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2. QUANTO PRENDEMOS?

2.1 Considerações metodológicas

Na aproximação com o fenômeno do encarceramento brasileiro e, sobretudo, com a sua qualificadora “em massa”, a primeira pergunta que precisamos responder é: quanto

prendemos?

Entender a dimensão do processo de aprisionamento no país é essencial para a presente dissertação. Isso porque, a partir da análise atual e histórica dos dados sobre a população prisional, torna-se possível uma primeira compreensão da gravidade da violação de direitos humanos operada pelo sistema punitivo no Brasil.

A análise estatística possui capacidade limitada na descrição da realidade, sobretudo quando tratamos de violações de direitos humanos – entre as quais se inclui a privação massiva, racista e classista da liberdade. Há, contudo, uma importante contribuição desse campo na produção de conhecimentos na área. Como apontam Jabine e Claude (2007:25),

qualquer violação da liberdade humana merece condenação universal. No entanto, quem trabalha na área dos direitos humanos sabe que determinar responsabilidades por abusos exige exame de como, até que ponto e porque as liberdades humanas foram cerceadas ou ameaçadas. […] A estatística aplicada aos problemas de direitos humanos pode fazer a diferença.

Assim, neste capítulo buscarei apresentar e problematizar, em dimensões quantitativas, o processo de encarceramento no país. Contudo, antes de apresentar números, gráficos e tabelas que expressam quanto se prende no Brasil, entendo pertinente responder à pergunta: de onde vem esses dados? Essa resposta importa para se entender as possibilidades e, sobretudo, as limitações das análises quantitativas sobre a população prisional brasileira.

Os principais dados analisados nessa pesquisa são oriundos do Infopen, um “sistema

de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, atualizado pelos gestores dos estabelecimentos”2. Os dados são coletados semestralmente a partir de formulários online

preenchidos pelos diretores de cada um dos 1436 estabelecimentos prisionais do país, sendo

2 Conforme <http://dados.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-

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validados por supervisores de cada Estado e consolidados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. Com efeito,

até 2005 havia poucas informações capazes de diagnosticar o sistema prisional brasileiro. Alguns levantamentos anteriores a essa data foram realizados – pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e pela Pastoral Carcerária –, mas a ausência de padrão metodológico impedia a formação de séries históricas consistentes e análises mais aprofundadas. A partir daquele ano, o Depen passou a coletar informações sobre os estabelecimentos penais e a população prisional, a partir de levantamento e produção de relatórios que ficou conhecido como ‘Infopen’ (PIMENTA; MOURA, 2016a:13)

Cada diretor preenche um formulário no qual constam perguntas sobre infraestrutura, seções internas, recursos humanos, capacidade, gestão, assistências, população prisional, perfil das pessoas presas, entre outras. Ao final, é constituída uma base de dados com 1436

linhas (sem considerar os títulos), correspondendo ao número de estabelecimentos prisionais em dezembro de 2014, e 1424 colunas, contendo as diversas respostas nos itens mencionados.

É certo que essa característica da base de dados sobre a população prisional brasileira impõe um sério problema de confiabilidade. Assim como ocorre nos demais países da América do Sul, as agências penais que geram as informações são as mesmas que são responsáveis pela gestão das unidades penitenciárias, sem que existam mecanismos de monitoramento ou de controle e participação social, capazes de ampliar a confiança de que os dados informados correspondem de fato à realidade do encarceramento no país (SOZZO, 2016).

Em 2014 foram realizadas diversas alterações na metodologia de coleta de informações prisionais do Infopen. Além da inclusão de diversos campos que não eram coletados anteriormente, foi elaborado um manual de preenchimento, após se identificar que a falta de compreensão sobre os dados que deveriam ser preenchidos gerava inconsistências nos dados coletados (BRASIL, 2015b).

Outra importante limitação da base de dados é o seu nível de desagregação. A partir desta metodologia de coleta, os dados são informados de forma agregada, ou seja, não são extraídos de sistema(s) informatizado(s). Desta forma, inexistem microdados disponíveis sobre a população carcerária brasileira. Além disso, há baixa taxa de resposta para alguns itens e, consequentemente, prejuízo às análises produzidas com base nas informações.

