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Considerações sobre a Influência Do Modelo Neopositivista e dos Valores do Estado Democrático de Direito no Conceito Contemporâneo de Jurisdição.

3 O DIREITO SOCIAL À SAÚDE

4 A JURISDIÇÃO CONTEMPORÂNEA E A APLICABILIDADE DO DIREITO À SAÚDE.

4.2. Considerações sobre a Influência Do Modelo Neopositivista e dos Valores do Estado Democrático de Direito no Conceito Contemporâneo de Jurisdição.

Após a segunda guerra há um câmbio paradigmático no Direito, alçando a Constituição posição de norma suprema, bem como de instrumento que organiza e qualifica os procedimentos para elaborar e aplicar leis, de forma a evitar a usurpação da soberania popular por parte de instituições públicas e privadas. À Constituição, todos os poderes são submetidos, não somente quanto à forma e procedimento de elaboração das leis, mais também quanto ao seu conteúdo.

É importante asseverar que ao fim dos regimes totalitários do século passado, restou suficiente demonstrado a lei per si é capaz de assumir forma de mandato arbitrário, que constrói e reforça sistemas de domínio incontrolados e que priva os indivíduos de direitos elementares. A memória dos eventos lacerantes e humilhantes ocorridos nos Estados totalitários tornou as gerações seguintes prudentes e desconfiadas, inclusive em relação às leis regularmente votadas pelo parlamento ou decida pelo povo em referendo156.

Arbitrariedades e brutalidades se legitimaram por intermédio de leis formalmente perfeitas tornando evidente a necessidade de resgatar a substância da lei e, mais que isso, encontrar os instrumentos capazes de permitir a sua limitação e conformação com os princípios de justiça.

155 MITIDIERO, 2005, p. 80.

156 ZAGREBELSKY, Gustavo. La ley, el derecho y la constitución. Revista Española de Derecho Consitucional, Madrid,Año 24. n. 72, p.11-24, set/dic. 2004.

76 El ius, por su parte, en su ciega existencialidad, puede servir para activar fuerzas brutales en nombre de valores irracionales y puramente emotivos; pero, por el contrario, remitiéndose a patrimonios de principios civiles interiorizados en el curso de la historia de un pueblo, puede ser factor de estabilización de la ley y garantía frente a sus abusos 157.

Diante dos horrores institucionalizados em Estados fundados em formalidade vazia de conteúdo ético, passou a comunidade jurídica por um momento de profunda reflexão quanto ao conteúdo das leis. Em razão disto, no período pós- segunda guerra, a Constituição sofre uma releitura. Os direitos fundamentais são incluídos nos textos constitucionais, e passam a formar um consenso mínimo, oponível a qualquer grupo político que ocupe o poder, assumindo a qualidade de elementos valorativos essenciais à existência do Estado Democrático de Direito.

À luz do constitucionalismo pós-segunda guerra, a lei depende, portanto, da sua adequação aos direitos fundamentais, exigindo uma compreensão crítica em face da Constituição, para que ao final do processo de interpretação faça surgir uma norma adequada aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade.

Deste modo, alterando-se os requisitos de validade das leis, que deixam de depender somente do respeito às normas procedimentais sobre a sua formação, e passam a também depender do respeito às normas substantivas sobre o seu conteúdo, é alterado o papel da ciência jurídica, que se torna crítica e construtiva relativamente à introdução de técnicas de garantia exigidas para superar as antinomias e lacunas da legislação vigente em relação os imperativos constitucionais, bem como, e principalmente, a natureza da função jurisdicional e a relação entre o juiz e a lei158.

Não é ocioso ressaltar que uma das consequências do apontado movimento constitucionalista é desenvolvimento no modelo filosófico neopositivista. Esse modelo é independente filosoficamente em relação ao modelo positivismo não porque atribui às normas constitucionais o seu fundamento - nisso nada difere do modelo positivista -, e sim por apresentar uma estrutura normativa diferenciada, que submete o texto de lei a outro tipo de norma, além da regra: aos princípios materiais de justiça e direitos fundamentais.

