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José Lins do Rego foi autor de vastíssima obra. Sua natureza de escritor memorialista o consagrou como um representante de mais puro estilo de narrativa sobre o Nordeste. Sevcenko (2003, p.286) aponta as mudanças e transformações que ocorreram no Brasil; “mudanças que foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se transformaram em literatura”. Em vista disso podemos atribuir a literatura de Lins o Rego como importante recorte do tempo e espaço do Nordeste.

As transfigurações ocorridas no espaço e no tempo vivido por Lins do Rego são fundamentais no processo de construção de sua narrativa romanesca. Esta é viva no seio do homem que saiu da várzea paraibana e encontrou no Recife uma realidade espacial para se trabalhar uma literatura cujo enredo fugisse, em parte, a temática do mundo rural. Essa vivência foi posta no romance ficcional, trazendo nela impressões, sentimentos, dúvidas, incertezas, sensibilidades.

O enredo do romance, objeto de nossa pesquisa, norteou nosso olhar mais crítico sobre as questões vividas pelo personagem principal, exprimindo com profundidade o lado perverso da cidade recifense. As representações do campo e da cidade, e suas relações de comparação na trama romanesca objetivam visualizar a geografia presente na obra do autor paraibano.

O processo de construção de bases teóricas e metodológicas foi sendo paulatinamente discutido na Geografia internacional e nacional. O resgate do humanismo na Geografia, valorizando o homem em sua totalidade, em todas suas dimensões, promoveu a arte como campo importante a ser utilizado nas interpretações e

análises do espaço. O romance sendo um documento de cultura assinala sua importância na interpretação da realidade geográfica.

A utilização de “O moleque Ricardo” está no sentido de apoio que este reveste-se na interpretação dos fatos ocorridos num momento e espaço específico. As narrativas ficcionais de Lins do Rego são produtos de suas memórias. Suas vivências, intenções, o conhecimento da geografia do lugar vivido constituem uma revelação do cotidiano do romancista. O amor ao solo, a experiências com o lugar, a interpretação do espaço geográfico são imanências na literatura ficcional linsdoregueana. A clareza e a expressividade de sua obra criam o imaginário do Nordeste agrário, atrasado, paternalista, dos mocambos e das lutas políticas.

A trajetória do moleque da bagaceira do engenho Santa Rosa sintetiza o painel social vivido pelo o autor de Pilar. Representam o drama vivido por uma criança negra com destino já tracejado, porém foge, vai à luta por não concordar em ser um trabalhador alugado, semi-escravo das terras do coronel José Paulino. Projeta o Recife como marco para uma nova vida. Escuta o povo do engenho, os que iam morar em terras desconhecidas, falar muito bem da cidade, e almeja conhecer essa paisagem desconhecida. Ricardo só queria ser feliz. Queria amar, ser amado.

As relações entre ricos e pobres são distantes daquelas que o moleque entendia quando morava no engenho Santa Rosa. Na cidade não existia sentimentalismo entre ricos e pobres. Seu Alexandre em nada lembrava o coronel Paulino. Sentia saudades do velho coronel, inclusive dos gritos, mas sabia da bondade do seu antigo dono. As amarras sociais entre os negros com as pessoas da casa-grande eram mais afetivas. Na padaria de seu Alexandre existia esse espaço lacunar entre camadas sociais. A relação de seu Alexandre com os operários da padaria tinha suas reservas.

Os anos vividos no Recife são suficientes para o antigo moleque entender que o engenho o acolhera melhor. A simbologia da paisagem do engenho o conforta. As experiências do Recife foram cruéis.

O desengano com o Recife foi maior quando passou a conviver com os amigos de trabalho, em especial Florêncio. Vivendo na rua do Cisco Florêncio e sua família sobreviviam do caranguejo e de objetos achados nos mangues. Ricardo constata a condição miserável do masseiro, e piora quando o mesmo entra em luta em nome dos operários do movimento grevista. Ferido e morando naquela podridão do mangue Florência vai morrendo aos poucos. Ricardo impressionado com aquela situação sente- se mais enojado da cidade. Testemunha do estado de penúria do amigo Ricardo socorre

aquela família. Sente-se mal ao ver amigo entrando na rua, ferido, quase um morto- vivo, e os filhos enaltecendo a figura do pai: “- Mãe sabia que o pai era herói? Foi seu Gomes que disse à gente [...] Florêncio, o herói do Diário do Povo, sem um tostão no bolso, com os filhos rotos, a mulher em casa e a fome atrás deles, como cachorro danado”. (REGO, 1999, p.87). Essa ironia flagrante na obra de Lins do Rego é marcante, quando relata a volta do masseiro a sua casa, com os filhos magros e a mulher passando fome.

A obra “O moleque Ricardo” configura-se como importante meio de análise geográfica. Entrecruzar Geografia e literatura para uma análise da relação campo e cidade, suas significações imaginárias, representações simbólicas do real, permitem realizar uma leitura da paisagem e dos lugares. A fuga de Ricardo do engenho à cidade recifense foi um recorte do tempo e espaço de um Brasil constituído de inúmeros problemas de ordem econômica, social, cultural e política.

No nosso entender esse trabalho torna-se relevante, pois amarra o campo da ciência e da arte como forma de interpretar e analisar o espaço. As memórias ficcionais de Lins do Rego são possibilidades de representações do real, e nelas confiamos no sentido de entendê-las como fonte documental.