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Considerações sobre a cultura da violência nos territórios prisionais

CAPÍTULO I PRISÕES E DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

1.3 Considerações sobre a cultura da violência nos territórios prisionais

A crise crônica no sistema penitenciário brasileiro é reflexo das mazelas sociais. Historicamente o homem é o produto cultural que através dos hábitos e costumes formam suas personalidades. A criminalidade é fato recorrente aos marginalizados, visto que a prática delituosa pode estar ligada à miséria. Os indivíduos pobres em capital econômico e cultural, tenderiam a investir menos no sistema de ensino, dessa forma a entrada no mercado de trabalho ocorria de forma tardia e dificultosa (BOURDIEU, 2005). Sendo assim, sem o acesso ao conhecimento e informações, os agentes de reprodução social ficariam reféns do poder arbitrário de dominação.

Sabemos que o território é formado através das relações de poder. Nos espaços prisionais eles são formados por meio de vários fatores, sejam eles econômicos, políticos, sociais e culturais, a partir do qual o Estado tem um papel fundamental nas formas de controle social. Observando esse processo de segregações e diversificação dos territórios e rotinas dos presos, podemos simplificadamente, estabelecer três categorias fundamentais para classificá-

los: econômica, cultural e política (ALMEIDA, 2014, p. 1212). Nesse sentido, a formação do território das pessoas privadas de liberdade pode surgir na forma econômica, sendo aqueles que detêm certo poder aquisitivo, seja ele de forma lícita ou ilícita. Esse poder econômico pode variar, alguns conseguem dentro do próprio espaço prisional através de vendas de utensílios fabricados por eles mesmos ou através de programa da instituição penal. Também pode se encaixar nessa faixa econômica aqueles que obtêm capital na informalidade através de negócios no mundo do crime, ou seja, através da ilicitude penal.

Observa-se também que culturalmente há formação de territórios prisionais dentro desses espaços. Podemos citar a questão da religiosidade. É comum nas penitenciárias a separação em alas, pavilhões ou celas destinadas exclusivamente para pessoas evangélicas que praticam cultos e orações dentro das penitenciárias. Também podemos encontrar territórios culturais através do conhecimento que alguns presos dispõem, por desenvoltura intelectual e profissional, formando, assim, espaços de inclusão e exclusão social.

É comum nas penitenciárias ouvir falar nas alas dos pecadores/não pecadores, dos ímpios/nãos ímpios, dos que aceitaram Jesus depois que entraram na prisão e dos presos de pouca fé. O relato de Flor indica que há mesmo essa divisão segregacional. Perguntada sobre as presas que são difíceis de convívio social, Flor10 argumenta:

Aqui nessa penitenciária as “latadas”11

são praticadas por aquelas presas que perderam o sentido da vida, essas presas não acreditam mais em deus. Estão perdidas no mundo do crime, enfiada até o pescoço no mundo das drogas, por outro lado as presas de bom comportamento são aquelas firmes na religião seja católica ou evangélica, na maioria evangélica, pois aqui tem várias evangélicas que fazem cultos aos domingos e feriados. Nós aqui da Unidadequando iremos recrutar alguém para trabalhar aqui fora, sempre pegamos alguém que tem um bom comportamento, aquelas que tem fé em deus, que não são usuárias, ou seja queremos que a coisa funcione em perfeita harmonia, não podemos arriscar em presas “latadas”. (Depoimento de Flor, funcionária do SISPEN/TO, 2017).

Percebe-se claramente no depoimento da servidora do sistema penal tocantinense que nas prisões existe essa divisão ou criação de microterritórios intramuros.

No campo político podemos destacar que no território prisional tocantinense, existem grupos de presos que tem uma facilidade enorme de argumentação, de comunicação, de dialogar. Rapidamente conseguem certa liderança sobre os demais reclusos. Esses grupos de presos acabam por ser escolhidos para intermediar nas negociações com os representantes das Direções das Unidades prisionais, Judiciário, Defensoria Pública, Conselho da Comunidade,

10 Nome fictício, utilizado para manter total sigilo da entrevistada de acordo com a Resolução 466/12. 11 Confusão, enrascada, atividades relacionadas às ilegalidades.

