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CAPÍTULO 2 – OS CÍRCULOS DIALÓGICOS COMO EPISTEMOLOGIA DA AUTO(TRANS)FORMAÇÃO E DO FAZER PEDAGÓGICO

3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A REALIDADE DO MUNICÍPIO CONTEXTO DA PESQUISA

Se o ser humano é o que é, em constituição com suas experiências e contextos, não é possível apresentar a EZ sem também, com ela, contar um pouco de Barra Funda, pequena cidade localizada na região do Médio Alto Uruguai, no norte do Rio Grande do Sul, conhecida como ―a terra da água mineral‖. Pelo censo do IBGE 2010, a referida cidade possui 2.367 habitantes, residentes na área urbana e rural, predominantemente descendentes de imigrantes italianos27.

Contudo, há na história do município uma página a qual poucos leram: a participação dos agregados na produção historiográfica de sua fundação e desenvolvimento. Segundo Mantovani (2000), Barra Funda pertenceu a Sarandi até 1992, quando de sua emancipação. Baseada em pequenas propriedades rurais e mão de obra familiar, contou com o trabalho dos agregados em seu processo de ocupação, apropriação de terras e produção agrícola. ―Os agregados barrafundenses, na sua maioria cabocla, também tiveram participação no ―desbravamento‖ e construção do município, embora sua presença seja ignorada ou menosprezada pelos escritos e pela tradição oral‖ (p. 9-10).

Por esta razão, quando o site do município mostra, conforme a figura 2, que 90% dos habitantes são descendentes de imigrantes italianos, recusa-se a considerar o processo de ―expulsão‖ de muitos caboclos, na época agregados, que trabalhavam a terra juntamente com suas famílias. Na escrita do site oficial de BF, registra-se o início do processo de colonização por famílias vindas da região de

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Guaporé, Veranópolis e Caxias do Sul, sendo que, anteriormente, já era habitada pelos índios Guaranis denominados de Coroados, por negros, e por posseiros numa área de pura mata virgem. ―Os primeiros núcleos habitacionais surgiram na década de 24.‖

Figura 2 – Levantamento de imigrantes do município de Barra Funda (RS), segundo a Prefeitura Municipal

Fonte: Prefeitura Municipal de Barra Funda. Disponível em: http://www.barrafunda.rs. gov.br/ município/em-numeros.html, acessado em 15 Set. 2015.

Mantovani (Ibid, 2000) traz também como parte da população, além dos imigrantes italianos, a presença dos agregados, assalariados de origem cabocla e migrantes de municípios vizinhos. É ―importante lembrar que a colonização de Barra Funda foi marcada pelos conflitos com caboclos e posseiros, pela expropriação e pela marginalização dos camponeses caboclos‖ (p. 20); entre estes expropriados e seus descendentes, estavam futuros sem-terra e agregados, constituindo-se mão de obra coadjuvante das pequenas propriedades rurais da região.

Na economia, a base constitui-se na agricultura, na pecuária, na industrial e no comércio. Produz soja, milho e trigo, sendo que a produção de arroz e feijão é apenas para a subsistência das aproximadamente 400 propriedades rurais, segundo dados oficiais do município. Inicia, timidamente, a produção de uva e laranja, com agroindústrias. A pecuária é presente no manejo de rebanhos bovinos leiteiros, suínos e criação de peixes. Há representatividade industrial, que é a maior geradora de renda e empregos da cidade, a Indústria de Águas Minerais Sarandi é comercializada em vários Estados, gerando empregos para muitos dos jovens da escola, desde a modalidade de Aprendiz Legal até o emprego formal a partir dos 16 anos. Há também outras pequenas indústrias instaladas, com destaque para as

têxteis. Contudo, há grande fluxo de munícipes que se deslocam diariamente a Sarandi e região para trabalhar e cursar o Ensino Superior.

Desde sua emancipação político-administrativa, o município mantém-se sob a administração do mesmo partido, mantendo sempre a maioria dos aliados na Câmara Legislativa. Esta característica peculiar, de mais de 20 anos sob a mesma ótica administrativa, é um dos questionamentos com relação ao senso comum que transpõe o município, ―pra nós aqui é tudo bom. Poderia vir outro médico clínico geral porque o fulano tá sempre com a receita pronta: paracetamol e diclofenaco‖; e ―sou contra o bolsa família, aqui em Barra Funda não tem pobreza‖; e ainda, ―problema ambiental não vejo muito, só o veneno e o esgoto que vai pro rio‖28

. Estas falas revelam a ingenuidade e o senso comum de uma população que se acomoda há mais de duas décadas com a ilusória neutralidade de que vive bem com pequenos favores.