157 Ibdem.

158 FERRAJOLI, Luigi. Jueces y política. Derechos y libertades: Revista del instituto Bartolomé de las

77 Em tal contexto histórico, as constituições, recepcionando uma série de princípios materiais de justiça, passam a ser concebidas a partir de uma estrutura normativa de princípios e regras – formais e substanciais –, compreendida como ordem fundamental em sentido quantitativo e qualitativo. De uma estrutura normativa constituída por regras, própria do modelo positivista, migra-se para uma estrutura normativa de regras e princípios.

A ruptura com o hermético modelo de regras trazida pelo positivismo e a compreensão do direito por meio de princípios, impõe ao modelo uma autonomia filosófica ante o positivismo159 do Estado liberal, bem como impõe uma releitura do princípio da separação dos poderes, principalmente no que concerne à atividade jurisdicional, praticamente resumida à técnica da subsunção160.

Nesse cenário, como a validade da lei dependerá, no modelo filosófico neopositivista, da coerência com os princípios de justiça estabelecidos pela Constituição161, ao Poder Judiciário conceber-se-á uma nova inserção no âmbito das

159 A partir de algumas poucas proposições centrais e organizadoras, Ronald Dworkin apresenta um

esqueleto do positivismo compreendido resumidamente sob os seguintes preceitos chaves: i) O direito de uma comunidade é o conjunto de regras especiais, identificadas e distinguidas com auxílio de critérios específicos, de testes que não tem a ver com seu conteúdo, mas com o seu pedigree ou maneira pela qual foram adotadas ou formuladas; ii) O conjunto dessas regras jurídicas é coextensivo com “o direito”, de modo que se o caso de alguma pessoa não estiver claramente coberto por uma regra, o cãs deverá ser decidido por uma autoridade pública, como um juiz, exercendo seu “discernimento pessoal”; e, iii) Na ausência de regra jurídica válida não existe obrigação jurídica. Argumentando que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papéis importantes pelos padrões que não são regras, tais quais os princípios, as políticas e outros padrões. Ronald Dworkin afirma que nos casos dramáticos decididos pelas Suprema Corte estadunidense existem controvérsias relativas a princípios morais, e que em verdade os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não à estratégias ou fatos jurídicos. (DWORKIN, 2010, passim)

160 Aponta Norberto Bobbio, que devem estar presentes nas formulações que almejem ser

consideradas como positivistas, que o direito deve ser estudado como fato, não como valor, devendo o jurista se abster de qualquer juízo valorativo sobre a realidade em que se encontra. Direito é direito, e o conceito prescinde da avaliação de que seja bom ou mal, bem como de um juízo de valor ou desvalor. Ao lado disso é importante levar a tona que por emanar o direito de um dos poderes do Estado, o conceito de direito deve estar vinculado à possibilidade de se fazer cumprir coercivamente. E mais. Por emanar do Estado, deve-se considerar que a principal fonte do direito é a legislação, que tem preferência sobre qualquer fonte do direito. Por este motivo, no modelo positivista, a atividade de interpretação da norma é mecânica, consistindo em mera declaração de direito, pois para todos os casos apresentados há uma regra jurídica. Há, portanto, o dogma de que o ordenamento jurídico é completo, sem lacunas, antinomias e ambigüidades. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico:

lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 19 e ss) 161 Vale a pena observar o que

ensina Gustavo Zagrebelsky: “(...) hoy los principios que contienen valores de justicia se han convertido en derecho positivo integrado en la Constitución, que, por consiguiente, la apelación de la justicia, junto o frente a las reglas jurídicas, ya no puede verse como un gesto subversivo y destructor del derecho (a diferencia de lo que sucedía en la época del positivismo jurídico), son que es algo previsto y admitido; que tales principios consisten fundamentalmente en <nociones de contenido variable> y, por tanto, cumplen una función

78 relações dos poderes de Estado, transcendendo as funções do check and balances, mediante uma atuação que leve em conta a perspectiva de que valores constitucionais tem precedência mesmo contra textos legislativos162.

