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Atualmente, quase todos os indivíduos tornaram-se em alguma medida produtores de imagens. Nos mais variados campos do conhecimento humano o sentido da visão pode ter sido um dos que mais colaborou no processo de complexificação e estruturação de novos procedimentos científicos, de novas categorias de pensamento analítico e, consequentemente, em transformações significativas em todas as esferas da vida em sociedade. A velocidade das interações globais imagéticas cada vez mais atingem níveis difíceis de serem estipulados ou analisados pelos próprios entusiastas tecnológicos criadores dessas novas formas de socialização. Se as imagens nos convocam a pensar, será que estamos pensando ao produzi-lás ou apenas reproduzindo acriticamente regimes de representação já experimentados?

Conforme evidenciamos no primeiro capítulo, o fenômeno da globalização acelerou de tal forma os processos de trocas culturais ao ponto de antropólogos substancialistas temerem o desaparecimento de seu objeto de estudo. Dado, no entanto, a manutenção das especificidades culturais e até mesmo o reforço de processos identitários locais (HALL, 2002), a antropologia abriu-se ao estudo das dimensões políticas vinculadas a manifestação de identidades étnicas diversas. É nessa perspectiva que populações indígenas, movimentos sociais e seus respectivos apoiadores perceberam em instrumentos imagéticos contemporâneos uma possível estratégia para mobilização de interesses coletivos e afirmação cultural.

No contexto brasileiro, as primeiras iniciativas de utilização de suportes videográficos junto a populações indígenas foram realizadas, principalmente, em virtude da construção de grandes empreendimentos governamentais em áreas indígenas, tais como hidrelétricas e rodovias. A partir de década de 70, algumas ONG's e cineastas conseguiram recursos financeiros do exterior para atuarem em comunidades indígenas e pensar através da imagem os diversos impactos sócio-culturais dessas grandes obras na vida dos índios. Nesse sentido, grupos indígenas como os Kayapó (Mato Grosso e Pará), e os Xavante (Mato Grosso) foram contactados por essas instituições e cineastas com o objetivo de levar a tecnologia videográfica como instrumento que daria a oportunidade de voz aos indígenas, permitindo-lhes afirmar seus interesses econômicos e manifestar suas especificidades culturais.

É possível notar, portanto, marcantes diferenças no contexto de apropriação e nos usos da tecnologia videográfica entre esses povos indígenas e as comunidades Tapeba. No caso dos Kaiapó, dos Xavante e de outras tribos no norte e no centro-oeste não tratava-se da necessidade urgente de lhes conferir reconhecimento étnico ou afirmação identitária, mas sim de contrapor projetos políticos que iriam atingir diretamente suas terras, causando diversos impactos ambientais, econômicos e sócio- culturais. Já no caso dos índios Tapeba no Ceará, as primeiras iniciativas em torno da utilização de instrumentos imagéticos buscavam conferir aos índios reconhecimento étnico, sendo necessário lhes proporcionar visibilidade e sentimento de pertença a uma etnia a partir de uma reconstituição histórica.

Nessa perspectiva, era também fundamental aos índios Tapeba a própria identificação de especifidaces culturais entre o grupo de pessoas que se reconheciam indígenas. Através das memórias coletivas e dos relatos de histórias proporcionados dentro da narrativa audiovisual, poderia então ser realizado esse processo de identificação étnica e até mesmo a manifestação de práticas culturais de resistência, ou seja, o instrumento imagético-sonoro viria a se constituir como um meio de conscientização étnica e reelaboração cultural.

De acordo com Bartolomé (2000), os referentes culturais assumidos como distintivos por uma determinada coletividade passam a fazer parte de uma chamada cultura de resistência, a qual será de fundamental importância para a configuração de sua identidade étnica. Imediatamente anterior a esse processo, o grupo "necessita" também da consciência étnica para efetivamente opor-se de forma distinta a sociedade e obter reconhecimento social.

