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Considerações Finais

No documento Programa de Pós-Graduação em Psicologia (páginas 129-133)

quando compartilhadas e ampliadas pela rede, fortalecem outras mulheres a assumir sua própria história” (Rocha, 2017, p. 28).

Todo este panorama evidenciou um protagonismo das mulheres negras nos territórios virtuais, que não cessaram em questionar as realidades postas, em expressarem suas experiências e emoções e que fizeram da escrita esse instrumento de insistência em reivindicações que são históricas, permitindo a recriação de narrativas que as colocam no lugar que é nosso por direito: no centro das nossas palavras, trajetórias e histórias.

experiências homogeneizadas, mas com experiências que anunciam um ponto de vista coletivo caracterizado por tensões em comum, mas que não necessariamente tem respostas iguais (Collins, 2019).

Busquei investigar como as relações territoriais se constituem para as mulheres negras, compreendendo que a apropriação do espaço se dá de forma diferenciada de acordo com a classe e a raça de quem o habita (Gonzalez, 1974; Santos, 1978) e que essa apropriação desigual afeta diretamente a efetivação da cidadania dessas mulheres. Tomar a escrita como uma produção cultural também objetivou compreender como ser escritora negra e assim produzir cultura é um elemento que também não é oferecido de forma igualitária para a população e o que deveria ser também um direito - tanto de produzir, publicar e consumir - transforma-se em artigo de luxo.

Desenvolver um trabalho no meio da pandemia de Covid-19, com uma conjuntura política e social complexa e limitada, apresentou-se como um desafio, me colocando no lugar de replanejamento e reconfiguração dos objetivos iniciais. No entanto, também me trouxe a feliz surpresa da postura aberta e dialógica das participantes ainda que as entrevistas tenham se dado de forma virtual, nesta escolha metodológica pude adentrar a casa das participantes, caminhar com elas pelas ruas e me conectar de forma muito íntima com as experiências compartilhadas.

As experiências compartilhadas pelas participantes revelam uma vinculação positiva com os territórios, com exceção de uma participante que justifica sua desapropriação territorial nas condições materiais que não são oferecidas, e que advém da lógica neoliberal que dificulta o viver a cidade efetivamente. A raça entra como elemento central na apropriação dos ambientes, operando como aspecto definidor do desenvolvimento de sensações de pertencimento, segurança e conforto na ocupação dos espaços, ao ponto em que estar entre os nossos é uma busca constante. É apontado ainda a forte preferência por

ocupações de espaços culturais- públicos e privados- que refletem o próprio lugar que as participantes ocupam, o de escreverem, de produzirem cultura.

A escrita é, então, uma forma das mulheres estarem no mundo, de construírem uma agência que produz questionamentos, resistências, mas também vida e cotidiano. Ainda que o processo de reconhecimento e visibilidade tenha requerido muitas lutas, hoje parte fundamental do que temos como literatura é construída por mulheres negras, é escrito por corpos que interseccionam gênero e raça. O território é, nesse sentido, o chão dessa escrita, é nele que o cotidiano se desenvolve e o que faz com que toda escrita venha de um lugar, seja físico ou social. Os territórios virtuais também se apresentam como esse campo de produção, compartilhamento e expressão da literatura produzida por mulheres negras, ganhando mais impacto na vida delas a partir do isolamento social ocorrido na pandemia.

Nesse sentido, este estudo contribui para a indispensabilidade de estratégias que busquem construir formas efetivas de ocupação dos territórios, levando em conta as necessidades de quem realmente os habita, repensando o modelo atual de gestão da cidade, que é sempre voltado para a expansão do mercado, iniciando uma discussão sobre os padrões racializados de ocupação urbana. Compreendendo o papel do Estado nesta estrutura e a distinção entre a estrutura das desigualdades e a mobilidade nessa estrutura (Hasenbalg C. , 1979), é fundamental para entender por que um mesmo Estado pode colaborar ativamente para a produção de desigualdades estruturais, ao mesmo tempo que pode fazer intervenções resolutivas sobre essas desigualdades.

Paralelamente a essas contribuições, também é necessário analisar e mapear como ocorre a produção cultural das cidades, quais os critérios que incidem na valorização de alguns corpos produtores de cultura e na desvalorização e consequente invisibilidade de outros. Faz-se necessário territorializar as políticas públicas, enxergando o protagonismo do

território na promoção de cidadania, a fim de produzir condições materiais das produções culturais (literatura, audiovisual, teatro etc.) que são historicamente invisibilizadas, sendo esta via uma estratégia de ocupação territorial e de produção de vida nos espaços.

Este trabalho também visa corroborar com a ampliação de novos campos de estudos para a psicologia ambiental, reconhecendo a importância de interseccionarmos território e pessoa, levando em conta os determinantes sociais que essa pessoa possui e o lugar- social e físico- ao qual está inserida. Diante do exposto, este trabalho visou produzir conhecimento científico centrado na experiência de corpos que são historicamente afastados dessa produção a fim de estreitar as relações entre a produção social e a intelectual, para que a ciência construa seu papel de responsabilidade sobre as transformações na sociedade, por meio da articulação com os atores sociais (Urra, 2011). Em vista disso, esta pesquisa reconhece o potencial da interdisciplinaridade e a necessidade urgente da psicologia dialogar com outras áreas, como a literatura neste trabalho, reconhecendo que o fazer científico precisa extrapolar os muros acadêmicos e reconstruir a ideia de intelectualidade.

Desta forma, é fundamental compartilhar os efeitos dessa construção em mim mesma e em meu corpo, construir conhecimento é muito mais do que um compromisso ético adotado por mim, mas uma estratégia de construir novos futuros e narrativas. Para isso compartilho uma poesia fruto das minhas afetações deste trabalho, reconhecendo a escrita desta dissertação como parte do meu processo de cura e de definição de mim mesma:

Quando criança eu muito sonhava Queria ser cantora, médica, professora

Só não queria ser negra e mulher Isso por que eu cantaria,

Mas não me ouviriam Eu me destacaria, Mas não seria suficiente

No fim, eu entendi que queria ser gente

O racismo tem um jeito de nos olhar Que nos deixa pequena Tem um jeito de nos silenciar

Que a nossa voz envenena Nos violenta com um eterno não-lugar

Que grita que o nosso corpo para a cidade não é tema Mas por insistência das minhas

Nunca parei de sonhar Escrevia desde menina

Buscando um jeito do meu corpo habitar Construir ciência também foi meu jeito de revidar

Jeito de ser um pouco do que sonhava E lembrar que sozinha não é forma de caminhar

A cada entrevista tantas emoções emergiam Horas o choro surgia, horas a admiração saltava

Ser pesquisadora é antes de tudo se afetar

Distanciar-se da falsa neutralidade e as pessoas enxergar Escrever foi como tecer fios de uma colcha Com linhas que costuravam simultaneamente

Minha vida e a das participantes Os retalhos eram as experiências vividas

Histórias de cansaço, mas também de potência sendo nutrida No meio da costura muitos desejos ecoavam

Queremos ser vistas, ouvidas e valorizadas Queremos casa, cidade e lugar

Queremos esse corpo-território reconhecido como lar Escrevemos como forma de revidar, habitar e amar

As palavras são formas de existir no mundo E eu daqui, sigo teimando em sonhar

O artesanato dessa construção É reivindicar nosso lugar De viver ao invés de morar Escrever sem o corpo calar E sonhar ao invés de minguar

No documento Programa de Pós-Graduação em Psicologia (páginas 129-133)

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