Elementos recorrentes nessa ilmograia, a paisagem e a natureza preenchem a tela a partir de grandes planos, travellings, câmeras altas e sobrevoos que se detêm sobre a amplidão do espaço. Não à toa estão presentes. Para além de seu signiicado no desenvolvimento da narra- tiva e ambientação da história, deve-se pensar os demais signiicados gerados e suas funções na constituição da narrativa. Ou na concepção de Comolli e Rancière (1997), entender como esses elementos tirados do real pela ação da câmera se tornam dados sensíveis e signiicantes na tela por meio da montagem.
Segundo Schama (1996), a paisagem está intrinsecamente ligada à memória e aos mitos que formam uma nação. Assim, cabe pensar sobre a paisagem e os espaços nessa construção imagética do país. Ao ver esses ilmes, observa-se que eles buscam, muitas vezes, contra- por-se a uma memória estabelecida. Memória esta construída lenta e detalhadamente por textos e imagens. O próprio cinema cumpriu seu papel nesse sinuoso caminho. Por um lado, o cinema de não icção, desde os anos 1920, deteve-se em buscar uma aproximação racional, neutra e cientíica de homens e lugares com o intuito de integrar a nação, ou em explorar a diversidade da natureza por meio de ilmes educativos e cientíicos. Não é preciso correr muita tinta para lembrar que ilmagens são pontos de vista a partir de um olhar conformado e constituído por categorias sociais e culturais. Ao cinema de icção coube, em grande parte, a folclorização do país a partir da enunciação de distintos tipos humanos que ocupavam os rincões do território brasi- leiro. Parte considerável do cinema de não icção também contribuiu para essa construção, como bem apontou Paulo Emílio Salles Gomes
em seu livro Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. A natureza os- cilava entre desempenhar um papel exuberante e ocupar um lugar exó- tico nas itas.
A ruptura com esses padrões ocorreu a partir do Cinema Novo e de uma leva de ilmes que lhe são temporalmente próximos. O ideal daqueles dias consistia numa aproximação documentária da realidade, para retomar a expressão cunhada por José Carlos Avellar em seus es- tudos sobre o Cinema Novo. A análise dos ilmes corrobora o conceito de Avellar (1986). No entanto, devemos acrescentar a dimensão mítica e atemporal presente em parte signiicativa dessa ilmograia. Filma-se no sertão e apresenta-se sua paisagem. Mas tal paisagem é descolada do tempo, livre da ação humana. Lugar da imobilidade.
Nesta cinematograia recente, o espaço aparece multifacetado: o sertão não existe sem seu par, a cidade e seu espaço urbano, e, aliás, o próprio sertão não é só o campo; a água corre junto com a vegetação, pois a seca não é sua única coniguração; a falta de água encontra seu reverso na abundância que igualmente constitui problema; o moderno e sua tecnologia andam de par com antigas sociabilidades e objetos; o feminino e o masculino não se estreitam nos papéis formais de homem e mulher; os personagens pertencem ao litoral e ao rural. Tal densidade torna-se possível, entre outras razões, pela dimensão história.
Não se trata de enfocar ilmes históricos, entendidos como aqueles que lidam com momentos ou acontecimentos abordados pela historio- graia, caso, por exemplo, dos ilmes Guerra de Canudos e Baile perfu- mado. Entende-se que o elemento histórico, no ilme, é aquele que per- mite distanciar a representação do sertão e seus sujeitos de uma construção atemporal, mítica, independente da ação dos personagens.
Essas novas conigurações imagéticas compartilham códigos e re- ferências comuns com outros pensamentos sociais, como a literatura. Como exemplo, pode-se citar o livro Galileia, de Ronaldo Correia de Brito. Nele, primos se reencontram por ocasião da morte do avô. As re- ferências ao passado e as experiências cosmopolitas e contemporâneas dos primos constituem a matéria-prima do enredo do livro. Os objetos culturais existem e são vivenciados em campos de constante reconigu- ração, bem como de trocas e compartilhamentos (BRITO, 2008).
O sertão verde de abundantes águas dos cangaceiros e da volante, a cidade do interior do Ceará e o Recife/sertão sem água constroem paisagens signiicativas na cinematograia nacional. Falam de experiên- cias outras que levam a pensar o sertão sob nova ótica.
