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CAPÍTULO II – A DIMENSÃO SUBSTANCIALISTA DA CONSTITUIÇÃO

2.2. A Constituição como ordem jurídica fundamental nas sociedades pluralistas

Temos afirmado na esteira de Konrad Hesse que o que vem a ser uma constituição e qual o seu papel a ser desempenhado numa comunidade política só pode ser determinado tendo em vista uma constituição histórica concreta. O modelo político-constitucional vigente no paradigma neoconstitucionalista aponta para a impossibilidade de se compreender a constituição como mero estatuto organizativo do Estado e de seus órgãos.

Também esse modelo não permite o esgotamento do significado da constituição como instrumento regulatório de procedimentos de decisão e ação política206. Ao contrário, vem ratificar a necessidade de se buscar compreender a constituição e seus preceitos a partir de uma conexão com a “realidade política, econômica, social e cultural que lhe é subjacente e que é uma realidade não apenas de fatos, como ainda de opiniões, ideologias, de posturas políticas, cultura cívica [...]”207. O que somente pode ser feito através de uma teoria material da constituição. E desta se derivam duas concepções fundamentais.

203 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 145.

204 STRECK, Lenio Luiz. A concretização de direitos e a validade da tese da constituição dirigente em países de modernidade tardia. In: Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugal.Orgs. AVELÃS NUNES, António José e MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 320. 205 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 103.

206 SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 40.

A primeira é que a constituição reflete os condicionamentos de uma forma concreta de organização política com seu substrato de concepções sociais, culturais e axiológicas208, que tem por objetivo “unir a pluralidade de interesses, aspirações e modos de comportar-se existente na realidade da vida humana para a atuação e atividade uniforme”209. Dessa forma, é vista como elemento determinado e determinante da realidade histórica subjacente, é espelho, mas também luz210. Seu caráter transformador resultará da disposição dos partícipes da vida político-constitucional de orientar suas condutas em conformidade ao que ela ordena e da vontade em concretizá-la.211

A unidade política a que visa a constituição, não se confunde, porém, com uma unidade substancial, étnica, ideológica ou religiosa, tampouco surge com pressuposto abstrato da entidade estatal, é unidade de ação consentida e aprovada que torna possível a existência de decisões obrigatórias em determinados territórios 212.

Também não significa a produção de uma concordância geral e harmônica que se evidencia no texto constitucional, nem a eliminação de conflitos, divergências e diferenciações presentes no complexo tecido social. Estes são inevitáveis nas relações humanas e necessários para a adaptação e transformações sociais. É justamente em razão da presença inelutável da conflituosidade na interação social que surge a necessidade de superá-la ou atenuá-la através de ações coordenadas que possibilitem a vida e a convivência humana pacífica213.

A formação da unidade política, na concepção de Konrad Hesse, deve ser vista não como um dado natural, mas como um processo constante de mutação e integração das

208 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15.

209 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 29.

210 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 29.

211 Trata-se da “vontade de Constituição” que se assenta em três fatores: 1) na valorização da ordem constitucional como instrumento eficaz contra a instauração do arbítrio; 2) na compreensão de que a ordem estabelecida não é legitimada apenas por fatos, mas se encontra em constante processo de legitimação e 3) que a sua efetividade depende da atuação humana. Cf. HESSE, Konrad. A Força

Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991,

p. 15.

212 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 30.

213 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, p. 30.

relações humanas cooperativas214. A constituição encerra a um só tempo, o elemento estático, o de previsibilidade da repetição da conduta humana concorde seus preceitos e o elemento dinâmico, de abertura, atualização das mudanças operadas na realidade social.

