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3. AS PECULIARIDADES DAS CIDADES GAÚCHAS DE FRONTEIRA E A

3.3. Considerações Históricas e Geográficas

Para compreendermos melhor como o território gaúcho se constitui enquanto uma região peculiar durante os anos de ditadura militar cabe, ainda, explorarmos esse território, as fronteiras de todo o nosso país e tecermos breves considerações a cerca da história de nossos vizinhos.

Quase um terço de nosso limite com o Uruguai não se compõe de imposições naturais, mas sim de fronteiras secas11. Significa avaliar que poderia não ser necessário passar por pontos de fiscalização de fronteira, uma vez que cobrir todo esse território é tarefa hercúlea à polícia de fronteira, sendo, alguns pontos, conhecidamente negligenciados. Tal consideração nos alerta também que não era necessário armar um complexo esquema para fazer a travessia por água ou transpondo acidentes geográficos. Além disso, trata-se de uma fronteira bastante povoada, não sendo necessária uma longa viagem em meio a matas, florestas ou qualquer ambiente inóspito para chegar às cidades.

A fronteira gaúcha possui, ainda, algumas cidades binacionais12. São cidades divididas pela linha de fronteira e, portanto, parte de uma nacionalidade, parte de outra. Essas cidades não tem rígida fiscalização sobre seus limites, mesmo quando marcadas por abordes naturais, logo, o translado de pessoas ou materiais era de difícil controle.

Também temos que considerar que, conhecidamente, no sul do país, temos uma ―tradição‖ de translado e tráfico por essas fronteiras, que pode ser retomada desde a formação do território brasileiro e que, mesmo no período que estudamos, ainda era muito ativo. Passar armas, munições, carnes, tecidos - produtos, de uma forma geral - ou transladar pessoas, na década de 1960, era

11 Fronteiras cuja delimitação não se deu partindo de acidentes naturais, como curso de

rios ou similares.

12 São também conhecidas como ―cidades irmãs‖, ou ―cidades geminadas‖, pois uma

cidade tem sua ―correspondente‖ em território vizinho. Cito, entre Rio Grande do Sul e Uruguai: Santa Vitória do Palmar / Chuí (na época parte da primeira, emancipada em 1997) e Chuy; Jaguarão e Rio Branco; Aceguá e Aceguá; Santana do Livramento e Rivera; Quaraí e Artigas; E com Argentina: Uruguaiana e Passo de Los Libres. Alguns outros estados brasileiros também possuem cidades binacionais.

88 prática comum, assim como o era o translado de escravos em períodos anteriores. Muitos gaúchos, especialmente do interior, até hoje guardam na memória o caminho que se percorria para cruzar a fronteira uruguaia ou argentina, tanto utilizando as estradas, quanto as rotas alternativas, algumas vezes feitas no estilo tropeiro dos nossos pilchados gaúchos13 em meio aos campos e às chácaras14.

É muito presente na região a possibilidade de cruzar a fronteira como forma de evitar qualquer relação com o Estado - mesmo para infratores comuns ou para burlar o pagamento de impostos ao comprar mercadorias no exterior - assim como é comum o conhecimento para fazê-lo, ludibriando as autoridades fiscalizadoras. Isso nos remete ao quanto a fronteira é presente na região e ao quanto temos experiência em armarmos formas de cruzá-la

Assim como é conhecida a prática de infratores comuns cruzarem a fronteira para escaparem do judiciário, também é a de perseguidos pelo Estado procurarem asilo no Uruguai, como cita Aseff, transcrevendo o relato do sobrevivente de uma chacina impetrada contra comunistas, na cidade de Santana do livramento, em 1950:

Viajei toda noite, guiado por uma estrela, ensinado por outro parente, cortando campo. Fiquei tirado no chão porque me saia

calambre, como ovo de galinha, câimbras como dizem vocês, de

tanto caminhar, andar, não é? Isso na noite da chacina, quando eu já ia embora, sem comunicação com ninguém, que a coisa não estava muito boa, né?15

Embora, em diversos períodos de nossa história platina, tenha sido recorrente a busca pelo exílio ou, mesmo, a fuga através de nossas fronteiras com esses países, essas rotas, com especificidades muito próprias, forçadas pelo momento político do país, são características de todo o período da ditadura militar e se distinguem da acima citada, todavia, aprendendo com ela.

13 Pilcha é a veste tradicional gaúcha. Pilchado é o gaúcho vestido com as roupas

tradicionais.

14 Lembrando uma prática comum dos trabalhadores gaúchos no campo, de buscar ou

levar mercadorias (entre cidades, estados ou países), em viagens em tropas, à cavalo, estabelecendo acampamentos ao longo do percurso.

15 ASEFF, Marlon. Retratos do Exílio: experiências, solidariedade e militância política de

esquerda na fronteira Livramento - Rivera (1964-1974). Florianópolis: UFSC. 2008.

89 Mas vejamos também as características da fronteira nos demais estados brasileiros. A área limítrofe de Santa Catarina com Argentina, embora também tenha fronteira seca, em sua maioria, é marcada por mais densa vegetação, além de o Estado ter um território mais acidentado, enquanto a região sul do estado gaúcho é marcado por território de planície. Ao contrário de boa parte da fronteira do Rio Grande do Sul, a fronteira catarinense não está perto de cidades ou populações e, ainda, está distante das capitais dos países vizinhos (destino bastante procurado pelos militantes que partiam).

