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Após esse mergulho na Capoeira Angola e no Congado Mineiro e em seus modos de ser, muitos foram os aprendizados para mim. De alguma forma, essas considerações finais também são um começo, seguindo a circularidade dessas tradições, pois depois de tantas reflexões, saio com um novo olhar para o universo das culturas populares afro-brasileiras.

O que motivou a fazer este trabalho foi um certo fascínio por essas culturas, depois de minhas vivências com algumas dessas tradições. Agora, meu encanto é ainda maior, tendo descoberto algumas coisas e passado ao largo de outras, tendo ouvido muitas vozes de mestres e mestras capoeiristas e congadeiros. Em especial, a da Mestra Alcione, que gentilmente cedeu uma preciosa entrevista cujo rico material resultou na reverberação de sua voz por todo o trabalho . 125

Um aspecto que mais me entusiasmou foi justamente o de dar voz a essas pessoas, a seus saberes, a suas histórias; pois nesse lugar da escuta vislumbrei poéticas, belezas, tristezas, brincadeiras, mas, sobretudo, a luta constante contra o esquecimento - imposto nas ações institucionais, movidas pela epistemologia dominante. Nossa sociedade contemporânea está prenhe de esquecimento, produz vazios, impõe brutalmente às culturas da diáspora seu modus operandi​, em ações coercitivas como formas de apagamento. Como consequência ao esquecimento, vem a insegurança, os sentimentos de não pertencimento e o medo manifesto em diversas posturas e situações.

Depois de nos aproximarmos das origens históricas da capoeira e do congado, concluo que o surgimento dessas tradições nasce da necessidade vital, de pessoas antes escravizadas, sub-humanizadas, despojadas de suas identidades e culturas originárias, reinventarem seus ritos e se fortalecerem em suas comunidades. Suas vidas se preenchem de sentido com a luta-dança-jogo e por meio da celebração da fé, pois assim se reencontram os antepassados perdidos para o doloroso processo colonizatório. Os antepassados se reencontram na dança sonora da gunga, do Congado, no soar do toque do berimbau gunga, da Capoeira Angola. A prática musical se preserva enquanto a ponte à ancestralidade, mas também como sua encarnação sonora.

Com a abordagem que fizemos de conflitos bastante atuais, concluo que a persistência dessas práticas em se manterem vivas, sua resiliência ao longo do tempo e as suas transformações e apropriações necessárias enquanto estratégia de sobrevivência caracterizam um forte movimento político. Esse movimento é o de libertação dos corpos objetificados, num empenho decolonialista, ou melhor, de “contra colonização”, conforme o conceito do pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo) - que designa “contra colonização” como definição do enfrentamento entre os povos afro-diaspóricos e povos ameríndios contra os povos colonizadores, não aceitando a lógica implícita no termo “decolonial”, por entender que o processo de colonização não acabou e permanece vigente (SANTOS, 2015). E, por derivação, num empenho antirracista - já que o que gera o racismo é o colonialismo.

A Capoeira e o Congado não são práticas periféricas, no sentido de serem centradas em si mesmas, mas, ainda assim, operam nas frestas de nossa sociedade e a seu modo a confrontam e a desafiam. A lógica diferenciada, a racionalidade orgânica 126 de tempo circular, memória coletiva, comunitarismo, transmissão pela oralidade, ritualidade, religiosidade, a festa, o sagrado em amálgama com o profano, configuram as maneiras de ser das tradições afro-brasileiras. Somente por existirem, já incomodam e perturbam a lógica normativa, ocidental e cristã vigente, que quer ser única. A existência dessas tradições representa o fracasso do processo colonialista de epistemicídio dos povos afro-diaspóricos. Mas, como vimos, a luta é constante e ainda necessária, pois os conflitos e embates perduram.

Essa resistência, que já dura muitos séculos, só foi possível por causa da boa organização dessas tradições. Todas as ações dos grupos dominantes que visam menosprezar essas culturas - como chamar o Congado de “carnaval” no sentido pejorativo, ignorando as complexas formas de organização e estruturação da tradição congadeira; como categorizar de “desordem” uma roda de capoeira de rua, desrespeitando toda a sua história de luta por legitimação; e tantas outras situações de conflito - infelizmente ocorrem cotidianamente.

Corpos podem ser dominados, domados, exterminados, mas o som tem a potência de invadir os altos prédios, de perpassar os topos dos muros de nossas cidades cinzentas. O som do Congado Mineiro e da Capoeira Angola, assim como de outras tradições afro-brasileiras, 126 Termo usado por Gil Amâncio ​in:​ Encontro Regional Unificado da ABEM (Associação Brasileira de

Educação Musical) - Sudeste. Mesa 5: Perspectivas decoloniais, pluriepistêmicas e antirracistas em Educação Musical. Transmissão ao vivo em: 13/11/2020. Disponível em:<​https://youtu.be/USFni1LLvNQ​>. Acesso em: 13/11/2020.

rompe as barreiras impostas, invade as esquinas e encruzilhadas com insuspeitas vozes, gritos, cantos, orações. Faz soar as vozes dos tambores ancestrais, o lamento dos berimbaus-mães, a estridência das gungas. Ecoam histórias, memórias e sonhos, que vibram em outros corpos, re’percutem em outros lugares - vibraram em mim.

Referências

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Discografia

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