Pastoral Carcerária, Sistema de Saúde, Membros da SECIJU, enfim, todos que compõem o sistema de justiça prisional.

Ademais existe uma grande variedade de profissões dentro dos presídios tocantinenses, de vendedor a locutor, ou seja, esse público tem muita facilidade de conseguir acesso as informações que necessitam, e muitas vezes até de burlar e manipular a equipe dirigente. Esses grupos estão presentes na maioria dos territórios prisionais, sendo que os mesmos detêm o poder e o monopólio das ações dentro das penitenciárias.

Nesse sentido, nos territórios das prisões cria-se uma nova forma de viver adequando- se aos costumes daquele ambiente. A mortificação do eu fica evidente, pois as pessoas ergastuladas não possuem domínio total sobre suas próprias vontades e até mesmo de sua identidade. Nesse caso, pessoas podem desenvolver uma cultura violenta, pois ali, no ambiente prisional, é rotineiro ver situações de conflitos no qual as diversas formas de poder são estabelecidas através do poder econômico, físico e intelectual.

Sabemos que mesmo depois da sentença é constituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema dos suplícios de sofrimento corporal e de humilhações. O poder que aplica as penas ameaça ser tão arbitrário, tão despótico quanto aquele que antigamente as decidia (FOUCAULT, 2004, p. 106).

Haesbaert (2004) destaca quatro dimensões territoriais que exemplificam as características da formação dos territórios no qual: 1) a política se contextualiza como espaço delimitado e controlado para o exercício do poder; 2) a cultural, que se apropria da dimensão simbólico-subjetiva em determinados grupos, nos espaços comuns de convivência; 3) a econômica, vista como um território de fontes, recursos e lutas de classes sociais; e 4) a naturalista, focada no território animal, vinculado ao espaço físico propriamente dito.

Nas prisões observa-se uma dimensão extremamente econômica, política e cultural, pois esses territórios são efetivados a partir desse tripé, que integra e interliga tais concepções. A questão da criminalidade está diretamente relacionada às questões de marginalidade social, ou seja, os infratores geralmente têm muitas dificuldades de inserção no mercado de trabalho, visto que não são qualificados para o mercado de trabalho, e acabam infringindo as regras de sociedade. Assim,

A configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima. (SANTOS, 1996, p. 51)

De acordo com o autor o espaço transformado pelos os homens em sua materialidade tornam o território em um campo social e político. No campo político essa reterritorialização é utilizada como forma de segregação social, aos que foram reprovados por condutas sociais negativas. Socialmente, a consolidação de territórios dentro das prisões, por novas formas de viver, novos costumes, como por exemplo, os horários pré-fixados pelas equipes dirigentes dos presídios e até mesmo a utilização de dialetos os quais somente será possível o conhecimento dentro das prisões.

Para Saquet, Sposito (2009), as relações sociais implicam na organização do território, logo:

Nosso desafio é compreender como as diferenciações da produção espacial e territorial são organizadas e reproduzidas e por quais relações e classes sociais. Estou me referindo às diversas classes e relações sociais que produzem diferentes espaços e territórios. Por essa compreensão é que entendemos ser importante o uso de uma tipologia de territórios. Relações e classes sociais produzem diferentes territórios e espaços que as reproduzem em permanente conflitualidade. (SAQUET; SPOSITO, 2009, p. 199).

Nesse sentido, os territórios prisionais podem ser entendidos como áreas segregadas das relações sociais de poder, onde impera um domínio natural dos que dispõem de certo poder, seja ele econômico, físico ou intelectual. Podemos observar nesses espaços prisionais um hibridismo cultural recorrente, significativo, o qual impõe uma nova cultura a partir das relações sociais de poder e dominação. As prisões, como instituições totais, têm o papel de adestrar o internado para novos comportamentos através da disciplina hierárquica imposta pelo poder do Estado. Goffman (2010) afirma que:

Aparentemente, as instituições totais não substituem algo já formado pela sua cultura específica; estamos diante de algo mais limitado do que aculturação ou assimilação. Se ocorre mudança cultural, talvez se refira ao afastamento de algumas oportunidades de comportamento e o fracasso para acompanhar mudanças sociais recentes do mundo externo. Por isso, se a estada do internado é muito longa, pode ocorrer, caso ele volte para o mundo exterior, o que já foi denominado de “desaculturamento” - isto é, “destreinamento” - que o torna incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária. (GOFFMAN, 2010, p. 23).

