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RECONSTITUIÇÃO DA PESQUISA: DRAMAS SOCIAIS EM QUESTÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise sobre o estigma no convívio com HIV/Aids nos terreiros de Umbanda revela a riqueza de uma cultura que se fortalece e se renova diante das adversidades que lhes são impostas. Uma construção histórica de lutas e resistências que por um lado, revelam um passado de profundas perseguições e preconceitos por parte das elites (intelectual, inclusive), das igrejas e do Estado; e por outro, a determinação de seus adeptos marcados, muitas vezes, por trajetórias de exclusão social. Ainda assim, a Umbanda mostra sua vitalidade, enfrentando seus desafios internos e externos e (re)inventando suas práticas culturais diante de sua sobrevivência.

Os umbandistas portadores de HIV/Aids, em meios as incertezas, as fragilidades e as vulnerabilidades impostas por sua condição de soropositividade, encontraram no cenário da Umbanda o acolhimento necessário para o reestabelecimento de seu equilíbrio vital. No entanto, considerando que os valores religiosos não estão desconectados da forma como a sociedade se mantém e se reproduz, a convivência com as pessoas que vivem com HIV/Aids muitas vezes são marcadas pelo estigma que a própria Aids produz, sobretudo, durante os primeiros anos de convivência com a epidemia.

O estigma expressa os significados e práticas culturais que englobam interesses e sinalizam distinções sociais entre indivíduos, grupos e instituições. Nas relações cotidianas nos terreiros, atitudes como a separação de utensílios domésticos de uso coletivo como pratos, copos e talheres, e o medo do consumo de alimentos produzidos por portadores de HIV reproduzem o desejo de distanciamento do convívio social com aquele sujeito afetado pelo vírus. Os adeptos se sentiam ameaçados pela possibilidade de contaminação com o vírus no convívio com o portador de HIV.

A crise provocada pela incidência de casos de HIV e os dramas sociais vivenciados no convívio com a doença entre os adeptos da Umbanda em Fortaleza chamaram atenção para o cuidado com a transmissão do vírus e as práticas que pudessem por em risco a contaminação, no caso, àquelas que envolvessem cortes ou a utilização de objetos perfuro- cortantes durante os rituais. Porém, as primeiras ações de prevenção à Aids realizadas nos terreiros foram mobilizadas a partir do envolvimento dos próprios adeptos da Umbanda, sejam eles homossexuais, pessoas vivendo com HIV/Aids ou profissionais de saúde.

Da crise motivada pela descoberta e revelação da soropositividade do adepto na comunidade dos terreiros, surgem formas variadas de lhe dar com a situação. As tensões e os conflitos vivenciados no interior daquela comunidade revelam o drama e a necessidade das lideranças tomarem decisões em termos de imperativos e constrangimentos morais muitas vezes arraigados na própria religião. Visto que a própria Umbanda foi historicamente uma religião discriminada que acolheu diversos públicos estigmatizados como pobres, negros (também brancos e classe média), prostitutas, homossexuais, portadores de diversas doenças, dentre outros, além de possuírem lideranças estigmatizadas fora da religião, mas respeitadas dentro dela, e que malgrado as perseguições sofridas pela religião, ela permanece viva (re)inventando velhas e novas práticas culturais no desafio pela sobrevivência.

O acolhimento e a intervenção político-solidária que ampliam os conhecimentos sobre os riscos de contaminação e os meios de convivência com o HIV/Aids são elementos importantes neste processo. As ações de acolhimento realizadas por pais, mães e filhos de santo no cotidiano dos adeptos e nos rituais de cura aos poucos atenuam os episódios de conflitos gerados pela problemática do HIV/Aids. O conhecimento de uma longa tradição, o exercício da escuta e do aconselhamento, a disponibilidade de tempo e energia para o acompanhamento no tratamento diminuem as distâncias entre o enfermo e o cuidador, entre o enfermo e a comunidade do terreiro. A iniciativa também reflete o caráter educativo e solidário das ações que envolvem toda a comunidade do terreiro, e que perdura na memória dos indivíduos de várias gerações. No processo educativo, a ameaça e o medo da Aids vai cedendo para uma atitude mais propositiva diante das aflições causadas pela doença.

A experiência com o HIV/Aids entre os adeptos da Umbanda faz com que o grupo compartilhe informações sobre as formas de transmissão e convívio com a doença, onde, muitas vezes, o próprio portador do vírus passa a ser um agente multiplicador da prevenção e do cuidado com a irmandade do terreiro. A superação do preconceito e a (re)configuração da identidade deteriorada, estigmatizada, do umbandista portador de HIV, passa pela aceitação pessoal de sua condição e o reconhecimento e legitimação social de seus pares diante da problemática. Neste sentido, o terreiro efetiva seu caráter acolhedor, de inclusão e participação da diversidade, enquanto o adepto portador de HIV encontra o espaço adequado para o cuidado de si e de sua irmandade do terreiro.

O engajamento político e a militância pelos direitos humanos das pessoas vivendo com HIV/Aids, aliado a luta pelos direitos do público LGBT, também surgem a partir destas

experiências. Uma intervenção político-solidária provocará a organização de grupos em defesa dos direitos destes sujeitos excluídos, bem como a reivindicação junto ao poder público pelo acesso aos serviços de saúde de prevenção e assistência ao HIV/Aids.

Todavia, no embate em se organizar, se fazer representar junto ao poder público e mobilizar as ações efetivas junto à comunidade dos terreiros, percebemos que o movimento organizado através da Rede de Terreiros mantém uma agenda ainda tímida, pontual, sem planejamento e apoio necessário por parte do poder público, bem como da maioria dos umbandistas cearenses. O desafio é grande diante da ausência de uma política pública em saúde de Estado voltada para a população em questão.

No cenário das práticas em saúde nos terreiros no convívio com o HIV/Aids, o reconhecimento da problemática e das formas de convivência encontram-se mais acessíveis, menos conflituosas. No entanto, a aflição e o acolhimento ao adepto portador de HIV/Aids perduram continuamente, diante da dinâmica da reprodução da própria Umbanda, com seus desafios internos e externos, na (re)invensão das suas práticas culturais, no convívio permanente entre seus adeptos, bem como na luta diária por seu reconhecimento diante da sociedade em geral.

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