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3.1 Papel e sentido das disposições transitórias

3.1.1 Constituição anterior e Constituição nova

A Constituição nova, como obra do poder constituinte originário, cria autoctonamente uma nova ordem jurídica, dispondo, com total liberdade (diante da ordem jurídica anterior), sobre o conjunto do ordenamento jurídico. Instaura literalmente uma nova ordem, atendendo tão somente às inspirações da razão e às aspirações da origem sociológica do seu poder. O poder constituinte se legitima por si mesmo e edita uma nova ordem jurídica sem que, nisso, seja limitado pela normatividade anterior. Assim como estabelece, com essa imensa liberdade, a nova ordem jurídica, também estabelece a data de sua vigência. E no momento em que começa a vigorar a nova Constituição, a Constituição anterior simplesmente desaparece. Pontes de Miranda 20 fala, a propósito, do “princípio da imediata incidência das regras

jurídicas constitucionais” e esclarece:

“Quando se diz que as novas Constituições incidem imediatamente e há, aí,princípio

inegável, de modo nenhum se enuncia que as novas Constituições têm retroatividade e o princípio do respeito aos direitos adquiridos, à coisa julgada e aos atos jurídicos perfeitos não exista para as Constituições. O que acontece é que à própria Constituição ficou a possibilidade de afastar, explicita ou implicitamente, o princípio do respeito ao que surgira em virtude de incidência de lei anterior, inclusive de Constituição. Aí, a Constituição, que poderia protrair a sua incidência, como ocorre com a Constituição de 1967, explicitamente a retrotrai”.

No mesmo sentido, Raul Machado Horta 21 ensina que

20

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 1968.v. 6. p. 369.

21

HORTA, Raul Machado. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Revista da Faculdade de

“A incidência imediata da Constituição acarreta a substituição da ordem constitucional anterior, pela impossibilidade da coexistência no tempo e no espaço, na condição de fonte e matriz do mesmo ordenamento jurídico estatal, de duas Constituições, a antiga, que desapareceu, e a nova, que se torna o fundamento monístico de validez e da eficácia do ordenamento jurídico do Estado”.

No entanto, a Constituição nova não há de acarretar a supressão total do ordenamento jurídico anterior, salvo, como observa Machado Horta, “no caso limite de ruptura

revolucionária radical”. O mesmo mestre fala de “soluções de acomodação normativa, que afastam o colapso que adviria do vazio jurídico”.

Essas soluções de acomodação são essencialmente duas:

a) a recepção do direito anterior pela Constituição nova – “a vigência da legislação

anterior que não contrariar as disposições da nova Constituição” (ainda Raul Machado

Horta 22). “Se não há choque entre a norma inferior e a nova Constituição, esta recepciona

aquela”, no dizer de Ivo Dantas 23

. Era regra incluída explicitamente nas Constituições brasileiras de 1891 e 1934, a terceira Disposição verdadeiramente Geral, como já se viu.

É claro que não podem subsistir as normas do sistema jurídico anterior que entrem em choque com a nova Constituição. Não há que falar, aí,– ensina ainda Ivo Dantas 24 – em inconstitucionalidade, mas sim em revogação de toda legislação anterior que lhe seja contrária, conforme pacíficas posições tanto da doutrina quanto da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, segundo se verifica, por exemplo, do Acórdão proferido na ADIN nº 000074/92:“A incompatibilidade vertical, superveniente de atos do poder público,

em face de um novo ordenamento constitucional, traduz hipótese de pura e simples revogação dessas espécies jurídicas, posto que lhe são hierarquicamente inferiores”.

No mesmo sentido é a lição de Palhares Moreira Reis 25:

“O novo Direito, implantado pelo poder Constituinte, na verdade não quebra totalmente a Ordem Jurídica anterior, pois que muitas das instituições anteriormente existentes continuam válidas na ordem nova. E, por isso, todo o

22

HORTA, op. cit., p. 191-192.

23

DANTAS, op. cit., p. 143.

24

DANTAS, loc. cit.

