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CAPÍTULO 4 – REPRODUÇÃO DOS DISCURSOS DE GÊNERO PELO DIREITO:

4.4 Considerações gerais

Logo de início já se percebe que todas as decisões trabalhadas referem-se a pessoas transexuais ou transgêneras, não havendo ainda um precedente oriundo de Tribunais Superiores que aborde direitos de pessoas intersexuais ou não binárias.

Da análise realizada sobre o Recurso Especial nº 1008398/SP, julgado em 2009 pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu o direito de pessoa transexual submetida a cirurgia de redesignação sexual de alterar seu nome e sexo registrais após determinação judicial, concluiu-se que em razão de cuidar de caso concreto (não tendo a mesma abrangência e abstração de um julgamento de ADI) apresentou resultado menos ambicioso do que o momento permitia, deixando, por exemplo, de apreciar a mudança de nome e sexo de pessoas que não podem ou não querem se operar ou realizar outras intervenções estéticas para se adequar a um padrão binário de gênero.

Conclui o Acórdão expondo que deve a pessoa redesignada poder exercer amplamente seus direitos civis sem restrições discriminatórias à autonomia privada que violem sua integridade psicofísica. No entanto, o que vários pontos da fundamentação do Acórdão fazem é exatamente recorrer a referenciais científicos para caracterizar o que/quem é transexual e patologizar a transexualidade (ou transexualismo), entendida como um transtorno de identidade de gênero (até 2014), ligado, portanto, ao direito à saúde mais do que ao direito à identidade e ao livre desenvolvimento da personalidade. O enquadramento de direitos de transexuais dentro da 4ª geração de direitos proposta por Bobbio – como derivados de inovações tecnológicas – significa compreender a transexualidade como um fato novo, e não como uma vivência interna, independente da aparência física de alguém.

Viu-se que a despeito da intenção em reconhecer o direito pleiteado pela Recorrente, muitos dos argumentos foram utilizados de maneira contraditória.

De fato, condicionar o deferimento do direito de alteração do registro de nascimento à modificação da genitália permitindo que sua aparência determine a identidade sexual humana é vincular a experiência transexual a um discurso médico que limita o reconhecimento de direitos por confundir os conceitos de sexo e gênero (mesmo em seu sentido mais tradicional).

Por sua vez, o estudo do voto do Ministro relator do Recurso Especial nº 1626739/RS, julgado em 2017 pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu o direito de mudança de prenome e do sexo, após determinação judicial, de pessoa transexual que não se submeteu a cirurgia de transgenitalização, parece guardar mais coerência interna do que o anterior. Mesmo que não esteja livre de contradições.

Dessas, a que mais se destaca é toda uma linha de argumentação construída para desvincular a construção de identidades de gênero da realização de cirurgias de transgenitalização, acompanhada por uma outra linha que busca justificar nas dificuldades para a realização da sobredita cirurgia (possivelmente excluindo o mero desinteresse em se submeter a ela) a sua desnecessidade para o reconhecimento do direito à mudança do prenome e sexo registrais.

Embora se mantenha dentro de uma lógica sexual binária, prevendo apenas adequações de prenome e sexo que se alternem entre o masculino e o feminino, o Ministro Relator abre, em sua fundamentação, ampla margem para que os mesmos argumentos se apliquem também a pessoas não binárias ou que simplesmente não desejem ter o sexo inscrito em seus documentos de identificação. Ao argumentar que a anatomia humana não importa para a maioria das relações sociais – não sendo sequer aferível em grande parte delas – deixa de explicar a razão porque ela ainda precisa ser declarada para a identificação de alguém.

O uso da ideia de constrangimentos como legitimadores da mudança de sexo e nome registrais de pessoas transexuais sugere que o reconhecimento da identidade dessas pessoas deve ser marcada pela vergonha – talvez fora dela não houvesse a possibilidade de adequação documental.

Além disso, argumenta em diferentes momentos pela liberdade na formação das identidades, para concluir pela necessidade de determinação judicial para modificações nos assentos de nascimento de transexuais, como se estivesse o Poder Judiciário habilitado a analisar o grau de masculinidade ou de feminilidade de alguém para lhe reconhecer o direito de autoidentificação sexual.

Tudo isso sugere que a despeito de afastar a necessidade de cirurgia de redesignação sexual (custosa, arriscada e morosa se feita pelo Sistema Único de Saúde), o Judiciário seguiria condicionando o direito à mudança de registro civil de transexuais a terapias hormonais e intervenções estéticas (nem por isso menos arriscadas, especialmente diante da realidade de marginalização das pessoas trans).

O corpo acaba situado no centro do debate, alertando para as dificuldades de sustentar uma decisão em base tão instável quanto a aparência física de alguém.

Finaliza chamando a atenção para o fato de que a incapacidade do Estado em lidar com pessoas transgêneras é reveladora de uma discriminação, que não pode ser conduzida em prejuízo de minorias sociais.

De mais a mais, concluiu o Ministro Relator pela integral procedência da pretensão da Recorrente, a fim de autorizar a retificação de seu registro civil, onde deve ser averbado o prenome e o sexo/gênero feminino, devendo constar que tal se deu em razão de determinação judicial, mas sem a menção aos motivos e ao conteúdo das alterações, tudo em respeito à publicidade dos registros públicos e à intimidade da Recorrente.

Já na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275, julgada em 2018 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, tratando, portanto, de controvérsia abstrata, o voto vencedor centrou-se de maneira coerente no direito individual à livre manifestação da personalidade.

Não perdeu a oportunidade de ampliar o objeto da controvérsia, pois embora o pedido formulado pela Procuradoria-Geral da República fizesse referência a transexuais, o Acórdão buscou expressão mais ampla, optando por tutelar trangêneros, abarcando todas as pessoas que de qualquer modo fujam de padrões de gênero e desejem mudar o registro de nascimento.

No entanto, o Acórdão proferido reitera o binarismo de gênero que marca o Ordenamento Jurídico nacional, pois entende que ainda que as pessoas possam optar pela mudança do sexo constante de seus documentos oficiais, as possibilidades de escolha continuam limitadas a duas, assim como continua obrigatória a declaração do sexo da pessoa no momento do registro de nascimento.

Ainda que o voto analisado não tenha abordado expressamente a publicidade dos registros públicos, o Provimento nº 73 de 2018 do Conselho Nacional de Justiça, publicado em decorrência do Acórdão oriundo da referida ADI, supre a questão ao dispor em seu artigo 5º que a alteração de prenome, agnome e sexo em registros de nascimento e de casamento se dá por averbação e é de natureza sigilosa, não podendo constar de certidões dos assentos, a menos que haja solicitação da própria pessoa registrada ou determinação judicial.

Desatende, portanto, parcialmente, ao disposto na Opinião Consultiva nº 24 de 2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, utilizada como um dos principais fundamentos do voto vencedor na apreciação da ADI, que recomenda a gratuidade do procedimento de alteração documental de nome e gênero (enquanto que o Provimento do CNJ determina a aplicação da tabela de valores de averbação de atos do registro civil nesses casos até que os entes federativos editem suas próprias normas relativas aos emolumentos).

De todo modo, resta comprovada a evolução ao longo do tempo no discurso adotado pelos Tribunais Superiores em suas decisões relacionadas à identidade de gênero. E mesmo que ainda não haja uma total adequação do sistema jurídico brasileiro às pessoas que fogem às normas de masculinidade e feminilidade, o espaço para o debate está cada vez mais institucionalizado, como se verá no próximo capítulo.

CAPÍTULO 5 – DIREITO, CORPOS E IDENTIDADES: POR UMA