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Ao longo desta dissertação, busquei evidenciar, através de referências à história do teatro e análise de práticas de criação e poéticas teatrais da cena contemporânea, elementos que enfatizam a dimensão processual no teatro. Parti da hipótese que as novas formulações artísticas que surgiram no início do século XX, período denominado por Roubine (1998) como a “era do encenador”, proporcionaram novas perspectivas acerca da autonomia da arte teatral em relação ao texto e, consequentemente, instauraram novas percepções acerca da noção de encenação, o que poderíamos em muitos casos chamar de “poética da cena” (Ramos, 2010). Para alguns reformadores da arte teatral do início do século XX – entre eles, Meierhold, Decroux e Artaud –, era preciso não só re-teatralizar o teatro, rompendo com os princípios em voga da estética naturalista e da soberania do texto dramático, libertando o teatro da autoridade da palavra, como também tornava-se necessário repensar o papel e a relação do ator com a obra teatral – o que assumirá perspectivas diferentes na prática artística de cada encenador. É nesse contexto que o teatro passa a enfatizar seu caráter processual e laboratorial, à medida que, nesse processo de renovação da linguagem, criou-se um contexto voltado para a experimentação e para a pedagogia na formação de atores, deslocando a relevância quase exclusiva que era concedida às obras para os espaços de criação. E é nos estúdios teatrais do início do século XX que esse processo em busca de um novo teatro irá se desenvolver.

Se afirmo que coube aos encenadores “reformadores da cena” trazer à tona a dimensão processual do fazer teatral, considero, porém, que Stanislávski, embora partidário da estética naturalista vigente, alinha-se a esses criadores por sua constante e consistente prática pedagógica na sistematização do trabalho do ator.

À luz do conceito de laboratorialidade (Schino), é possível identificar aproximações entre as práticas criativas realizadas nos estúdios da primeira metade do século passado e os laboratórios da segunda metade, cujas referências principais incidem no Teatro Laboratório, de Flaszen e Grotowski, e no Odin Teatret, de Eugenio Barba. Uma “afinidade” que reside em uma relação singular com o espaço, o tempo, a pesquisa e a noção do processo de criação como uma oportunidade de experimentação e formação – embora cada criador lide com esses elementos de maneira distinta. Dessa maneira, a dimensão processual dessas práticas estaria também na maneira de se olhar para o teatro, deixando de se concentrar apenas nos problemas diretamente ligados aos espetáculos e voltando-se para o processo de trabalho e as relações nele estabelecidas.

A partir daí, abordei as práticas compartilhadas de criação, procurando evidenciar a dimensão processual que se estabelece no percurso criativo desses modos de construção do espetáculo através da horizontalização das vozes artísticas presentes na criação coletiva e no processo colaborativo. Busquei ainda discutir as possíveis distinções entre os dois procedimentos de criação compartilhada no âmbito dos estudos contemporâneos, apoiada nas reflexões de Antonio Araújo, Luís Alberto de Abreu, Sílvia Fernandes, Santiago García, dentre outros.

Parti ainda da hipótese de que, por seu caráter polifônico, híbrido e coletivizado, essas práticas de criação tendem a resultar em obras que carregam as marcas do processo, transbordando na obra final o percurso percorrido em sala de ensaio. Para melhor investigar essa evidenciação da dimensão processual nas obras teatrais contemporâneas, buscamos definir o conceito de performance como linguagem (Cohen) e work in progress (Cohen), por ambos serem importantes operadores para se pensar as teatralidades contemporâneas (Fernandes).

Ainda por esta perspectiva, busquei na definição de teatro performativo (Féral), que evidencia a aproximação do teatro contemporâneo da performance ao adotar alguns de seus elementos fundadores, como a transformação do ator em performer, a opção pela descrição dos acontecimentos e da ação em detrimento da representação e da ilusão cênica, o espetáculo centrado mais na imagem e na ação do que no texto.

A dimensão processual das obras teatrais contemporâneas se evidencia através de zonas de performatividade, cenas processuais, breves, episódicas, formulações instáveis, semelhantes a workshops improvisados, que indicam seu caráter de inacabamento. Nestes casos, tem-se a dimensão de ser inviável dissociar o processo de criação da obra que dele resulta, assim como eliminar da obra, supostamente finalizada, os resíduos do processo que deixaram rastro na escritura cênico-textual.