Nessa esteira, é imprescindível a atribuição de um sentido contemporâneo ao instituto da jurisdição, que confira ao juiz não somente a função de declarar o direito ou criar a norma individual, submetido a uma lei suprema, independentemente de seu conteúdo, mas uma teoria que torne evidente que é dever da jurisdição, tutelar os direitos fundamentais que se chocam no caso concreto, evidenciando que a função jurisdicional é uma consequência natural do dever estatal de proteger os direitos, o qual constitui a essência do Estado Constitucional163.

O direito à jurisdição, à tutela jurisdicional, tem dimensão constitucional na Constituição de 1988, alcançando a dignidade de direito fundamental, com aplicabilidade imediata. Esse reconhecimento pelo ordenamento jurídico posto é prenhe de consequências, pois não apenas o legislador é devedor de estruturas normativas e organizacionais que satisfaçam o direito à justiça, mas também o órgão jurisdicional. O exercício pleno desse direito não se esgota somente com a propositura da ação no Poder Judiciário, devendo ser compreendido como direito efetivo à justiça, a fim de que funcione o processo como instrumento por intermédio do qual concretiza-se a justiça substancial.

E caminhar em prol da verdadeira justiça substancial significa instaurar a campanha da efetividade no processo, materializada por um processo que disponha de instrumentos de tutela adequados a todos os direitos contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, quer se possam inferir do sistema164.

No marco do que seria uma constitucionalização do Direito Processual, ganha destaque a preocupação quanto aos instrumentos processuais hábeis a

esencialmente dinámica – se, comprenderá entonces que se ha introducido en el ordenamiento una fuerza permanentemente orientada al cambio”.

162 STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto

Alegre: Livaria do Advogado, 2002, p. 156.

163 Ibdem, p. 139.

164 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Efetividade do processo e técnica processual. Revista de Processo, São Paulo n.77, p.168 - 176, 1995.

79 assegurar a efetividade das normas constitucionais e sobre os melhores instrumentos processuais para garantia dos direitos fundamentais165.

Por mais que se possa caracterizar a Constituição brasileira de 1988 como uma "Constituição social, dirigente compromissária", é senso comum que a elaboração de um texto constitucional, por melhor que seja, não é suficiente para que o ideário que o inspirou se introduza efetivamente nas estruturas sociais, passando a reger com preponderância o relacionamento político de seus integrantes. Daí a eficácia das normas constitucionais exigirem um redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário. A aplicabilidade direta dos direitos fundamentais valerá, portanto, como indicador da exequibilidade do potencial das normas constitucionais, funcionando a jurisdição constitucional como verdadeira condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito.

A jurisdição é antes de tudo um poder estatal, cujo exercício se leva a cabo através da função judiciária. É poder; poder que emana do povo, como reconhece o art. 1º, parágrafo único do Texto Constitucional. Seu exercício se amarra à conformidade com os limites e objetivos postos na Constituição.

No paradigma do Estado Democrático de Direito, à jurisdição calha aplicar, coativa e autoritativamente, o direito; não aplica tão-somente a lei. O ponto é de relevo, pois na fase metodológica denominada formalismo-valorativo, o processo é instrumento para a persecução da justiça no caso concreto. Embora em muitos casos, a solução legal seja a solução adequada, há casos, porém, em que não estão na “cartilha do judiciário”, tendo o juiz que concretizar o direito no caso concreto para realizar a justiça166. O juiz, sensível ao fato de que o legislador não pode caminhar na mesma velocidade da evolução social, deverá atribuir sentido ao caso levado à sua análise, aproximando-o da realidade.

165 Cumpre refletir em cima de preocupações de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira de que o

garantismo muito propalado no direito penal, correlaciona-se com a problemática, no processo civil, acerca do acesso à justiça, considerada contemporaneamente como “acesso à ordem jurídica justa‟ e como eficácia do processo”, procurando demonstrar a remoção dos obstáculos à justiça e ao bem comum no exercício da jurisdição. As pressões externas sofridas pelo sistema processual, requer que o mesmo se realize e enderece a resultados jurídicos substanciais, sempre na medida e pelos modos e mediante as escolhas que melhor convenham à realização dos objetivos eleitos pela sociedade política. (Da constitucionalização do processo à procedimentalização da Constituição: uma reflexão no marco da teoria discursiva do direito. In: SARMENTO, 2007, p. 541.)

