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Em que pesem as diferenças entre os dois veículos estudados, a Folha de São

Paulo e O Estado de São Paulo, é nítida a articulação entre ambos, o mercado

financeiro e o bloco hegemônico. Durante as eleições de 2002, o Estado assumiu um papel mais claro de aparelho ideológico privado, veiculando um conteúdo quase homogêneo, produto de uma similaridade editorial entre a opinião do jornal e dos intelectuais orgânicos que compunham o corpo de articulistas – e, quanto mais perto das eleições, mais o conteúdo de matérias especiais passou a integrar o pensamento orgânico do órgão de imprensa. A Folha, com um corpo de articulistas mais plural e uma linha editorial menos identificada com a candidatura governista, cumpriu de qualquer forma a função de intelectual orgânico, em especial no noticiário, ao reportar acriticamente as “impressões” e “expectativas” dos mercados financeiros e ao “sensacionalizar” as reações especulativas e declarações dos candidatos, em especial os dois mais temidos pelo mercado, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, e Ciro Gomes, do PPS.

Os dois veículos, nesse processo eleitoral, não relataram apenas fatos: eles exerceram uma função fundamental na ofensiva antioposicionista de criar um clima de pânico, fixar a imagem de Lula como o “candidato do caos” e introduzir na agenda versões de fatos e intenções (que no jargão jornalístico são “balões de ensaio”) que seriam fundamentais no processo especulativo – e portanto instrumentos de acumulação financeira. O poder desempenhado pela imprensa no processo eleitoral de 2002 – o de não apenas relatar a realidade, mas ser parte dela, moldá-la, construí-la – e o papel que ela desempenhou podem não ter sido tão perceptíveis então, pelo fato de terem se ancorado numa situação pretensamente objetiva, qual seja, um cenário eleitoral contra o qual reagiam investidores. Foi, no entanto, um ensaio do que aconteceria em 2006, quando os mesmos órgãos, agora com uma organicidade ideológica muito maior, constituíram-se em aparelhos privados de ideologia afinadíssimos com os partidos políticos em oposição a Lula, que disputava seu segundo mandato. Desta vez, sem o pano de fundo econômico, em tese racional, a opção ideológica ficou mais clara, mesmo justificada pela “cruzada ética”.

Passados os meses de outubro de 2002 e 2006, fica a questão da eficiência dos dois jornais tradicionais como aparelhos privados de ideologia. Desde o Plano Real, eles desempenharam, com algum sucesso, o papel de intelectuais orgânicos do capital

financeiro internacional: foi com ajuda deles, de fato, que foi hegemonizada a ideologia neoliberal. Com rapidez, forjou-se uma divisão entre a elite “moderna” e a “atrasada”, a dicotomia entre “progressistas” e uma esquerda jurássica, refratária à abertura do país e ao mundo globalizado. Os jornais foram fundamentais na formação de uma hegemonia ideológica fundamentalista pró-mercado e no questionamento do papel do Estado – aqui, o moderno era a redução ao Estado mínimo, que exerceria um papel “regulador” da economia. O fato, no entanto, é que esses órgãos de imprensa exerciam uma função ideológica voltada para uma “opinião pública” média, até então com grande influência sobre a massa eleitoral. A partir das eleições de 2002, iniciou-se um processo de cisão entre o até então chamado formador de opinião e o eleitorado pobre – se os jornais mantiveram seus papéis de mediadores ideológicos junto à opinião pública, esta, por sua vez, passou por um processo de esgotamento do papel de mediador junto ao eleitor que não tem acesso a jornais, tem uma racionalidade própria – de classe – e não assimilou como senso comum o pensamento hegemônico das elites.

Esse processo ficou mais evidente nas eleições de 2006, quando os jornais, os intelectuais orgânicos e os partidos de oposição ao governo, no debate sobre a inclusão política do bloco subalterno, assumiram claramente o preconceito para desclassificar o voto dos estratos mais baixos da população. Havia um processo contra-hegemônico na base que passou ao largo da percepção dos aparelhos privados de ideologia envolvidos no embate eleitoral: em vez de se aproximarem desse eleitor – uma técnica de propaganda ideológica mais eficiente –, apartaram-se dele, jogando-o para a trincheira adversária. O candidato a “senso comum” da reeleição de Lula, assumido pela imprensa e pela oposição, que era a desqualificação ética do governo e do PT – com farto uso da técnica da repetição – em vez de se tornar consenso, acabou se configurando como um confronto.

