• Nenhum resultado encontrado

"Não há silêncio bastante/ Para o meu silêncio" (HILST, 2017, p. 81). Os versos que abrem o Roteiro do Silêncio ainda ecoam como uma forma de alerta: aceite a impossibilidade, só assim há silêncio. Não se "conclui" uma leitura de Hilda Hilst, apenas interrompe-se, sujeita-se ao vazio que permanece. É muito difícil tentar fazer "ciência" daquilo que, em fundamento, já se declara contrário à toda razão. A tentativa no gesto poético de Hilst parece ser o total oposto àquilo que "se entenda". Seu único compromisso é a pergunta; a tentativa; é levar seu leitor à uma profunda consciência de que ser no mundo só se faz possível quando se perde. É, ainda, extensão; fulgor; é rio que flui sem necessidade de oceano, pois encontra no caminho propósito de ser. Hilda Hilst faz de sua tentativa, religião.

Percorrer as vias sinuosas, escorregadias, movediças do silêncio e, ainda assim, tentar "domá-lo"em algum tipo de forma (ou reverberação; sombra) é tão penoso quanto fascinante. Ter escolhido dois livros que, já no título, assumem sua identidade numa procura ou intenção do/ de silêncio não é casual. A tentativa foi, também, percorrer um maior escopo temporal. Afinal, a fruição do eu através do tempo parece ser recorrente se queremos falar em modernidade e, assim, na obra de Hilst. Além disso, parece haver um fator "cabalístico" na escolha por um livro publicado em 1959 e outro em 1995; respeitando assim parte do que é muito caro à Hilda: a busca por algo de metafísico, sobrenatural na arte, na vida. Como, oportunamente, afirma a própria Hilda Hilst, “é inútil ficar dizendo que um poeta ou um escritor precisam ser naturais, uma vez que eles são é diferentes, mais atentos, e captam coisas e estados emocionais que os outros não veem ou não sentem. Porque sabem que em tudo há sacralidade” (HILST, entrevista com Noelly Novaes, 1989). Hilda Hilst, definitivamente, "captou" esse outro e, sem dúvida, estendeu tal experiência a seu leitor.

Ainda assim, tentar mapear o signo através do silêncio que Hilst engendra se mostra tarefa importante para que sua obra continue a ecoar. Em levantamento bibliográfico recente, Diniz (2018) elenca uma significativa presença de pesquisas relacionadas ao silêncio, assim como das duas obras que aqui comentamos. Sendo o Roteiro do Silêncio (1959) um pouco menos citado em índices indexadores (contando com oito entradas) do que Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995) - com quatorze referências em trabalhos, segundo Diniz. Ainda, os temas mais comumente relacionados ao silêncio em Hilda Hilst seriam: o erótico; a morte; a divindade e a infância. Dessa

forma, percebe-se que a relação estabelecida com o silêncio na obra de Hilst se dá muito mais na ordem de construção de uma linguagem que faça falar diferentes instâncias do ser no mundo moderno do que o silêncio como temática.

Ainda assim, ao lermos Roteiro do Silêncio no presente estudo, tentamos demonstrar de que formas a busca pelo circundante da linguagem através do silêncio pode, também, constituir temática relevante para a autora. Cantares do Sem Nome e de Partidas, por outro lado, parece ser a busca do eu por significar o mundo através da linguagem do silêncio, tornando-se essa linguagem matéria e não-matéria, uma substância universal. Vale ressaltar, novamente, que uma das premissas que Hilst parece estabelecer em sua obra é a de que nada é tão rígido; ou fixo; ou uno quanto parece. Tentar designar apenas uma forma de perscrutar o silêncio em sua obra, seria, portanto, ir de encontro com o que parece ser uma de suas principais marcas poéticas. Cabe, portanto, apenas observar as tantas maneiras de demonstrar o movimento da linguagem do silêncio a que a obra da autora se dispôs. Ainda, ressaltar aspectos contrastantes do uso do silêncio em ambas as obras, tentando assim, refletir acerca da miríade de possibilidades estabelecidas quando a linguagem se pauta no silêncio.