Muitas vezes, é a escola o único espaço de contraponto e resistência de atitudes viciosas e que não garantem dignidade e cidadania à população. Um exemplo disso é a análise do senso comum nas falas acima, uma vez que a falta de consciência da classe é capaz de nublar o senso crítico dos cidadãos ao afirmar que não há pobreza em um pequeno município, onde trabalhadores têm que se deslocar a outros municípios para buscar empregos em indústrias, casas de família e comércio. Dizer que não há problemas na saúde em uma localidade em que não há hospital para atender à população, e as filas no posto de saúde são constantes, na busca de atendimento pelo único médico disponível que os atende com ―receitas prontas‖. Tampouco conseguindo enxergar a poluição da água com o descarte de resíduos industriais no córrego que deságua no rio que corta a cidade, onde a alternativa da administração seria canalizar o córrego para que os dejetos não sejam vistos pela população, sem acabar verdadeiramente com a poluição das águas. Por essas razões, a escola mantém a análise das falas da realidade, através da pesquisa participante, uma vez que, ao estudá-las, o senso comum e os ―nós‖ que impedem os cidadãos de ser-mais são questionados na escola, são problematizações que integram as vivências sociais e comunitárias dos educandos.

Atualmente outro fator chama a atenção na estrutura do município: o número de mulheres ocupando o cargo de vereadoras; são 6 das 9 vagas que compõem a bancada. A escola mantém uma intensa luta pela equidade de gênero e abordou

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Falas coletadas na comunidade no ano de 2014, estudadas pelas professoras e que compõem a rede de falas 2015, disponível no 3º livro da escola, (2015, p. 124).

projeto sobre o papel da mulher na política na Feira de Iniciação à Pesquisa em 2014, desenvolvida a fala geradora: ―os homens que se cuidem, aqui só dá nós!‖ de 2014 a 2015. O trabalho ―A voz e a vez das mulheres nos espaços políticos29‖ foi 3º

lugar na categoria de trabalho científico para estudantes de 1º ano do Ensino Médio, na II Mostra Regional de Ciências e V Mostra de Ciências do CAFW, promovida pelo Colégio Agrícola de Frederico Westphalen, da UFSM.

Assim, questões da estrutura do município são temas constantes em sala de aula, integrando a história local com as aulas e problematizando situações cotidianas para que os estudantes possam reafirmar-se na condição de cidadãos efetivamente participativos, comprometidos e críticos de sua realidade. Com esta contextualização, pretende-se reconhecer que um dos saberes necessários à prática educativa, segundo Freire (2011a), é o de que o educador precisa ter clareza de sua prática; longe da memorização mecânica, ela envolve a existência de sujeitos, de sonhos, de caráter, de utopias, e é daí que vem a politicidade ―qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra‖ (FREIRE, 2011a, p. 68).

Gadotti (1979 apud FREIRE, 2014, p. 15), no prefácio de Educação e Mudança, constata que, depois de Freire, já não é possível pensar a educação como um ato neutro; ―a educação é sempre um ato político‖. Por mais que, historicamente, tenha servido às classes dominantes, na perspectiva de Freire é para os oprimidos que ela se volta, possibilitando-lhe a voz e a vez de questionar, abrir arestas para reduzir a obscuridade. ―O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas ―águas‖ os homens verdadeiramente comprometidos ficam ―molhados‖, ensopados. Só assim o compromisso é verdadeiro‖ (FREIRE, 2014, p. 22).

Destarte, o estudo de caso, como realização de pesquisa-participante, aconteceu inserido nos momentos de formação permanente, realizados na escola Zandoná no período do 2º semestre de 2015 e 1º semestre de 2016, quando da realização dos seis Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, em encontros semanais. A apresentação e análise dos diálogos foi realizada ao longo do texto e dos capítulos, que privilegiam a articulação da auto(trans)formação permanente dos professores como entrelaçamento para uma proposta pedagógica de educação popular na escola pública regular.

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Resumo da pesquisa no anexo A - trabalho elaborado pelos estudantes Eduarda Posser Pazzini, Mayara Selli e Jonatan Rebonatto Biasolli, sob a orientação da professora Karine Piaia. Disponível no livro da escola ―O andarilhar da educação: história feita por muitas mãos‖ (2015, p. 112).

CAPÍTULO 4 – ENTRELAÇAMENTOS DA ESCOLA PÚBLICA COM A