Temos também as fronteiras do Paraná com Argentina; Paraná e Mato Grosso do Sul com Paraguai; Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Acre com Bolívia; Acre e Amazonas com Peru; Amazonas com Colômbia e Venezuela; Roraima com Venezuela e Guiana; Pará com Guiana e Suriname e, finalmente, Amapá com Guiana Francesa e Suriname. Para esses casos cabe ressaltar que, de forma geral, trata-se de uma região delimitada em grande parte por água, vegetação densa e menos povoada16.

Para entendermos melhor, cabe, ainda, fazermos rápidas considerações sobre os países vizinhos no período. O Uruguai, embora com uma extrema direita bem organizada e recebendo apoio para a repressão ―aos subversivos‖, inclusive da ditadura militar brasileira17

e, mesmo tendo como característica a violência contra a esquerda até antes de sofrer golpe, possuía uma democracia considerada mais bem instaurada, mais estável, passando por um golpe apenas em junho 1973. Abrigou parte importante da esquerda exilada brasileira, que se mantinha articulada mesmo no exílio, principalmente considerando os exilados que partiram próximos ao ano de 1964, em grande parte organizados em torno dos ―legalistas‖, do Jango e do Brizola. Por isso, a fronteira era importante também para a troca de informações e materiais e para reintrodução de militantes no Brasil.

A Argentina apresentava uma democracia instável, já tendo sofrido

16 Muito embora as considerações apresentadas tenham sido feitas apoiadas nos mapas

e paisagens atuais, não supomos drástica mudança nas avaliações acima, uma vez que as mudanças geográficas acontecem em mais longo prazo e, embora evidentemente devamos supor uma mudança na densidade populacional, mesmo essas não são tão significativas.

90 uma intervenção em 1966. Todavia vai ter um governo militar mais sistematizado e repressor apenas em 1976. Entre esse tempo, também abrigou exilados dos países vizinhos.

Ainda temos o Chile, que, mesmo não fazendo divisa com o país, por ter uma democracia considerada como mais estável, foi procurada pela esquerda brasileira, principalmente após a vitória eleitoral de Allende. Assim, outros países, o Uruguai principalmente, passaram a ser rota de saída do Brasil e passagem para esse o Chile.

O Paraguai, porém, sofreu um golpe militar já em 1954. Podemos perceber que esse país tem como marca um número muito grande de exilados - em uma estimativa extraoficial podemos aproximar em cerca de um milhão, na ditadura que, por sua extensa duração, atingiu três gerações no país18. Portanto, não temos o Paraguai como a opção mais segura.

Os países mais ao norte da América Latina, como Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela sofreram, no início da década de 1960, diversas intervenções, guerras civis, perseguições, compondo um cenário de incerteza, além das dificuldades geográficas de atravessar essas fronteiras.

Há, ainda, os países que conhecemos muito pouco de sua história e cultura, como a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa. Esses países são marcados, nas décadas de 1960 e 1970, pela luta por independência da Europa e, mesmo quando essa luta foi vencida (a Guiana em 1966, tornando-se República em 1970 e o Suriname em 1970. A Guiana Francesa é considerada território franco até hoje) tinham governos muito instáveis. Devem-se considerar ainda as dificuldades geográficas de ultrapassar a fronteira e a baixa densidade populacional nessas regiões.

Evidentemente que essas considerações não tratam de negar, condenar ou diminuir a importância de qualquer outra possibilidade de rota que não a estabelecida pelo Rio Grande do Sul. Apenas trata de justificar a busca mais intensa por essa fronteira.

Podemos refletir, por exemplo, a partir do caso do exilado Sebatião Hoyos, apresentado por Rollemberg:

18 Apontado por QUADRAT, Samantha. As Faces da Repressão nos Países da América

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Na tentativa de se esconder, seguiu [Sebastião Hoyos] para o Baixo Amazonas, onde havia feito um trabalho de distribuição de terras para trinta mil famílias. De lá desceu o rio até Macapá, numa canoa, numa viagem que durou 28 dias. Conseguiu chegar ao Oiapoque pegando um avião com uma falsa identidade e atravessou a fronteira para a Guiana Francesa. Chegou a São Jorge, depois Caiena, onde pediu - e jamais conseguiu - asilo político. [...] Na Guiana montou uma rede para ajudar brasileiros a saírem do país, que funcionou durante anos19.

Depois conta que se organizou em movimentos nacionalistas e acabou preso pela polícia francesa e levado à Europa, onde seguiu em series de fugas e tentativas de exílio.

Essa experiência é ilustrativa da possibilidade de organização de outras rotas. Várias foram organizadas ao longo do país, conforme necessidade e possibilidade e garantiram a muitos militantes escaparem da repressão. As estabelecidas em nossa região se sobressaem nesse panorama.

Temos que passar então a analisarmos a dinâmica dessas rotas, como elas se constituíam na prática, cotidianamente, quais suas possibilidades, debilidades...

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