80 Por isso, o surgimento de novos fatos sociais dá ao juiz legitimidade para construir novos casos e para reconstruir o significado dos casos já existentes ou simplesmente para atribuir sentido aos casos concretos167.

O juiz deixa de ser boca da lei, como queria Montesquieu, e passa a ser projetor de um direito que toma em consideração a lei à luz de um sistema, ou melhor, da Constituição e, assim, faz os devidos ajustes para suprir as imperfeições da lei ou encontrar uma interpretação adequada, podendo chegara considerá-la inconstitucional no caso em que a sua aplicação não é possível diante princípios constitucionais e dos direitos fundamentais.

Deste modo, ao órgão jurisdicional mostra-se lícito, num procedimento em contraditório, transbordar a lei, da mera legalidade. Contudo, nunca, todavia, será lícito soltar-se dos princípios constitucionais de justiça, da juridicidade estatal.

Dentre as formas pelas quais o órgão jurisdicional garantirá e salvaguardará a supremacia dos preceitos constitucionais, temos as formas de jurisdição constitucional previstas no sistema jurídico. Por intermédio da jurisdição constitucional é que o Poder Judiciário compatibilizará a decisão a ser proferida com a “força normativa da com Constituição”168.

Também chamada pela doutrina de justiça constitucional, Joaquim José Gomes Canotilho afirma que a jurisdição constitucional consiste em decidir vinculativamente, num processo jurisdicional, o que é o direito, tomando como parâmetro material a Constituição ou o bloco de legalidade reforçada consoante se trate de fiscalização da legalidade169.

167 MARINONI, 2010, p. 97.

168 A ideia de Constituição normativa apresenta-

se difundida na obra de Konrad Hesse, para quem “A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”. Teoria desenvolvida por Konrad Hesse sobre a força normativa da Constituição tem a ver com a força que constitui a essência e a eficácia da Constituição. Reside na natureza das coisas, impulsionando, conduzindo e transformando a Constituição em força ativa168. Destacando que a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de eficácia, assevera o autor que constituem requisitos essenciais para o desenvolvimento da força normativa da Constituição: i) que ela leve em conta os elementos sociais, políticos, e econômicos dominantes; e, ii) que seja incorporada na práxis a “vontade de Constituição168

” por todos os partícipes da vida constitucional.

Assevera o jurista alemão que a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma, não sendo possível a aplicação com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual, e é adequada quando consegue concretizar de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada sociedade. (HESSE, Konrad.A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 16).

169

81 Ao falar de jurisdição constitucional é lugar comum afirmar que no direito brasileiro o controle de constitucionalidade pode se dar mediante ação direta ou no curso de qualquer outra ação voltada à solução de um conflito de interesses, que não tenha como fim específico a declaração de inconstitucionalidade de lei, bem como afirmar que a inconstitucionalidade pode ser declarada incidentalmente em qualquer processo. Contudo, falar em jurisdição constitucional não implica falar tão somente no controle que se dá pela declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e sim compreender que ao juiz incumbe um dever de proteção e realização dos direitos fundamentais, no sentido de torná-los efetivos.

Jurisdição constitucional designa a aplicação da Constituição por juízes e

tribunais. Essa aplicação poderá ser direta, quando a norma constitucional discipline ela própria, determinada situação da vida. Ou indireta, quando a Constituição sirva de referência para atribuição de sentido a uma norma infraconstitucional ou de parâmetro para sua validade. Neste último caso estar-se-á diante do controle de constitucionalidade, que é, portanto, uma das formas de exercício da jurisdição constitucional170.

O processo, individual ou coletivo, que considerando a exequibilidade potencial das normas constitucionais, tenha por escopo a efetivação de um direito fundamental – usaremos o direito à saúde, como pertinente exemplo –, é também manifestação da jurisdição constitucional. Segundo Lênio Streck, “é necessário deixar claro que qualquer ato judicial é ato de jurisdição constitucional. O juiz sempre faz jurisdição constitucional. É dever do magistrado examinar, antes de qualquer outra coisa, a compatibilidade do texto normativo infraconstitucional com a Constituição”171.