Nas eleições de 2002, a explosão de uma onda de pânico, alimentada fartamente pelos jornais, mercados e partidos contrários a Lula, não obteve também o efeito de forjar um consenso junto ao eleitor. A vitória de Lula é a prova concreta disso. Teve, no entanto, uma função ideológica que foi vitoriosa: nos três meses que antecederam a escolha oficial do candidato do PT, e portanto antes do processo eleitoral oficial, o partido fez uma inflexão à direita e assumiu os compromissos exigidos pelo mercado. Teve ainda outros efeitos: um rápido deslocamento de dinheiro do país, em função do

ataque especulativo ao real, e rápidos deslocamentos de dinheiro entre particulares, comprados e vendidos em moeda norte-americana ou em títulos da dívida pública brasileira. Os jornais, portanto, foram instrumento da acumulação de capital financeiro no período. Cumpriram essa dupla função – e a intenção, por melhor que seja, sucumbe à função efetivamente exercida.

Para além dos resultados das urnas, o estudo do processo pré-eleitoral de 2002 mostra com alguma clareza como é uma articulação ideológica num país inserido no processo de globalização. A informação passa a ser um instrumento de acumulação. Os intelectuais orgânicos alimentam as mesas de operação com a informação – ela percorre os aparelhos públicos e privados de ideologia, retorna ao mercado, que transforma a informação num fato (a especulação, a pressão por aumento do preço de títulos, a chantagem por medidas favoráveis do governo ou a pressão direta para mudanças de políticas públicas) e a devolve aos órgãos de informação, que por sua vez repetem o percurso. O boato e a especulação acabam tornando-se os fatos. Nas eleições de 2002 foi a primeira vez que esse círculo vicioso entre informação e especulação invadiu visivelmente a política: os mercados haviam passado por um processo de abertura grande e o dólar era flutuante. Os movimentos especulativos, assim como a informação, passaram a ocorrer online.

Os jornais foram os canais desses movimentos especulativos e os mediadores das pressões articuladas dos demais intelectuais orgânicos da ideologia neoliberal em 2002. Embora com nuances, a informação acrítica jogou nas páginas dos jornais as ameaças do mercado – leia-se operadores e economistas-chefes de bancos de investimentos, agências de rating, organismos multilaterais, em especial o FMI, e governo norte-americano – de forma indiscriminada e em poucos momentos estabelecendo relações entre elas. O jogo declaratório, que foi basicamente a matéria- prima dos jornais nesse período, fez com que se reproduzisse uma opinião e dela se criasse um fato, ou seja, um movimento especulativo de maior intensidade, que por sua vez provocava novos pedidos de empréstimo do FMI para tornar possível honrar os compromissos com os mesmos credores que especulavam com a moeda brasileira, recuos programáticos por parte dos candidatos e autocontrole dos movimentos sociais (que taticamente reduziram ações para que o bloco dominante não as vinculasse aos candidatos do PT). Os órgãos de imprensa, portanto, não apenas reproduziram, mas

produziram: foram militantes de um processo autofágico – os dois órgãos paulistas estavam endividados em dólar – e ideológico. A declaração, portanto, tornou-se o fato. E o estreitamento do universo da cobertura eleitoral fez com que os jornais desconhecessem o fato propriamente dito: o debate sobre a dívida pública ficou restrito a um conjunto de intelectuais que expressavam o pensamento hegemônico; as informações técnicas sobre movimentos especulativos foram subestimadas e as especulações políticas superestimadas; e existia um movimento contra-hegemônico forte que detinha votos suficientes para não referendar o candidato do status quo.

