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Acreditamos que nosso estudo pode contribuir para a discussão acerca da concepção da cidadania no século XIX. Direcionamos nossa abordagem para a compreensão da presença do critério da cor da pele como fator de distinção entre os indivíduos na sociedade de Mariana, em relação à legislação do Império que estabelecia a igualdade de direitos entre os cidadãos, independentemente da cor. A partir da análise de alguns estudos sobre os períodos colonial e imperial, pudemos perceber as permanências e mudanças na compreensão dos contemporâ- neos sobre os indivíduos de cor e nos usos e sentidos atribuídos aos designativos de cor. Vimos que o período colonial herdou as concepções hierárquicas do Anti- go Regime português, em que critérios classificatórios definiam os lugares e fun- ções sociais dos indivíduos na sociedade. Tratando-se de uma sociedade escravis- ta, a cor da pele se tornou um critério hierarquizante e estava relacionada ao con- ceito de ―pureza de sangue‖, de legitimidade do nascimento. Assim, os indivíduos de cor eram vistos como pessoas de ―sangue infecto‖, de ―ínfima condição‖ e da mais baixa posição social. Tal distinção ainda foi reforçada pela legislação coloni- al, que previa um tratamento diferenciado aos indivíduos de cor.

Já no período imperial, conforme a legislação em vigor, todos os indiví- duos eram iguais, não havendo distinções. No entanto, a referência à cor da pele das pessoas continuou a acontecer em alguns momentos e cada vez mais essa refe- rência se dava através de uma identificação direta entre a cor e a condição da es- cravidão negra. Nesse sentido, deixava-se de relacioná-la à idéia de legitimidade do nascimento. Assim, nesse novo contexto, os indivíduos passaram a reivindicar por igualdade de direitos entre todos os cidadãos, independentemente da cor. Os designativos passaram a ser compreendidos, então, de uma forma mais politizada e ―racializada‖.

Em suma, entendemos que a continuidade da referência à cor no período do Império do Brasil aparece como uma herança do período colonial. Entretanto, a inserção dos indivíduos de cor na nova ordem de direitos durante o século XIX, faz com que a concepção em relação à cor se adeque ao novo contexto de igualda- de.

Ao analisarmos os textos da Constituição, dos Códigos e da historiografia sobre o tema, compreendemos a elaboração da legislação do Império como um processo, sob a perspectiva da lei, de eliminação da diferenciação pela cor como forma de universalização da cidadania, uma vez que não observamos, em nenhum momento, alguma referência ou forma de distinção entre os indivíduos por meio do critério da cor da pele. Também entendemos que a criação da legislação que se iniciou com a Constituição de 1824, levou em consideração a preocupação em ter sob controle a população de cor livre e escrava. Sob essa perspectiva, a solução encontrada foi a incorporação de todos os homens livres na categoria de cidadãos, excluindo-se os libertos africanos e os escravos. Não se recorreu a critérios de cor/raciais para estabelecer as diferenças, essas se deram no âmbito político, atra- vés dos critérios socioeconômicos. Contudo, todos os cidadãos tinham acesso pelo menos aos direitos civis. Dessa forma, a definição de cidadania veio reforçar as diferenças entre o mundo dos livres e o dos escravos e tornava a condição de ci- dadão atraente, além de contribuir para a manutenção do sistema escravista.

A elaboração da legislação imperial complementou-se com a promulgação dos Códigos Criminal e Processual. O Código Criminal de 1830 definiu normas penais específicas para os cativos, o que colocava os indivíduos livres e libertos na mesma condição de livres, sujeitos às mesmas normas, diferenciando-os, então, dos escravos. Da mesma maneira, em relação aos crimes de injúria e calúnia, não se recorreu ao critério de cor em suas definições. Porém, uma vez que puniu tais crimes, mesmo isso não estando especificado em seu texto, acabou por reforçar a idéia de igualdade entre os cidadãos de todas as cores e contribuiu para tornar a condição de cidadão atraente, como já indicamos. Complementando a elaboração da estrutura jurídica, o Código do Processo Criminal de 1832 igualmente se pau- tou nas diferenças entre os livres e os escravos. Estabeleceu normas específicas para os cativos e não recorreu a critérios de cor/raciais em nenhum momento de seu texto – tornando, mais uma vez, a cidadania atraente, e, no fim, visava contro- lar a população de cor livre e escrava.

Portanto, entendemos que o critério da cor da pele e a instituição da escra- vidão foram recriados nessa nova ordem constitucional com a incorporação dos indivíduos de cor e não na sua segregação com base na cor – a distinção se dava pela condição de ser livre ou escravo, o que tornava a cidadania almejada: ser ci- dadão era ser livre e possuir direitos. A legislação foi, então, o projeto de futuro

dessa sociedade escravista e liberal, permitindo a igualdade entre os cidadãos, independentemente da cor, bem como a manutenção da escravidão.

A cidadania não foi compreendida apenas pelo viés político, pois, como vimos, existiram formas externas às instruções previstas na lei de ativá-la, como: participar da imprensa política, dirigir petições e reclamações ao governo, ou o simples direito de se manifestar por conflitos do cotidiano – por essa razão, acre- ditamos que nosso estudo se inclui nessa perspectiva. Entendemos os processos criminais que envolveram os crimes de injúria e/ou calúnia relativas à cor da pele como formas de se manifestar por conflitos do cotidiano, em que foi preciso se contrapor à condição da escravidão negra, uma vez que os insultos foram feitos com o objetivo de inferiorizar os indivíduos, buscando aproximá-los da condição escravista. Assim, consideramos que essas situações devem ser ressaltadas, pois os indivíduos se sentiram insultados e procuraram a ação mediadora da justiça, que considerou o ato criminoso.

Então, esses processos, além de demonstrarem que os indivíduos que re- correram à justiça tinham conhecimento da legislação do Império, revelam tam- bém que eles buscavam ativar seus direitos de cidadãos, compreendidos de acordo com suas experiências cotidianas. Ao reagirem aos insultos, acreditamos que os indivíduos buscaram reafirmar a condição de livres e cidadãos, estabelecendo ao mesmo tempo uma diferenciação e um distanciamento da condição da escravidão negra. Tais processos foram formas de expressão da compreensão da cidadania. Também foi possível perceber que era a proximidade ou o afastamento da escra- vidão negra que orientava o uso dos designativos de cor nos crimes de injúria e/ou calúnia. Em relação ao registro da cor da pele nos momentos de caracterização dos envolvidos nos processos, compreendemos que além de ter sido uma forma de identificação física, também estabelecia uma diferenciação, revelando a proximi- dade ou o afastamento da condição escrava.

Enfim, a escravidão e a cor da pele eram aspectos importantes e norteado- res da sociedade do termo de Mariana no período entre 1824 a 1850. A idéia da mácula da cor presente no período colonial e que tinha como base a escravidão negra, se fazia presente, mas agora sob uma nova concepção. A legislação estabe- leceu a igualdade entre os cidadãos, mas a sociedade escravista acabou por per- manecer diferenciando os indivíduos (agora cidadãos) através da referência à cor, visto que a continuidade do sistema escravista fazia com que a condição da escra-

vidão negra orientasse a inserção (ou não) dos cidadãos de todas as cores: pardos, cabras, mulatos, negros e pretos, nesse novo contexto de ―igualdade‖ perante a lei.

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