Hilda Hilst é conjugação; é sobreposição do bem e do mal; do sobrenatural e do terreno; de Deus e Satã; do eu no outro; é vontade; ânsia; é movimento; fruição do eu no mundo. Ler Hilda Hilst é aceitar que mal-estar convive com prazer; é silenciar quando se quer falar; é falar do silêncio. É consentir que silêncio seja, concomitantemente, ruptura e parte; esfera integradora da linguagem. Assim também, não faria sentido incorporar apenas uma teoria: a "contradição" (ou a conjugação de oposições) em um trabalho que fale de Hilda Hilst é também respeitar sua empreitada. O que é o silêncio em Hilda Hilst? É tudo e é nada; é movimento da linguagem; dos sentidos; é vontade do eu; é alcance do outro; é transcendência feita real. O silêncio é a expressão do eu no mundo. A escrita e, consequentemente, o silêncio que dela se faz possível, de Hilda Hilst é a entrega ao risco de pertencimento do eu no mundo moderno; de apaziguamento da incompreensível inquietação. É submissão à morte (de Blanchot) para que o eu se sinta, finalmente,

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio F. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

AMARAL, Alberto; SOUZA, Debora. A escrita, o silêncio da literatura improrrogável no pensamento blanchotiano. Revista Polis e Psique. Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2017.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 2. ed. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1981.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica, Arte

e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São

Paulo, Brasiliense, 1994.

_____________. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica,

Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São

Paulo, Brasiliense, 1994.

______________. Paris, capital do século XIX. In: Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

BÍBLIA, A. T. Cântico dos Cânticos. In: BÍBLIA. A Bíblia anotada: edição expandida/ Charles C. Ryrie. Tradução: Susan Klassen. São Paulo: Mundo Cristão, 2007. p. 654.

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

COMPAGNON, Antonie. Os Cinco Paradoxos da Modernidade. Tradução de Cleonice P. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

DESTRI. Luisa de Aguiar. De Tua Sábia Ausência: A poesia de Hilda Hilst e a tradição lírica

amorosa. 2010. 145f. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos

DINIZ, Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013.

DINIZ, Cristiano. Fortuna Crítica de Hilda Hilst: levantamento bibliográfico atualizado

(1949 - 2018). Campinas, SP: UNICAMP/ IEL/ Setor de Publicações; UNICAMP/ IEL/ CEDAE,

2018.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 9ª ed. Tradução Salma Tammus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

GORZ, André. Carta a D. Trad. de Celso Azzan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.

HARVEY, David. Paris, capital da modernidade. Trad. de Magda Lopes. São Paulo: Boitempo, 2015.

HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, 2000.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LABRIOLA, Rodrigo. Neobarroco na América Latina, teoria literária e incômodo epistemológico.

Revista Eutonomia. Pernambuco, v. 1, n. 2, 2008.

LEMOS, Saulo. Quando a Literatura é real - Barthes x Compagnon (com um aparte de Xavier).

Revista Escrita. Rio de Janeiro, n. 14, 2012.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

_________________. O Ovo e a Galinha. In: Todos os Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

MATTHEWS, Eric. Compreender Merleau-Ponty. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

___________________. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves, Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

___________________. O visível e o invisível. 4. ed. Tradução de José Artur Gianotti, Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2009.

MONNIER, Adrienne. Rua do Odéon. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 2. Ed. Editora da Unicamp, Campinas, 1993.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Trd. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

PELLEJERO, E. A lição do aluno: uma introdução à filosofia de Jacques Rancière. Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/saberes. Acesso em 22/11/2010. Originariamente publicado em Saberes, Natal/RN, v. 2, n.3, dez., 2009.

POE, Edgar Allan. O Corvo. In: Edgar Allan Poe: Ficção completa, poesias & ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997.

RANCIÈRE, Jacques. El malestar en la estetica. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2011.

SARMENTO-PANTOJA, Tânia. Pensar sobre a dissidência. Inconsciente estético de Jacques Ranciere. Margens Interdisciplinar. Abaetetuba/PA, v. 7, n. 9, 2013.

SARTRE, Jean-Paul. Que é Literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989.

SONTAG, Susan. A Vontade Radical - Estilos. Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

STEINER, George. Extraterritorial: A Literatura e a Revolução da Linguagem. Trad. de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

_____________. Linguagem e silêncio - ensaios sobre a crise da palavra. Tradução de Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

WILLER, Cláudio. Massao Ohno, Hilda Hilst e a busca da Poesia Total. Revista Biblioteca Mário

Documentos relacionados