Logo, fica óbvio que ao Poder Judiciário compete processar e julgar as demandas em que se requer atuação positiva do Poder Público no sentido de efetivar os direitos fundamentais, e que assim atuando, está o juiz fazendo jurisdição constitucional. O constitucionalismo contemporâneo impõe o dever de caminhar em prol da verdadeira justiça substancial, da efetividade.

A atuação jurisdicional compreende, desse modo, interpretar a lei de acordo com a Constituição, controlar a constitucionalidade da lei, e tutelar amplamente os direitos fundamentais, o que inclui o dever de suprir toda e qualquer

170 BARROSO, 2011, p.25. 171 STRECK, 2002, p. 362.

82 omissão legal que impeça a proteção e a plena realização de um direito fundamental.

É conveniente ressaltar que, no Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais, quando enquadrados em sua dimensão multifuncional, exigem prestações de proteção pelo Estado, que transcendem a tutela jurisdicional.

No caso da saúde, transcendendo a tutela jurisdicional, observa-se a edição de normas, a fiscalização do seu cumprimento, remoção de efeitos concretos derivados da sua inobservância, além das sanções impostas ante a inobservância de tais regras. Há, portanto, proteção ou tutela administrativa. A função jurisdicional é uma consequência natural do dever estatal de proteger os direitos, o qual constitui a essência do Estado contemporâneo.

Na lição de Luiz Guilherme Marinoni, sem a jurisdição seria impossível ao Estado não apenas dar a tutela aos direitos fundamentais e permitir a participação do povo na reivindicação dos direitos transindividuais e a na correção dos desvios na gestão da coisa pública, mas, sobretudo, garantir a razão de ser do ordenamento jurídico, dos direitos e das suas próprias formas de tutela ou proteção172.

Entre nós, o direito à jurisdição tem dimensão jusfundamental (art. 5º, XXXV, CF), com aplicação imediata (art. 5º, §1º, CF). Logo, o direito à tutela jurisdicional vincula o Estado em toda a sua extensão; não só o legislador infraconstitucional é devedor de estruturas normativas e organizacionais que satisfaçam o direito à tutela jurisdicional, mas também o próprio órgão judicial está gravado de idêntico encargo.

Restringindo o objeto do nosso estudo, há de se observar que a compreensão da tutela jurisdicional à saúde exige esforço e concentração no plano do significado das normas. As normas de proteção do direito fundamental à saúde são normas atributivas de direitos, impondo condutas para que o mesmo seja considerado tutelado. Portanto, tais normas quando violadas, não exigem tão somente as formas de tutela que costumam ser dadas aos cidadãos diante do dano. A realização do direito à saúde, como exige a atuação da norma, não se esgota num remédio capaz de garantir proteção ao sujeito que sofreu dano, que é a tutela ressarcitória. Requer, diante da ameaça ou da violação de norma de proteção a

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MARINONI, Luiz Guilhereme. Idéias para um “renovado direito processual In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio. Bases científicas para um renovado direito processual. Salvador: Juspodivm, 2009, p.127.

83 direito à saúde, tutela jurisdicional capaz de fazer valer o próprio desejo da norma descumprida.

A dogmática processualista, desenvolvida sob a égide do Estado de Direito, fundou-se nas ideias clássicas de que a liberdade individual deveria ser preservada a qualquer custo, bem como na classificação trinária das sentenças (declaratória, constitutiva e condenatória), concebida para dar tutela aos direitos patrimoniais, sem levar em conta nem a qualidade das partes e nem a qualidade do litígio. A essa abstração, isto é, a essa indiferença pela diversidade de pessoas e dos bens, correspondia no plano da sanção, que somente podia ser imposta pelo juiz a tutela ressarcitória, limitada a exprimir o equivalente em dinheiro do bem almejado. Se o direito a ser tutelado possuía natureza patrimonial e podia ser convertido em pecúnia, não se podia, naquele momento, pensar em tutela preventiva, uma vez que o juiz não podia interferir na liberdade do indivíduo impedindo-o, ou melhor, obrigando-o, a não cometer um ato ilícito.

A Constituição Federal de 1988 não só garante uma série de direitos não