Nesse sentido, essas instituições impõe certo conflito entre o mundo doméstico e mundo institucional, gerando, assim, um novo modo de vida para todos aqueles que deixaram seus lares para ingressarem no mundo da criminalidade. Essas instituições estão a serviço do estado para moldar os corpos e fazer com que esses indivíduos infratores possam ser dóceis para viver em perfeita harmonia com a sociedade.

A lei da competitividade entre os homens no mundo globalizado e capitalista faz com que os conflitos se estendam através de várias formas de violência, a luta pela vida, pelo “poder”, ascensão social, e status impostos pela sociedade contemporânea que geram disputas territoriais, e são:

[...] portanto, de significação das relações sociais e de controle dos diferentes tipos de território pelas classes sociais. O território, compreendido apenas como espaço de governança, é utilizado como forma de ocultar os diversos territórios e garantir a manutenção da subalternidade entre relações e territórios dominantes e dominados. (SAQUET; SPOSITO, 2009, p. 200)

Se considerarmos questões como a divisão de classes sociais, podemos perceber que as prisões são o reflexo negativo de uma política governamental do encarceramento em massa em virtude da segregação social. Os miseráveis tendem a pagar um alto preço, sendo penalizados por uma política mais penitenciária e menos social (WACQUANT, 2001).

Como se não bastasse essa segregação racial ou social extramuros, dentro das penitenciárias brasileiras, há uma verdadeira onda de violência seja em territórios prisionais masculinos ou até mesmo femininos. Nesses ambientes se formam também divisões de micropoderes que dominam, liderando ações criminosas, como também são influenciados ou dominados pelos que detêm o poder local. Para Foucault (1989):

[...] a prisão foi um grande instrumento de recrutamento. A partir do momento que alguém entrava na prisão se acionava um mecanismo que o tornava infame, e quando saía, não podia fazer nada senão a voltar a ser delinqüente (sic). Caía necessariamente no sistema que fazia um proxeneta, um policial ou um alcaguete. A prisão profissionalizava. (FOUCAULT, 1989, p. 133).

A partir da visão de Foucault (1989), podemos observar que a prisão sempre foi um ambiente hostil e perverso, onde se pratica o exercício arbitrário do poder. Esse poder é delegado aos que se destacam dentro do próprio grupo de presidiários (as), seja na liderança intelectual, no poder econômico ou nas relações de poder a partir da força física, ou seja, partindo do princípio da utilização da violência. Podemos perceber que essas práticas antigas ainda prevalecem nas penitenciárias brasileiras e não estariam concentradas somente nos ambientes prisionais masculinos, mas também estão presentes no ambiente penitenciário feminino.

A exemplo disso, na data de 09 de março de 2017, ocorreu uma rebelião na Penitenciária Feminina do Piraquara-PR (PFP). Na ocasião uma Agente Penitenciária foi feita de refém, sendo espancada por várias detentas e ferida com cacos de vidros. Além da Agente

Carcerária, 06 presas ficaram como reféns. As presas conseguiram dominar 02 pavilhões da penitenciária. A superlotação e falta de condições mínimas para o cumprimento das penas foi um dos motivos das reivindicações das presas. A penitenciária abriga cerca de 400 presas, mas a capacidade é somente para cerca de menos 200 presas. “O efetivo de agentes é

reduzido. Estão vulneráveis. Como as condições são ruins, a vigilância fica frágil”, afirmou

Petruska Sviercoski, presidente do SINDARSPEN. São cerca de 10 a 12 agentes penitenciárias para cuidar de 400 presas (TRIBUNA DO PARANÁ, 2017).

Nesse sentido, a fala da profissional de Segurança Penitenciária deixa bem claro que o Estado não estaria cumprindo o seu papel de garantidor de direitos, sejam eles direcionados às presidiárias, nem tampouco aos funcionários do sistema prisional, visto que a falta de efetivo profissional e um ambiente superlotado e insalubre estaria violando os direitos humanos das presidiárias e dos funcionários daquele ambiente prisional. Não somente descumprindo regras de direitos humanos, mas também estaria fomentando a violência prisional.