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Afirmar que habitus e campo são indissociáveis significa considerar a experiência da própria pesquisa, uma vez que as categorias analisadas se intercruzaram repetidas vezes. Se observarmos com atenção, constataremos que é impossível mencionar dados sobre os agentes (história de vida, trajetória profissional, etc) sem nos referirmos ao campo e às práticas sociais do campo, da mesma forma que a análise do campo contou com informações sobre seus agentes.

Assim, ao considerarmos os conflitos e relações de poder que se estabelecem entre os docentes neste programa de pós-graduação, percebemos que a configuração do campo perpassa por experiências individuais e que a formação dos professores passa por um processo de assimilação de conteúdos do campo que, por sua vez, é carregado de fragmentos de histórias de vida e de formação de outros agentes. O campo é historicamente constituído, e dessa história fazem parte muitos agentes, alguns deles tendo se tornado ilustres pensadores do país.

Se o campo científico caracteriza-se pela busca de reconhecimento e consagração, no contexto atual estas características se intensificam em função da lógica instrumental que se instalou na universidade pública, pela disputa por espaço de trabalho e condições para solidificar a carreira. As avaliações heterônomas, especialmente via CAPES, induzem a competição e o individualismo nas relações de trabalho. E ambos são, ao mesmo tempo, de alguma forma, introjetados e criticados como “avaliações de punição”, os critérios são comparados a “metas de telemarketing” que se tornam, na visão dos professores, “indutores do produtivismo institucional e individual”, sendo que as nuances dependem de cada sujeito em particular, de sua socialização, sua trajetória acadêmica e sua posição na estrutura de poder da universidade e/ou campo científico mais amplo. As regras aceitas tacitamente no campo se transformam em elemento intensificado dos confrontos entre interesses científicos e políticos.

A atribuição desigual de peso sobre as atividades acadêmicas parece incomodar muitos de nossos entrevistados, que questionam “por que uma publicação vale mais do que a docência?”, ao mesmo tempo em que reconhecem, entre seus colegas, a tendência a naturalizar esta realidade e a se surpreenderem quando se deparam com docentes que “só

111 estão dentro da universidade”, isto é, dedicam-se mais à docência do que às publicações, por exemplo.

As consequências do modelo de avaliação de desempenho são identificadas como “ajustamento das instituições ao modelo CAPES”, gerando, muitas vezes, uma “falsificação nos dados”, “produções de baixa qualidade que, do ponto de vista quantitativo, fazem número”, “artigos requentados”, “trabalhos maquiados”, uma “multiplicação dos papers”. Há, ainda, o predomínio do “tarefismo”, em que o professor da universidade pública se torna uma “máquina de pareceres”, colocando em risco o sentido do trabalho. A universidade é caracterizada pelos professores como “mercadorizada”, o “locus de aprendizagem de ser sozinho”, “balcão de atendimento”, “um dos poucos lugares em que você pode matar sem ser condenado e sem usar o revólver”.

O campo científico e as relações de trabalho, conflitos e relações de poder entre os docentes – nosso objeto de estudo – pode ser caracterizado por situações de desgaste que tendem a facilitar o adoecimento do professor. Retomamos a posição de que não é possível individualizar a questão da saúde no trabalho, defendendo a necessidade de considerar sempre o binômio agente-campo.

Neste sentido, o problema de pesquisa – de que maneira se configuram os aspectos inerentes à lógica das práticas do campo científico, como as relações de poder e as disputas por reconhecimento e prestígio – foi possível de ser respondido por meio do conceito de habitus: à medida que integram o campo científico, os professores internalizam a lógica das práticas que, aos poucos, transforma-se em disposições para ações e reflexões neste campo. Este processo acontece em meio a tensões entre subjetividade e sociabilidade ou, dito de outra forma, entre aspirações, desejos e regras estruturadas socialmente.

Consideramos que as distintas posições na hierarquia do campo científico podem intensificar confrontos entre os docentes, uma vez que os professores, da mesma forma que os agentes de outros campos sociais, ao defenderem ou rejeitarem ideias e/ou práticas sociais, o fazem a partir de posições específicas. Não é possível desconsiderar a influência destas posições quando analisamos o conteúdo de seus discursos. Estas posições, porém, não se referem tão somente a cargos, mas às relações de poder e influência dos pesquisadores em diferentes instâncias do campo, como grupos de pesquisa, departamentos, revistas científicas e agências de fomento.

