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Os caminhos entre a poesia e a história são muitos. Neste trabalho, percorri alguns possíveis. Meu percurso foi acionado, primeiramente, por uma inquietação diante de poemas que não apenas tocavam a minha sensibilidade, mas me faziam refletir sobre questões e temas que mexiam com a minha condição de cidadão no mundo. Por meio da leitura, tracei roteiros que, por vezes, identificavam respostas e, por outras, faziam emergir mais dúvidas.

O encontro com as poéticas de Abdias do Nascimento e José Craveirinha não apenas confirmavam um papel social para a crítica literária e cultural, como desencadeava perguntas que me faziam transitar de dentro para fora do poema. E a partir disso, fui percebendo como os poemas conservavam resíduos da vida e da história das pessoas sob os mantos da subjetividade dos poetas, que, no caso dos autores

estudados, se mostram como cenário de uma cena alteritária, cujos referentes emergem do outro e do eu-poético simultaneamente.

Embora situados em contextos diversos, as poéticas aqui estudadas comprovam uma ecologia cultural que se constitui, não sem tensões, sob o passado histórico que conecta simbolicamente o Brasil à África. O jogo de reconhecimento passa também por um desconhecimento, legitimamente preenchido pelas imagens e miragens veiculadas pelos códigos da cultura, que permitem que haja um Brasil para África; assim como há uma África para o Brasil. E se este trabalho está norteado pelo signo da (re)invenção, essas imagens não cessam de reinventar no tecido poético.

Nesse jogo de reconhecimentos que investe em travessias intercontinentais, há alteridades que, mais próximas, emergem do tecido poético como reações vivas ao discurso hegemônico. José Craveirinha, tendo vivido nos bairros pobres, fez sua escolha pela gente humilde e identificada como negra que faziam sua moçambicanidade aflorar. São essas personas o vetor que empreende um compromisso de intervenção social por meio da poesia. O tom de denuncia, por vezes camuflado pela ironia astuta, inscreve a poesia num movimento que lê a história a contrapelo, pois se desloca da perspectiva dos vencedores para verificar como é também história o cotidiano tecido em meio a carências e estratégias de violência.

Traçando um roteiro dos tempos coloniais ao período imediatamente anterior à independência de Moçambique, Craveirinha constrói a feição do povo moçambicano a partir da afirmação de elementos culturais que conferem uma vinculação telúrica marcante ao seu discurso poético. Nesse movimento, sua versão da história contradiz os empreendimentos do colonialismo e evidencia a exploração engendrada nas estratégias de controle da população ocupada. Sua perspectiva a contrapelo, portanto, destaca as experiências de homens e mulheres simples que organizam suas vidas a fim de reagir à tentativa de apagamento cultural e existencial articulados pelo regime colonial.

A identificação de códigos culturais subalternizados desconstrói, no plano poético, hierarquias e inscreve identidades e subjetividades marginalizadas pelo discurso da história dita oficial. A gestação de uma sensibilidade anticolonial, que faz de sua poesia um monumento das lutas pela libertação de Moçambique, organiza a composição heterogênea da identidade moçambicana em detrimento do perfil estanque da condição de colonizado.

Assim, a experiência do colonialismo vivida pelos moçambicanos se configura como um processo histórico no qual os indivíduos foram explorados diante de um

projeto de saqueamento dos recursos humanos desencadeado por todo continente, o que a poesia de Craveirinha flagra por sugestões e nuances com as cores vivas da indignação. Essas relações coloniais mostram, ainda, como a diferença racial e cultural se transforma em uma estratégia potente de dominação, cujo questionamento foi sistematicamente organizado na malha da produção combativa de poetas como José Craveirinha.

Movimento análogo se delineia na poesia de Abdias Nascimento. Sua trajetória combativa o situa como um intelectual que fez de sua arte e de sua poesia um instrumento de intervenção, assim como José Craveirinha. A experiência de ser negro num país racista como o Brasil desencadeou o desejo de reagir ao status quo lutando pela valorização do negro e dos bens culturais associados às matrizes africanas. A sua obra ratifica, ainda, a apropriação do passado escravocrata na composição das identidades negras da diáspora. Nesse sentido, formulou seu projeto panafricanista que investia na ligação solidária entre o Brasil e o continente africano, o que representava um esforço relevante para a intervenção nos debates raciais no Brasil.

Com uma poética de forte conotação simbólica, os referenciais culturais das religiões afrobrasileiras se apresentam nos textos de Nascimento como signos marcantes da construção ficcional nas suas vinculações com a identidade e a história nacional. Assim, é construída na linguagem lacunar da poesia uma narrativa que empreende a triangulação entre o Brasil, a diáspora e o continente africano, conformando uma dinâmica que investe relê a história nacional e nossa ancestralidade europeia. Em seu lugar, emerge um discurso que privilegia e conecta o Brasil à África, considerando o legado cultural que atesta a resistência dos negros mesmo diante da escravidão.

Os poemas evidenciam, ainda, um investimento numa linguagem com contornos performáticos evidentes que traduzem experiências culturais que atravessam a sintaxe do poema com gestos, ritmos e uma corporeidade, enquanto códigos culturais suplementares ao suporte da escrita. A partir disso, são forjadas novas versões, subjetividades e identidades que vão de encontro ao discurso hegemônico da democracia racial, que, na maioria das vezes, tem mantido sob os véus da conformidade as tensões raciais no Brasil.

As poéticas de Nascimento e de Craveirinha, ainda que evoquem representações distintas, a meu ver traçam uma interlocução profícua com a história. Com isso, revitalizam o discurso poético, pois apostam nas relações entre a poesia e a vida que são potencializadas pelo olhar sensível do poeta. Dessa maneira, o perfil subjetivo da poesia

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