"É por isso, já faz algum tempo, que propus recorrer ao conceito de consciência étnica, entedida como a forma ideológica que adquirem as representanções coletivas do conjunto de relações intragrupais (M. Bartolomé, 1979,1988). Conceito complementar ao de identidade étnica pretende designar o espaço interior do processo de identificação e conjugá-lo com o espaço exterior: as relações entre nós são tão significativas como as reações com os outros. Busca-se, assim, nominar aqueles fenômenos relativos à identidade que se constroem no interior de um grupo étnico e que, frequentemente, se referem a um conjunto de elementos culturais que a sociedade considera fundamentais para sua definição coletiva." (BARTOLOMÉ, 2000, págs. 137-138).

Desde o início da década de 80, em seus primeiros contatos com o grupo de pessoas identificadas como indígenas em Caucaia, percebemos a utilização estratégica de suportes imagéticos pela Arquidiocese de Fortaleza e, posteriomente, por organizações específicas criadas para trabalhar a questão indígena no munícipio. Nos primeiros anos, conforme nos informou um dos coordenadores da extinta Pastoral Indigenista, José Cordeiro, foram realizados diversos registros fotográficos nas comunidades Tapeba visitadas pela equipe da Igreja Católica, principalmente nas ocasiões em que o próprio Dom Aloísio Lorscheider estava presente nas comunidades.

Nota-se, portanto, que mesmo anteriormente ao processo de realização do vídeo "Tapeba: resgate e memória de uma tribo", em 1985, a equipe da Arquidiocese já empregava o uso de suportes imagéticos em suas atividades. Se lembrarmos das precárias condicões de vida a que estavam submetidas tal população indígena na época, não é difícil imaginar o impacto sócio-cultural causado pela presença de câmeras fotográficas e, posteriormente, pelas câmeras de vídeo em suas comunidades.

É bastante perceptível no vídeo de 1985 que a situação econômica enfrentada pelos índios Tapeba refletiu diretamente nos aspectos de organização tribal e familiar. A imagem dos índigenas associada a miséria, porém, não correspondia a idealização do "bom selvagem natural", isto é, a imagem esteriotipada dos índios que grande parte da sociedade possuia e possui. Por não terem sido congelados no tempo, os Tapeba vivenciaram e vivenciam uma série de transformações culturais causados pelos intenso contato com a sociedade nacional. O entendimento de todo esse contexto histórico dos Tapeba e das primeiras experiências de utilização do suporte videográfico em

populações indígenas foi extremamente importante no decorrer do desenvolvimento da pesquisa.

Se primeiramente estávamos decididos a proceder uma estruturação teórico- metodológica alicerçada exclusivamente no campo da antropologia visual ou da etnografia fílmica, percebemos, principalmente através da elaboração da cronologia de produções videográficas realizadas, uma série de reflexões conceituais e desdobramentos teóricos dados a partir de uma conjunção entre a prática etnográfica, os estudos sobre etnicidade e a interpretação da linguagem audiovisual. Por sua vez, essa interdisciplinaridade epistemológica nos levou a refletir acerca dos limites e fronteiras presentes nas classificações de vídeos etnográficos e documentários. Conforme evidenciamos, a escolha dos vídeos a serem analisados foi dada também em função dos mesmos apresentarem um "caráter de realização" divergentes, permitindo-nos refletir em amplitude sobre as questões de producão e afirmação de identidade étnica.

Apesar dos esforços empreendidos durante a pesquisa, supomos que algumas análises poderiam ter sido melhor trabalhadas, como é o caso, por exemplo, da realizacão de entrevistas sistemáticas com os protagonistas que aparecem nas duas obras audiovisuais analisadas, a fim de se captar como se dão os processos de compartilhamento de memórias e afirmação étnica. Acredito que tal fato tenha ocorrido em virtude do processo de elaboração da cronologia de produções videográficas - realizadas nas comunidades Tapeba e no movimento indígena de forma geral, mas que tenham envolvido diretamente os índios Tapeba - ter se tornado também um dos objetos da pesquisa, além, é claro, da dificuldade de localização de alguns desses protagonistas. No tocante ao objeto central de nossa pesquisa, isto é, as ações construtivas de afirmação e produção de identidade étnica engendradas por meio do suporte videográfio entre os índios Tapeba, acreditamos ter sido possível dimensioná-las de forma satisfatória; evidenciando também alguns dos principais debates acerca do caráter dinâmico da cultura, da perscpectiva política em torno do conceito de identidade étnica e da experiência de produção - compartilhada ou não - de obras audiovisuais em comunidades indígenas.

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