A CENA Muda. Rio de Janeiro, n. 30, 7 set. 1954, p. 20.
A LEITURA: uma prática cultural – debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger (Org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 231-253.
ABREU, Alzira Alves de (Org.). A imprensa em transição: o jorna- lismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
ABREU, Alzira Alves et al. Dicionário histórico-biográico brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001.
AGULHA no palheiro. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 7, 4 out. 1953.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN; Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. ALLEN, Robert C.; GOMERY, Douglas. Faire l´histoire du cinémaci- nema: les modèles américaines. Paris: Nathan, 1993.
ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.
ARAÚJO, Vicente de Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976.
AUMONT, Jacques et al. L´histoire du cinémacinema: nouvelles appro- ches. Paris: Publications de la Sorbonne, 1989.
AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
AVELLAR, José Carlos. O cinema dilacerado. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986.
BAECQUE, Antoine. La cinéphilie: invention d´un regard, histoire d´une culture 1944-1968. Paris: Fayard, 2003.
BERNARDET, Jean-Claude. Historiograia clássica do cinema brasi- leiro: metodologia e pesquisa. São Paulo: Annablume, 1995.
BORGES, Miguel Borges; BUENO, Cláudio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 out. 1959. Suplemento Dominical, p. 7.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
BRANDÃO, Alessandra. O chão de asfalto de Suely. In: HAMBURGER, Ester; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro.
Estudos de cinema SOCINE. São Paulo: Annablume; Fapesp;
Socine, 2008.
BRITO, Ronaldo Correia de. Galileia. Rio de Janeiro: Objetiva. 2008. CAPOVILLA, Maurice. Rio de Janeiro, Brasil, 26 mar. 2002. 2 itas cas- setes (120 min.). Entrevista concedida a Meize Regina de Lucena Lucas. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e in- quietudes. Porto Alegre: EDEd. da UFRGS, 2002.
CINEMATECA Brasileira e seus problemas: informações e documen-
tação. São Paulo: Fundação Cinemateca Brasileira, 1964. (Cadernos da Cinemateca, n. 3.).
COMOLLI, Jean-Louis; RANCIÈRE, Jacques. Arrêt sur histoire. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 1997.
DEBS, Sylvie. Cinéma et littérature au Brésil: les mythes du sertão: émergence d’une identité nationale. Paris: L’Harmattan, 2002.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.
DIEGUES, Carlos. Cinema brasileiro: ideia e imagens. Porto Alegre: UFRGS; MEC; SESu; PROED, 1999, p. 93.
FONSECA, Geraldo. Há um cinema nacional? Revista de Cultura Cinematográica, Belo Horizonte, n. 1, p. 38-41, jul./ago. 1957.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. ______ . O que é um autor? Lisboa: Vega, 2002.
GALVÃO, Maria Rita. O historiador Alex Viany. In: VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrailme, 1987. p. 14-15.
GAUDREAULT, André et al. Ce que je vois de mon ciné… Paris: Méridiens Klincksieck, 1988.
GAUTHIER, Guy. Le documentaire: un autre cinéma. Paris: Nathan, 2002. GOMES, Paulo Emílio Salles. A volta aos ilmes. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 set. 1958a. Suplemento Literário, p. 5.
______. Cultura e custo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 ago. 1958b. Suplemento Literário, p. 5.
______. Cursos de cinema. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 dez. 1957. Suplemento Literário, p. 5.
______. Decepção e esperança. O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 fev.1960. Suplemento Literário, p. 5.
______. O cinema na Bienal. O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 jun. 1957. Suplemento Literário, p. 5.
______. O Congresso de Dubrovnik. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 out. 1956. Suplemento Literário, p. 5.
______. Perplexidades brasileiras. O Estado de São Paulo, São Paulo, 11 abr. 1959. Suplemento Literário, p. 5.
GOMES, Paulo Emílio Salles. Primazia mineira. O Estado de São Paulo, São Paulo, 31 ago. 1957. Suplemento Literário, p. 5.
______. A expressão social dos ilmes documentais no cinema mudo brasileiro. In: Mostra e Simpósio do ilme documental brasileiro. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1977.
______. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GRÜNEWALD, José Lino. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 jan. 1958. Suplemento Dominical, p. 4.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (Org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
JORNAL do Brasil. Rio de Janeiro, 10 jun. 1966. Caderno B, p. 9. JORNAL do Cinema. Rio de Janeiro, n. 20, jan. 1953, p. 17.
