haja um atendimento das demandas do grupo, principalmente, das pessoas que não são médiuns, criando um vínculo social de troca de serviços espirituais. Já na religião pentecostal, o atendimento do indivíduo ocorre na própria experiência do transe, o êxtase, que pode ou não desenvolver outros dons, mas que principalmente dispensa a presença de um terceiro como intermediário para o atendimento espiritual. Além disso, me parece que o objetivo das religiões afrobrasileiras é o atendimento espiritual em si; enquanto que o objetivo das religiões pentecostais é primariamente um comprometimento comportamental, uma mudança de hábitos e de modo de vida, que se enquadre no modelo da igreja. Assim, o transe se torna uma ferramenta de que dá sentido a esse corpo que deixará certos costumes e padrões estéticos em

prol de uma aliança espiritual, que se reconhecerá verdadeira através de um ápice extático que anuncia a presença do divino. Essa diferença de compreensões sobre o papel do transe religioso e dos objetivos de seus rituais, no meu entendimento, se dá principalmente pelas distinções mitológicas entre as religiões. Esse tema, inclusive, aborda as duas últimas hipóteses, que se relacionam com a forma que mitologia pentecostal se evidencia na contemporaneidade, enquanto uma realidade simbólica que se torna perceptível no comportamento do fiel pentecostal.

Uma delas, a respeito ainda da figura mítica do Diabo, questiona: IV) A figura do Diabo, que é essencialmente uma entidade externa a si, um “não-eu”, é usado como uma forma de transferir a responsabilidade das falhas individuais a uma fonte externa? Ao final deste trabalho, não considero que obtive uma resposta final para essa hipótese, uma vez que no próprio Pentecostalismo parece ser uma indagação em aberto e ponto recorrente de divergências entre os fiéis. Afinal, na crença pentecostal, onde termina a ação do Diabo e começa o livre-arbítrio? Uma curta pesquisa como esta, de menos de um ano em campo, não parece ser suficiente para compreender essa linha tênue. Seria necessário um estudo mais criterioso do ponto de vista emocional e psicológico, abordando um maior número de fiéis e suas respectivas denominações, para que se possa ilustrar como a influência do Inimigo se comporta e qual sua extensão para cada grupo. Ainda assim, arrisco dizer que seria impossível chegar a uma única conclusão, uma vez que os mitos pentecostais são interpretados de formas variadas em cada igreja, e mesmo sob a mesma denominação, há inúmeras divergências. Quando se trata de Pentecostalismo(s), o Diabo não é um consenso.

Por fim, a última hipótese pondera: VII) A Teologia da Prosperidade modificou o modo de interpretação do mito fundante, de forma que os fiéis pentecostais se identificam com o papel do Herói-Salvador? Sim, mas não é tão simples como eu imaginei de início. Não foi somente uma reinterpretação do mito, tampouco uma única nova teologia que desbocou na identificação arquetípica (JUNG, 2014) do pentecostal com um papel diante da sociedade e da humanidade, o de Herói (CAMPBELL, 2007). Essa recente construção – que, se observamos bem, de nova não tem nada – da necessária intervenção de um grupo religioso nas demais esferas sociais, como educação, saúde pública e política em geral, se dá pela conversão da Teologia do Domínio com a Teologia da Prosperidade (ARAUJO, 2007; GOMES, 2017). Em uníssono, as duas teologias cingiram aquele modo de vida antigo, à parte do mundo, para uma nova relação de troca com o mundo, estabelecida entre o dever de cuidar (Domínio) e o direito de receber (Prosperidade).

Todas as hipóteses foram alicerces para sustentar a pergunta principal da pesquisa, responder se o transe pode ou não ser considerado uma forma de expressão física, através do corpo, uma realidade mítica, ou seja, uma realidade baseada em um mito. Após este estudo, tenho ainda maior convicção na veracidade desta afirmativa: as experiências de transe são uma manifestação da vivência do mito pelo indivíduo e pelo grupo religioso, que ultrapassa as barreiras subjetivas do conto e se apossa da sensação física, que por fim se realiza no corpo e é sentido pelo corpo.

Mas é importante termos em mente – principalmente nós, cientistas da religião – que os mitos são estruturas simbólicas, orgânicas, que se adaptam às demandas de suas sociedades, alternando representações e estruturas teológicas que lhe deem plausibilidade (Berger, 1985). Na pesquisa bibliográfica pude verificar que os textos apresentados sobre o tema do transe, há uma maior tendência em considerar os aspectos biológicos da experiência ou sua semelhança com o transe experimentado nas religiões afrobrasileiras. A relação entre transe e mito são brevemente descritas, ou até mesmo desconsideradas. Neste trabalho, busquei apresentar uma tríade relação existente nas religiões, como no caso, no Pentecostalismo: o transe, enquanto experiência individual; a realidade simbólica (BERGER e LUCKMANN, 2014), enquanto experiência social; e ambas as experiências tendo por base uma realidade mítica, os mitos que lhe dão sustentação. O transe é uma experiência individual que, quando em consonância com a experiência do grupo, transporta o mito de um status folclórico para o patamar de realidade fatídica. Ou seja, aquela realidade que é creditada pelo grupo, quanto se torna vívida passa a ser indubitável tanto para o grupo para o próprio indivíduo. Essa transmutação do estado folclórico para o estado de realidade simbólica é, de fato, a apropriação da realidade como um produto de si mesmo e do seu grupo.

Partindo dessa análise teórica, mas comprometida com as observações colhidas em campo, retomo uma das causas mais urgentes para os estudiosos da religião: como lidar com o preconceito religioso e, principalmente, com a ignorância acerca das religiões? Primeiro, é preciso entender que que base de todo preconceito religioso, ideológico ou valorativo, está no conflito entre realidades simbólicas, ou seja, nas crenças estabelecidas por cada grupo que precisam se manter invioláveis. A sustentabilidade de uma realidade simbólica se dá, para certas religiões, na necessidade de desestruturar outras formas de crença. E é nesse ponto que evidencio a necessidade de se conhecer e trabalhar os mitos: os mitos descrevem realidades simbólicas e, por consequência, evidenciam modos de pensar e agir. Posso tomar como exemplo a Guerra Santa, que junto a Teologia da Prosperidade e a Teologia do Domínio, têm dado

abertura para diversos atos de vandalismo, de crime contra minorias e preconceito religioso. No papel, para quem não crê, a Batalha Espiritual é só um mito. E mitos são somente estórias. Mas são estórias assim como somos todos nós: punhados de estórias em corpos materiais. E esses corpos, nutridos de estórias, quando são estórias que contam sobre uma Guerra Divina, real e indubitável, provocam uma guerra física e psicológica com tudo que não é parte da sua estória, da sua realidade. Mitos são estórias sobre quem somos, e ao falarmos sobre sujeitos religiosos, sujeitos sociais ou simplesmente, sujeitos enquanto si mesmos, não devemos nos dar ao luxo de ignorá-los.