Como vimos, os formulários são respondidos por diretores dos estabelecimentos prisionais. Eles respondem campos como “quantidade de presos sentenciados por regime”,

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“quantidade de pessoas privadas de liberdade por cor de pele/ raça/ etnia” e “quantidade de pessoas privadas de liberdade em atividade educacional”. Não há, portanto, informação desagregada ao nível de pessoa privada de liberdade. Dessa forma, diversas análises ficam prejudicadas sem microdados, sendo impossível saber, por exemplo, quantos presos negros estão no regime fechado ou quantas presas do regime semiaberto estão estudando.

A forma como o formulário online está estruturado permite, contudo, ampla desagregação no quesito gênero. Isso porque, em todas as questões relativas ao perfil das pessoas privadas de liberdade, o diretor do estabelecimento responsável pela alimentação dos dados deve informar o número de homens e o número de mulheres para cada item. A imagem abaixo ilustra parcela dos campos preenchidos:

Figura 1 – Formulário de preenchimento dos dirigentes de estabelecimentos prisionais

Fonte: Infopen – dez/2014

Todo esse fluxo de coleta e tratamento dos dados refere-se aos dados mantidos pelas Administrações Penitenciárias dos Estados e do Distrito Federal. Não obstante, nem todas as

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pessoas privadas de liberdade no Brasil estão sob a custódia desses órgãos. Em alguns Estados, geralmente em virtude de falta de vagas no sistema penitenciário, parcela dos presos é mantida – por maior ou menor período – custodiada em celas de delegacias de polícia. A maior parte são pessoas presas cautelarmente, que ainda aguardam o julgamento de seu processo.

Para se ter um exemplo, na última coleta realizada até a finalização desta dissertação, referente a dezembro de 2014, foram identificadas 37.444 pessoas presas em delegacias de polícia, correspondendo a 6% das pessoas privadas de liberdade no país.

Os dados relativos a estas pessoas são extremamente precários. Na maioria dos Estados, as delegacias de polícia estão vinculadas direta ou indiretamente às Secretarias de Segurança Pública, ao passo que os estabelecimentos prisionais estão vinculados às Secretarias de Administração Penitenciária, ou à pasta que acumule essa atribuição (por exemplo, Secretarias de Justiça ou Direitos Humanos). Este arranjo organizacional dificulta ao Departamento Penitenciário Nacional obter as informações, de modo que os dados sobre presos mantidos em delegacias de polícia são incompletos e superficiais, contendo a indicação apenas de quantas pessoas estão presas. Parcela dos Estados desagrega a informação por gênero, indicando, dentre o número de pessoas presas, quantos são homens e quantas são mulheres.

Após a coleta, tratamento e consolidação dos dados, o Ministério da Justiça divulga, periodicamente, relatórios nacional e por Estado com informações sobre a população prisional no país.

Além dos dados referentes ao Infopen, que representam série histórica com dados disponíveis de 2005 até 2014, serão mencionados também dados anteriores, a partir de levantamentos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo próprio Ministério da Justiça. Estes dados são importantes para indicar, em um horizonte de tempo mais amplo, a evolução do número de pessoas presas no país.

Não obstante, mesmo essas comparações mais amplas devem ser vistas com ressalvas, uma vez que a diferença na metodologia de coleta e tratamento dos dados praticamente os torna incomparáveis. O IBGE, por exemplo, coletou dados diversos ao longo dos anos, ora tratando de número de condenados, ora tratando de movimentação de presos, impossibilitando uma série histórica adequada.

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Na comparação das informações sobre a população prisional brasileira com dados de outros países, foram utilizados como referência os levantamentos mantidos pelo Internacional

Centre for Prision Studies – ICPS (Centro Internacional de Estudos Prisionais, em tradução

livre). O ICPS mantém atualizada e disponibiliza ao público base de dados online sobre prisões e encarceramento no mundo3, permitindo rica análise comparativa.

Há, por fim, um último apontamento a respeito dos dados utilizados nesta pesquisa. Quando trato de pessoas privadas de liberdade ou pessoas presas neste trabalho, refiro-me tão somente às pessoas adultas, deixando de incluir dados sobre os adolescentes internados no sistema socioeducativo. Este recorte foi necessário, sobretudo, por uma limitação própria da pesquisa, uma vez que a abordagem das internações de adolescentes exigiria um aprofundamento em referencial teórico próprio e repleto de particularidades, específico do público coberto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Da mesma forma, os dados disponíveis no ICPS, utilizados para comparativos com demais países, consideram apenas a população adulta privada de liberdade.

Feitas as considerações metodológicas, passo a apresentar dados sobre a população prisional no Brasil e sua evolução ao longo dos anos.