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O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o

rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que

fazia uma volta atrás da casa. Era uma enseada Acho que o nome empobreceu a imagem. Manoel de Barros

Vimos com Foucault (1975/2005) como a construção de um saber psiquiátrico e a concepção de doença mental se deram em um contexto histórico específico marcado pelas mudanças sociais e políticas da época moderna. A partir do século XIX presencia-se, com Kreapelin, a ascensão de uma psiquiatria anatomo-clínica responsável pela construção de uma classificação nosológica mais sistematizada e preocupada com a confiabilidade diagnóstica. Tal nosologia compôs, até o início do século XX, um campo psicopatológico caracterizado pela sua pluralidade de discussões e de referenciais teóricos como o da psicanálise e da fenomenologia, por exemplo. A importância dessa pluralidade só é percebida quando, em meados do século XX, observa-se a intenção de uma psiquiatria biológica e descritivista em diluir essa pluralidade em nome de uma confiabilidade diagnóstica que pudesse favorecer a pesquisa científica. Esta psiquiatria, mais preocupada em localizar os sinais e sintomas do que escutar o sujeito para além da sua manifestação sintomatológica sustenta, em 1980, a publicação do DSM III – um manual caracterizado por exterminar a discussão etiológica dos transtornos e doenças em nome de uma descrição ateórica e comportamental.

Enquanto estagiária de um serviço de saúde mental respaldado pelos ideais da Reforma Psiquiátrica Brasileira, pude notar como uma discussão psicopatológica crítica acerca dos diagnósticos se faz necessária para embarrerar a objetivação e redução diagnóstica dos usuários de saúde mental, e desconstruir práticas e discursos homogeneizantes e medicalizantes que tendem a privilegiar a terapêutica médica e farmacológica como principal recurso. Além disso, é importante entender as condições que sustentam a primazia por essa terapêutica para compreender que o fenômeno de medicalização não é só uma conseqüência da sociedade moderna, mas se encontra inserido e enraizado nela, apresentando pretensões muito evidentes de controle e normalização. Uma vez que entendemos isso, compreende-se também como a medicalização permeia e incide nas práticas em saúde no contemporâneo e

contribuem para uma homogeinização não só dos sujeitos, mas do próprio campo psicopatológico.

Consequentemente ao empobrecimento do campo psicopatológico e ao esvaziamento de discussões etiológicas dos casos, presenciamos as implicações que estes acontecimentos representam não só para a clínica em saúde mental como para os princípios e diretrizes do SUS e ideais da Reforma Psiquiátrica Brasileira que se veem cada vez mais ameaçados pelos interesses políticos do nosso país em privilegiar uma assistência asilar. É assim que, durante o percurso de estágio e de construção deste trabalho, podemos concluir como o campo assistencial e clínico dos serviços de saúde se norteados por uma escuta clínica do sujeito e instrumentos clínicos que não o reduzem a um objeto da psiquiatria, pode funcionar como resistência aos retrocessos que vivenciamos na assistência à saúde mental. Pois acreditamos que as práticas de saúde devem estar orientadas por um cuidado que visa a possibilidade de o sujeito falar, se implicar e se responsabilizar pelo seu próprio tratamento. E, antes de tudo, acreditamos na fundamental importância do campo psi reconhecer os desdobramentos que o próprio saber produz para que a partir daí possamos analisar nossas práticas e nossos problemas.

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