112 De maneira geral, nossos resultados apontaram para a existência de contradições entre trabalho, sociabilidade e subjetividade, com destaque para as experiências de autorrealização e sofrimento no trabalho, em que os professores descrevem sentimentos contraditórios de prazer e angústia, sentindo-se como “em uma fila de devedores” ou mesmo entrando em “uma sinuca: tem que dar aula, tem que pesquisa, tem que produzir”, revelando o receio de perder o sentido do trabalho. Há, também, uma forte necessidade de reconhecimento, motivada, segundo os entrevistados, pela vaidade intelectual que, no nível das relações, torna- se uma verdadeira “fogueira das vaidades”, além do desgaste nas relações e o distanciamento entre os professores deste programa de pós-graduação que disseram, com frequência, não saberem o que acontecia em outros departamentos por permanecerem pouco tempo na universidade.

Como estratégias de manutenção da posição no campo, algumas expressões ilustraram de maneira interessante o que ocorre neste campo empírico: “tomar a carreira como fundamental”, “os caminhos são propositalmente individualizados”, o “esfacelamento do coletivo” e uma “fritada geral em quem pensa diferente”. Outra prática mencionada diz respeito à disputa por alunos de pós-graduação e ações de “tirar orientando do outro”,“ficar olhando a superprodução do outro” e “jogar orientando de um professor contra o outro”.

Com relação às peculiaridades do campo empírico, destacamos a cultura corporativista, o predomínio do princípio da distinção, uma forte estrutura departamental e a situação que se configurava como importante momento de debates sobre a revisão do regimento da pós-graduação. Quanto às práticas universitárias, consideramos serem de fundamental importância a pressão para que os novatos assumam as chefias de departamento (o chamado “batismo de fogo”), a avaliação institucional, com destaque às avaliações por pares e os “pareceres que expõem o colega”, a construção de carreiras isoladas desde a graduação “com os grupos de pesquisa, divisões e trocas de artigos”, a relação desigual entre aposentadorias e contratações, a prática de “esconder-se” em algumas atividades, evitando outras de menor prestígio e/ou mais responsabilidades, a baixa participação nas reuniões (o “esvaziamento do coletivo”) e a existência de grupos de pesquisa inativos, que resultam em falta de orientações aos alunos e conflitos entre orientadores e orientandos.

Quanto às relações de poder, ressaltamos que a distribuição desigual do espaço físico para os grupos de pesquisa neste programa de pós-graduação é um fator que decorre de aspectos políticos do programa, expressos como “jogo político desigual e desleal”, “abuso de

113 poder”, práticas de “legislar em causa própria” e uma “cultura de assimetria de carga docente”. Quanto aos aspectos políticos do campo científico em geral, destacamos as relações entre a universidade e os membros dos CTC´s, em que estes “dão as cartas e indicam às instituições como produzir”.

Existem contradições entre o reconhecimento de que “a CAPES somos nós” e o estranhamento sobre as diretrizes estabelecidas por esta instituição, indicando que o uso que se faz desta expressão deve ser confrontado com o conhecimento sobre as práticas sociais.

Quanto às diferenças geracionais, não nos parece que sejam estas as responsáveis pelos conflitos na universidade, ainda que possam existir em algum grau. As diferenças existem no que diz respeito ao ritmo de trabalho e de produção e às distintas fases de carreira nas quais se encontram os professores. Nesta instituição, foram muitos os relatos de docentes da antiga geração auxiliando os novatos no que diz respeito ao trabalho e às parcerias de pesquisa. Para os docentes da geração antiga, porém, é notório que as novas gerações, com algumas exceções, estão sendo formadas com uma concepção de pesquisa diferente da sua. Por outro lado, verificamos que alguns trabalhos e atividades de menor prestígio ou que não implicam em maior visibilidade no campo e nas FAP‟s, tendem a ser delegados aos novatos, de forma a conservar a posição privilegiada dos mais consagrados e criar entraves para a consolidação dos que têm trajetória inicial e/ou em desenvolvimento.

Neste sentido, a questão geracional pode ser melhor investigada em pesquisas futuras, considerando diferentes posições teóricas que acrescentem elementos culturais ou mesmo uma perspectiva de geração e de classes, desde que não sejam visões antagônicas. Esta pesquisa suscita, ainda, questões que podem se transformar em temas de investigação, ao se procurar analisar em que medida esta sociabilidade produtiva pode levar ao adoecimento do professor universitário.

Acreditamos que o presente estudo contribuiu para ampliar o conhecimento sobre trabalho docente na pós-graduação, destacando aspectos importantes do cotidiano do professor e as repercussões nas relações de trabalho. Ainda que este estudo de caso não possa ser tomado de maneira generalizada, ele indica elementos importantes para se pensar sobre as mudanças nas políticas públicas de avaliação de desempenho dos pesquisadores e dos programas de pós-graduação do país.

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