A segunda concepção decorrente da teoria material da constituição é que esta também consiste numa “ordem jurídica fundamental da coletividade”215. Tal ordem encontra-se associada aos condicionamentos da realidade histórica subjacente, não se tratando de uma ordenação abstrata determinada transcendentalmente, muito menos fechada ou estática, no sentido de já concluída216. Ao contrário, assim como a unidade política que visa perpetuar, a ordem jurídica fundamental proposta em termos constitucionais também se apresenta como uma tarefa a ser perseguida, como um constante processo de manutenção e aperfeiçoamento, para o qual concorre de forma determinante a atuação humana concreta217.

Dessa segunda concepção resultam dois fatores: o primeiro é o reconhecimento de que a constituição é uma ordem aberta, inacabada. O segundo é que ela possui realmente uma força normativa, só que esta não é dada a priori, dependerá sempre da articulação e existência de alguns pressupostos como a sua legitimidade material, a sua capacidade de adaptação e captação das mudanças sociais por meio da “abertura constitucional”218, a previsão simétrica entre direitos e deveres, a sua realização prática por todos os partícipes da vida constitucional, baixo índice de revisão constitucional e interpretação constitucional submetida ao princípio da máxima efetividade da constituição219.

Destarte, o que uma concepção material da constituição encerra, sinteticamente, é 1) que esta enquanto ordem jurídica fundamental da coletividade contém os princípios e diretrizes fundamentais para a atuação política estatal e comunitária, ou seja, é dotada de uma legitimidade material; mas também, e ao mesmo tempo, assegura por meio da sua estrutura aberta 2) a adaptação desta ordem, preservados o cerne de seus princípios fundamentais, às transformações históricas a que a realidade social está sujeita220.

214 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 29. 215 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 37. 216 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 38. 217 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 36.

218 A abertura da constituição pode ser compreendida sob diversos aspectos que serão analisados mais adiante.

219 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris , 1991, p. 20 e ss.

E nisto também reside a dimensão substancial da constituição. Tal concepção nos termos até aqui desenvolvidos de forma alguma poderá confrontar-se ou incompatibilizar- se com o fato do pluralismo e da fragmentação de interesses, concepções e valores característicos das sociedades atuais.

A unidade política a que visa a constituição não pressupõe uma sociedade harmônica, substancialmente homogênea ou alheia a qualquer conflito, como foi ressaltado. Pressupõe notadamente o contrário, a ampla diversidade presente no tecido social. Por outro lado, esta necessita ser coordenada em nível sócio-político para garantir uma convivência pacífica, e uma tal coordenação em que se fixa os critérios básicos orientadores do agir político estatal e social é feita, desde o advento da modernidade, na forma de um diploma constitucional.

O que ele estabelece é sim, apesar da abertura que dele se exige, o que especificamente não pode ficar em aberto, ou seja, um núcleo duro, estável, de princípios diretivos e de procedimentos pelos quais se decidirá o que foi deixado em aberto, ambos protegidos contra os efeitos situacionais das lutas políticas cotidianas e sobre os quais não se pode mais discutir por elevarem-se a ditames e critérios materiais do Estado Democrático de Direito para a resolução dos conflitos sociais221.

Isso significa assumir de antemão alguns pressupostos para a própria preservação do princípio pluralista, tais como: a existência de princípios balizadores da competição pacífica entre os indivíduos e sua aceitação social, a autonomia das diversas organizações sociais, a existência de relativa igualdade material entre os indivíduos e a possibilidade de que as decisões políticas sejam tomadas de forma integrativa evitando divisões irredutíveis no tecido social222.

E essa é uma posição que encontra respaldo no diploma constitucional brasileiro que busca conjugar, nas palavras de Afonso da Silva:

[...] a concepção de uma sociedade pluralista com as de uma sociedade livre, justa, fraterna e solidária (art. 3º, I), pois, se o pluralismo é uma concepção liberal, o solidarismo de fundo socialista, aponta para uma realidade humanista de fundo igualitário, que supõe a superação dos conflitos, e, assim, fundamenta a integração social, que evita os

Almedina, 2003, p. 1338. 221 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 340.

222 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 148.

antagonismos irredutíveis que destroem o princípio pluralista. 223