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3. O I NTERNATO E A CONSTITUIÇÃO DA C ULTURA E SCOLAR COMO OBJETOS DE ESTUDO

3.2 Constituição da Cultura Escolar

A cultura escolar deve ser entendida como algo histórico, que ao longo do tempo produz e reproduz nos intramuros das instituições alguns marcos de regulação, os quais podem (ou não) condicionar as mudanças produzidas internamente nos estabelecimentos de ensino e adaptar ou adequar à sua realidade, os câmbios exteriores à escola. Como indica Julia: “A cultura escolar é efetivamente uma cultura conforme, e seria necessário definir, a cada período, os limites que traçam a fronteira do possível e do impossível” (Ibid., p.32).

E a partir da compreensão da constituição dessa cultura, contando com as contribuições de Bourdieu (1980) que, por meio do conceito de habitus, atribui uma

importância decisiva ao peso da estrutura social sobre a construção das identidades individuais, parte-se do princípio de que a posição das famílias e das escolas na hierarquia social está inscrita e traduzida em suas práticas e estratégias educativas.

Será com o conceito de habitus que Bourdieu explicará as ações dos indivíduos. Segundo esse autor, trata-se de reconhecer “a interioridade da exterioridade”, ou seja, os modos de incorporação do funcionamento da realidade social num processo de interiorização que obedece às especificidades do lugar e da posição de classe dos sujeitos, ou como definia o referido autor, dos “agentes”.

Trata-se de explicar como a interioridade se faz presente no exterior, o que quer dizer: interessa principalmente as relações entre a incorporação de padrões sociais de respostas ao mundo e a produção de novas respostas sob a forma de ações ou práticas sociais.

Um exemplo modelar desse processo de incorporação de padrões sociais, de acordo com Bourdieu, são os ritos de instituição ou de legitimação, como as formaturas, as colações de grau, assim como as circuncisões, os casamentos e as concessões de honrarias de toda a ordem, que objetivam “[...] fazer ver a alguém o que ele é e ao mesmo tempo lhe fazer ver que tem de se comportar em função de tal identidade” (1996, p.99).

No anseio de construir uma identidade institucional, comumentemente as escolas criam suas próprias tradições, como o culto ao patrono e a comemoração do aniversário de fundação/instalação do estabelecimento de ensino, a memória dos primeiros diretores, professores e ex-alunos que ganharam visibilidade pública, além da audiência obrigatória às missas nas escolas confessionais.

Na Figura 7, podemos visualizar as alunas do Curso Ginasial, ou como eram chamadas, as Ginasianas, na missa dominical, que era realizada semanalmente na Capela do Colégio São José, quando as alunas tinham frequência imprescindível, pois fazia parte da postura de uma boa moça a manifestação pública de sua religiosidade.

Neste aspecto da publicização dos atos de fé, cabe ressaltar a significativa contribuição do registro iconográfico, que também corroborava a boa propaganda institucional. De acordo com Martins (2002), a religiosidade popular se apossou rapidamente da fotografia no Brasil, uma vez que a fotografia veio aperfeiçoar a função inaptamente exercida dos ex-votos no imaginário religioso, pois:

O advento da fotografia como ícone e como ex-voto sugere uma mudança no imaginário religioso, reflete a redução da fé ao imaginário de um real supostamente sem ocultações, sem invisibilidades, sem demônios (MARTINS, 2002, p.231).

Chama a atenção na referida figura que todas utilizavam um véu branco rendado na cabeça, indicando pureza espiritual e física e, em grande maioria, apresentam as mãos postas em atitude de oração. Ou em outras palavras, uma atitude que não só era esperada, mas cultivada no cotidiano de uma escola de caráter confessional, onde a religiosidade era um dos fortes elementos formativos no processo educativo. As alunas deveriam se converter em ícones de moralidade para, como exemplos modelares, contribuírem à construção do Reino de Deus!

Figura 7 – Ginasianas participando da Missa na Capela do Collegio, dia 09/12/1956. Fonte: Acervo do Colégio São José.

Tal concepção educativa estava presente na disciplina, nos comportamentos esperados e impostos, entre os quais se inclui o modo de vestir-se, de comunicar-se, de relacionar-se em público de uma maneira geral. Assim, toda a organização da

escola se constituiu num modelo de civilidade, representado por tais práticas que definiam a cultura local e escolar.

Portanto, a história das instituições escolares não pode desconsiderar os ritos e os símbolos que fazem parte da cultura escolar, uma vez que os colégios foram construídos como um espaço pensado para disseminar todo um conjunto de saberes e de fazeres, apresentado como prática e representação que vislumbrava um futuro de progresso para a localidade e a instituição.

A eficácia simbólica desses ritos reside em transformar a representação que o investido faz de si mesmo a partir dos comportamentos que acredita estar obrigado a adotar para se ajustar a tal representação e, ao mesmo tempo, em transformar a “imagem” que os demais possuem dele, modificando o comportamento que adotam em sua relação.

Deste modo, os rituais comunicam à pessoa investida a sua identidade, o que é de sua “essência” fazer, impondo-lhe “[...] um direito de ser que é também um dever ser (ou um dever de ser), o que certamente imporá limites à sua ação, ao desencorajar as transgressões e/ou deserções” (BOURDIEU, Ibid., p.100).

O conceito de habitus o ajuda a escapar dos argumentos que privilegiam apenas a dimensão objetivista das imposições sociais ou as explicações que destinam o maior papel às ações dos sujeitos determinados a partir da sua habilidade interior.

Deste modo, o habitus constituído, por um conjunto de disposições para a ação, é a história incorporada, inscrita em nossa corporeidade, nos modos de falar, ou em tudo que somos ou que podemos representar. Reside nessa história incorporada o funcionamento do princípio gerador do que fazemos ou das respostas que damos à realidade e na realidade social.

No entanto, é importante chamar a atenção, que o processo de reprodução do capital cultural e do habitus (qualificado como o sentido do jogo) escolar ou familiar não ocorre linearmente. Lahire sugere que aquilo que o adulto julga transmitir nunca é exatamente aquilo que é recebido pelas crianças, posto que:

Falar de “transmissão” é, principalmente, conceber a ação unilateral de um destinador para um destinatário, ao passo que o destinatário sempre contribui para construir a “mensagem” que se considera ter-lhe sido “transmitida”. Ele tem de atribuir-lhe sentido na relação social que mantém com o que está ajudando a construir seus conhecimentos e com seus

próprios recursos, construídos no curso de experiências anteriores (1997, p.341).

Nesse sentido, há possibilidades de transformação do capital cultural no processo de outorgação de uma geração para outra, de um adulto pelo outro pelo efeito das diferenças entre os que, presume-se transmitem e aqueles que, supõem-se recebem, pois “[...] a noção de “transmissão” não explica muito bem o trabalho – de apropriação e de construção – efetuado pelo “aprendiz” ou pelo “herdeiro”. [...]” (LAHIRE, 1997, p.341).

Esta concepção de habitus é ratificada com o próprio cerne do desenvolvimento dos processos de escolarização em internatos confessionais no Brasil, pois no século XIX abriu-se e/ou acentuou-se um verdadeiro flanco ao desenvolvimento do ultramontanismo (SANTIROCCHI, 2010) em terras brasileiras. Sendo que: “É certo que, entre os primeiros ultramontanos deste período estavam os religiosos da Congregação das Missões, ou lazaristas, de carisma vicentino, que se estabeleceram na província de Minas Gerais no início do século XIX. [...]” (Ibid., p.25).