LACASSE, André; LACASSE, Germain; RAYNAULD, Isabelle (Org.). Le cinéma en histoire: institutions cinématographiques, récep- tion ilmique et reconstitution historique. Québec: Nota Bene; Paris: Méridiens Klincsieck, 1999. p. 29-56.
LEAL, Wills. O Nordeste no cinema. João Pessoa: FUNAPE; UFPB, 1982.
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e repre- sentação geográica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan; IUPERJ; UCAM, 1999.
MACIEL, Katia. Poeta, herói, idiota: o pensamento de cinema no Brasil. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.
MADEIRA, Angélica; VELOSO, Mariza (Org.). Descobertas do Brasil. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2001.
MARIN, Louis. Sublime Poussin. São Paulo: Edusp, 2000.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 45, v. 23, p. 11-36, 2003.
NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002.
NICHOLS, Bill. La representacion de la realidad: cuestiones y con- ceptos sobre el documental. Barcelona: Paidós, 1997.
NINEY, François. L´épreuve du réel à l´écran: essai sur le principe de réalité documentaire. Bruxelles: De Boeck, 2002.
NOVAES, José Roberto Duque. Notas sobre o cinema nacional. Revista de Cinema, Belo Horizonte, n. 9, p. 24, dez. 1954.
______. Notas sobre o cinema nacional. Revista de Cinema, Belo Horizonte, n. 10, v. 2, p. 11, jan. 1955.
O ESTADO de São Paulo. São Paulo, Primeiro caderno, 1956, p. 12. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Realismo: eis a solução! Revista de Cinema, Belo Horizonte, n. 6, p. 5-14, set. 1954.
PENAFRIA, Manuela. O ilme documentário: história, identidade, tec- nologia. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5. 10, p. 200-215, 1992.
RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.
RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe (Org.). Enciclopédia do ci- nema brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000, p. 177.
REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
RIBEIRO, José Américo. O cinema em Belo Horizonte: do cineclu- bismo à produção cinematográica na década de 60. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
RICOEUR, Paul. La mémoire, l´histoire, l´oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000.
ROSENSTONE, Robert. El pasado en imágenes: el desaio del cine a nuestra idea de la historia. Barcelona: Ariel, 1997.
SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Desenvolvimento artístico do ci- nema brasileiro. In: I Mostra do Cinema Brasileiro. São Paulo, nov./ dez. 1952.
SALLES, Francisco Luiz de Almeida. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 nov. 1956. Suplemento Literário, p. 5.
SANZ, José. Cinema nacional. Revista de Cultura Cinematográica, Belo Horizonte, n. 10, p. 43-44, fev./mar. 1959.
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SIMARD, Denis. De la nouveauté du cinéma des premiers temps. In: GAUDREAULT, André; LACASSE, Germain; RAYNAULD, Isabelle (Org.). Le cinéma en histoire: institutions cinématographi- ques, réception filmique et reconstitution historique. Québec: Éditions Nota Bene; Paris: Méridiens Klincsieck, 1999. p. 29-56. SIQUEIRA, Cyro. A revisão do método crítico. Revista de cinema, Belo Horizonte, n. 1, abr. 1954, p. 5.
SKINNER, Quentin. As fundamentações do pensamento político mo- derno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
THOMPSON, Cecília. Cinemateca Brasileira e seus problemas: in- formações e documentação. São Paulo: Fundação Cinemateca Brasileira, 1964. p. 6.
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001.
TRAVANCAS, Isabel. O livro no jornal: os suplementos literários dos jor- nais franceses e brasileiros nos anos 90. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
VELHO, Gilberto. Memória e identidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 95, p. 124-125, out./dez, 1988.
VIANA, Moniz. Agulha no palheiro. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 8, 20 jun. 1953.
VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro, Rio de Janeiro: Alhambra; Embrailme, 1987.
Meize Regina de Lucena Lucas é historiadora e trabalha no Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Fez Doutorado em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora dos livros Imagens do moderno – o olhar de
Jacques Tati e Caravana Farkas – itinerários do documentário
CEP: 60020-181 - Fortaleza - Ceará imprensa.ufc@pradm.ufc.br