25

REIS, Palhares Moreira. Sobre as normas constitucionais transitórias. Informativo Consulex, ano 8, n. 22, p. 544, maio 1994.

ordenamento a seu respeito prevalece, se recebido pelo Direito novo, que o convalida integralmente. Quando, ao contrário, as regras legais do Direito anterior se confrontam com o novo Direito Constitucional, não podem prevalecer. Sabido é que „uma lei contrária à Constituição posterior considera-se por esta revogada, e não inconstitucional‟”. (Grifos não do original)”.

O mesmo autor transcreve, inclusive, significativa decisão do Supremo Tribunal Federal em 1992, apreciando Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto-Lei nº 2.445, de 29.6.88, em que aquela Corte não conheceu da Ação, tanto diante da Constituição atual, a de 1988, sob cujo regime o STF estava decidindo, quanto diante da Constituição anterior, sob cujo regime o tal decreto-Lei fora editado:“não cabe a Ação Direta de

Inconstitucionalidade para discutir a validade diante da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, por se tratar de via adequada à defesa da ordem constitucional em vigor”.

Nem cabe diante da Constituição atual,

“por se tratar de lei anterior à Constituição em vigor. De acordo com orientação firmada pelo STF na ADIN nº 2, em 6.2.1992, a hipótese é de revogação da lei anterior, se contrária à nova Constituição, e não de inconstitucionalidade do mesmo diploma. Impossibilidade jurídica do pedido”. (Grifos não do original).

b) a edição de normas de transição para, no dizer de Raul Machado Horta 26, “regular

situações discrepantes das normas constitucionais permanentes”, ou, dizendo de outro modo,

para “regular a permanência de situações anteriores à vigência da Constituição nova” (ainda Machado Horta, p. 193). Palhares Moreira Reis 27leciona:“A passagem de um sistema jurídico

para outro requer normalmente o surgimento de normas de ajuste, disposições inerentes àquele momento histórico” “para que passagem possa ocorrer sem maiores dificuldades”.

São exatamente, no caso da Constituição, as chamadas “Disposições Transitórias”, cujo objetivo fundamental deve ser apontado como consistindo em promover a passagem de um regime constitucional para outro, promover a adaptação de um modelo para outro modelo, ou seja, precisamente, promover a transição de uma dada normatividade constitucional para uma nova, nos casos em que esta mesma não quis ser implantada total, abrupta e imediatamente.

26

HORTA, op. cit., p. 191-192.

27

Reconhecendo, em última análise, essas mesmas modalidades, mas adotando uma outra classificação, que resulta, na verdade, de uma outra perspectiva para considerar o mesmo problema, Palhares Moreira Reis 28 resumirá “as relações entre o Direito novo e o

Direito anterior” às seguintes três categorias:

“a) normas anteriores recebidas pelo novo Sistema Jurídico por estarem comelecompatíveis.

b) normas anteriores incompatíveis com a nova Ordem Constitucional estão revogadas, nãopodendo ser declaradas inconstitucionais, por ser o sistema de controle da constitucionalidade protetor da supremacia da Constituição vigente. c) dependentes de ajustes para adequação ao novo sistema, o que se dá pela viadas Disposições Constitucionais Transitórias”.

Dada essa sua característica, as Disposições Transitórias devem ser consideradas como

normas de aplicabilidade do texto constitucional. Foi o que fez José Afonso da Silva ao

distinguir os diferentes tipos de normas constitucionais. Dentre os 5 tipos de normas que identificou (e a que chamou de elementos orgânicos, elementos limitativos, elementos sócio-

ideológicos, elementos de estabilização constitucional e elementos formais de aplicabilidade), incluiu entre estas últimas as Disposições Transitórias:

“elementos formais de aplicabilidade são os que se acham consubstanciados nas normas queestatuem regras de aplicação das constituições, assim o preâmbulo,o dispositivo que contém ascláusulas de promulgação e as disposiçõesconstitucionais transitórias, assim também a do § 1º do art. 5º ” 29