Percorrido o traçado teórico, busquei descrever, a partir do acompanhamento do processo aliado ao estudo genético dos registros dos criadores, a experiência da Cia. Luna Lunera na criação do espetáculo Prazer. Pavis (2003) afirma que um espetáculo teatral resulta da divisão do trabalho entre os seus diversos artífices e das articulações da cena e da dramaturgia, visíveis na obra final, pois “tais traços da gênese estão ainda sensíveis e localizáveis no produto acabado, como cicatrizes de antigas operações”. Durante a análise de material, apoiada nesta perspectiva, busquei evidenciar o caráter processual que se estabeleceu no percurso criativo, procurando perceber de que modo os procedimentos que nortearam a criação permitem a construção de uma obra que, assim como no processo, carrega as marcas

de sua gênese compartilhada, híbrida e polifônica. Neste sentido, a própria seleção do material a ser reproduzido e analisado foi norteada pela procura de elementos processuais cujos rastros permanecem presentes no espetáculo.

Busquei demonstrar, através da descrição e do detalhamento de alguns procedimentos e etapas do processo, a construção de um caminho singular de criação trilhado pela Luna Lunera, ressaltando a dimensão laboratorial que permeia a prática artística do grupo. Entre os procedimentos adotados, relatei as dinâmicas e relações estabelecidas nas semanas de direção, de modo a enfatizar a rotatividade e o revezamento constante de funções ao longo do processo, criando uma sistematização que dialoga tanto com a criação coletiva – à medida que a encenação e a dramaturgia resultam da interferência e escritura de todos os integrantes do núcleo artístico do grupo – quanto com o processo colaborativo – à medida que estabelece uma “metodologia” que preconiza a divisão de funções, só que estas assumem caráter flutuante e não mais fixo. Assim, a cada momento do processo, um dos criadores conduzia a criação cênico-dramatúrgica que, ao final, carrega as marcas das proposições apresentadas por cada um deles.

As escolhas feitas ao longo do processo de criação ressaltam ainda a permeabilidade do processo às interferências criativas de todos os envolvidos, incluindo o público, que, no caso da criação de Prazer, agregou o espectador à sala de ensaio através dos encontros dos observatórios de criação. A noção de escritura compartilhada é ainda mais potencializada pela participação de colaboradores externos ao coletivo dentro do processo, criando outra rede de relações artísticas, que também deixa seus rastros na obra em construção.

Os dilemas relatados ao longo do processo e algumas soluções formais adotadas também foram descritas e analisadas no intuito de ressaltar a filiação da obra aos procedimentos do teatro performativo (Féral), que talvez seja um conceito mais pertinente ao ser confrontado com o espetáculo da Luna Lunera que o pós-dramático (Lehmann), já que o drama também é um de seus componentes, mas não mais importante que os demais.

Procedimentos como a escrita pessoal, ao lançarem mão do depoimento biográfico, enfatizam ainda a aproximação dos modos de criação adotados em Prazer com os da performance, friccionando no texto cênico-espetacular a ambiguidade entre artista e personagem – que se faz presente, por exemplo, na escolha dos nomes dos personagens que se assemelham muito, mas não são iguais, aos nomes verdadeiros dos performers.

Outro procedimento que ressaltei como evidência da processualidade na prática de criação do grupo é a constante transformação, experimentação e reconfiguração do espetáculo, tornando-o um organismo vivo, uma obra em processo.

O percurso percorrido nesta dissertação, assim como Prazer, não foi idealizado a

priori, não tinha definido um lugar ideal a se atingir, configurando-se, inicialmente, como uma

investigação acerca da processualidade manifesta nas obras teatrais contemporâneas. Muitas rotas eram possíveis para evidenciar essa dimensão processual, mas, no caminho que a mim se apresentou, estava a Cia. Luna Lunera, um encontro cujas marcas estão presentes nesta obra minha final. Assim como compartilhei com eles a criação em sala de ensaio do espetáculo, eles também compartilham comigo esta pesquisa, cujo desejo é a celebração do teatro como processo.