Quando a economia saiu de controle, o tema da dívida externa, que era o cerne da fragilidade do país, passou a ser tratado de forma a não comprometer o governo, no caso do Estadão; no da Folha, houve uma maior diversificação de fontes consultadas. Somente nesse momento, na Folha, a diferença de opiniões no noticiário passou a revelar palidamente que o que havia por trás do ataque especulativo não eram apenas verdades técnicas, mas um momento histórico em que o pensamento hegemônico, devido aos resultados obtidos por oito anos de uma política concentradora de renda, era fortemente questionado não apenas pelo eleitor, mas por uma profusão de intelectuais que tinham a sua existência ignorada até então por esses veículos.

No último mês de pesquisa, é visível a mudança de orientação da Folha e a radicalização do Estadão na missão ideológica e partidária que assumira desde o início do processo. Ainda assim, a função da Folha pode ter superado a sua intenção editorial, na medida em que esse debate conviveu com a sensacionalização da declaração. Na editoria de Brasil foi mantido o padrão da declaração forte, deslocada do contexto, seguida da explicação de que o mercado temia que Lula não cumprisse os compromissos da dívida – uma repetição exaustiva, porém funcional na formação de um “senso comum” de que Lula, apesar de nunca ter sido governo ou decidido qualquer detalhe de uma política econômica que fragilizava o país, era o verdadeiro responsável pela sua vulnerabilidade diante do ataque especulativo dos mercados. Na editoria Dinheiro, a mesma repetição sempre explicava a subida do dólar, a queda da Bolsa ou o aumento do risco Brasil. O debate mais plural sobre a vulnerabilidade da economia no mínimo foi neutralizado pela repetição exaustiva do “risco Lula”. Aliás, a análise desse período de cobertura jornalística mostra que a função desempenhada por um aparelho ideológico, ou intelectual orgânico, neutraliza a intenção. Em especial no caso da Folha.

O formato da notícia foi concebido para passar uma informação curta e pretensamente neutra. A informação, no entanto, passa a ser excessivamente fragmentada, prestando-se a funções diversas. É nesse jornal que está presente, com mais clareza, a técnica de repetição exaustiva de “verdades” que Gramsci definia como de formação de sensos comuns. Até por ter um formato de mais fácil assimilação do conteúdo, a notícia acaba se prestando a uma função ideológica – naquele momento demonizar Lula ou qualquer candidato que contrariasse o senso comum da então considerada ideologia hegemônica.

No Estadão ocorreu o movimento inverso. Até o penúltimo mês em estudo, o jornal exibia nitidamente uma diferença entre sua parte editorial – o editorial propriamente dito, reforçado pelas opiniões de colunistas da casa – e a parte informativa. A linha editorial estava expressa claramente e servia a um combate sem tréguas ao candidato petista. A informação, no entanto, foi poupada nesse período: textos mais longos, sem um padrão rígido de redação como o da Folha, permitiram que as matérias fossem mais contextualizadas, retirando excessos de sensacionalização. No último mês, todavia, a opção ideológica e partidária do jornal invadiu a informação: principalmente na economia, as matérias especiais, de maior fôlego, eram feitas para corroborar teses pró-governo. Ou de que a dívida não era problema, mas as “expectativas” de mercado em relação a um eventual governo Lula; ou para justificar as ações do BC; ou simplesmente para referendar as pressões do governo norte-americano, do FMI e dos mercados para que os candidatos se comprometessem publicamente com os “fundamentos” – superávits primários altos, câmbio flutuante e metas inflacionárias.

A articulação ideológica dos aparelhos públicos e privados de ideologia, por meio das explosões de pânico que os meios de comunicação de massa se incumbiram de criar e propagar, teve a sua vitória antes mesmo da oficialização do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva: sua candidatura seria oficializada em 29 de junho, mas já no dia 22 ele divulgou a “Carta ao Povo Brasileiro”, adequando-se às exigências dos mercados. O movimento retroalimentado de especulação em torno das eleições, no entanto, continuou até o segundo turno, em outubro, quando Lula venceu o candidato governista, José Serra, e prolongou-se até a definição do ministério do PT, já no final do ano.