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3.3 Educação e cidadania na perspectiva constitucional

3.3.1 Constituição Federal de 1988

Em 05/10/1988 foi promulgada a Constituição Cidadã brasileira, em prol de resgatar a cidadania no Brasil. Para FERRAZ (2003, p. 130), isso seria possível através da libertação

do “entulho autoritário” remanescente no País dada pelo asseguramento de direitos e garantias

fundamentais e da garantia das instituições e dos princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito.

Estabelece, pois, a CF/1988 em seu artigo 1º, inciso II, que a cidadania consiste em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito. Assim também são eleitos como fundamentos a soberania (inciso I), a dignidade da pessoa humana (III); os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (IV) e o o pluralismo político (IV). Registre-se que, nos termos da Constituição, todo o poder emana do povo, que pode exercê-lo direta e indiretamente, através de representantes.

Entende-se, dessa forma, que a CF/1988 conferiu um contorno amplo à ideia de cidadania, alinhando-a essencialmente ao reconhecimento e defesa da dignidade humana e à concretização de direitos fundamentais, sendo inclusive a linha proposta também pela Declaração Universal de 194814 e pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena no ano de 199315.

Depreende-se desses normativos que a importância da cidadania reside na qualificação dos participantes da vida do Estado. Trata-se do reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal, sendo que o funcionamento do Estado submete-se à vontade popular (SILVA, 2004, p. 104).

Pela interpretação sistemática da CF/1988, observa-se que cidadania estaria conectada com os conceitos de soberania popular (art. 1º, parágrafo único), direitos políticos (art. 14) e dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e com os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial do regime democrático (SILVA, 2004). Somem-se a esses

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Segundo o art. 1º da Declaração Universal de 1948, todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

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De acordo com a Declaração firmada em Viena, os direitos humanos e as liberdades fundamentais são inerentes a todos os seres humanos, cabendo aos governos, como responsabilidade primeira, a sua proteção e promoção.

aspectos a previsão constitucional dos direitos de petição e de ação popular, os deveres decorrentes da condição de cidadão, a proteção ao meio ambiente, o respeito aos idosos e às crianças, entre muitos outros. Assim, no âmbito da Constituição, cidadania abrange não somente aspectos da participação política, apesar de em alguns dispositivos haver a associação entre cidadania e nacionalidade.

Isso ocorre, por exemplo, no art. 22, XIII, da CF/1988, ao dispor que compete privativamente à União legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização. Além disso, no art. 62, § 1º, quando se veda a edição de medidas provisórias sobre nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral e no art. 68, § 1º, ao dispor que não serão objeto de delegação a legislação sobre nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais (inciso II). Nesses casos específicos, entende-se que a intenção do constituinte foi abordar a cidadania numa vertente mais política.

No entanto, acredita-se que, em geral, constitucionalmente, cidadania é empregada num sentido amplo, revestido, inclusive, de um conteúdo ético. Entende-se então que, quando a CF/1988 elege a cidadania como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito no art. 1º, inciso II, transcende-se o aspecto de uma cidadania meramente liberal, cujo foco é o sujeito como titular de direitos políticos. Logo, cidadania vai além dos direitos políticos, tendo amplo conteúdo valorativo e operativo.

Para Silva (2004) estaria sendo construída uma nova dimensão da cidadania a partir do sistema de previsão de direitos sociais pela Constituição dirigente. Nesse aspecto, a ideia de cidadania estaria sendo desenvolvida sob o influxo do progressivo enriquecimento dos direitos fundamentais do homem. Entende-se que essa progressividade dá-se justamente porque trata-se de um processo, algo que paulatinamente vai sendo consolidado. Para isso depende-se, inclusive, de recursos financeiros limitados.

A preocupação do constituinte em assegurar a cidadania é revelada no decorrer da Lei Maior, seja direta ou indiretamente. No art. 5º, inciso LXXI, por exemplo, é prevista a concessão de mandado de injunção quando a falta de norma regulamentadora inviabilize o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. No inciso LXXVII do mesmo artigo, determina-se a gratuidade das ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.

A busca pelo cidadão pleno manifesta-se no anseio constitucional de tê-lo como partícipe da vida do Estado e das relações sociais. Pela interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais, observa-se no art. 198 que a participação da comunidade é uma das diretrizes que norteiam a organização do Sistema Único de Saúde, por exemplo.

A participação da população mais uma vez é eleita como diretriz pela CF/1988 ao firmar que as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com observância a essa participação na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (art. 204, inciso II).

Observa-se também o incentivo à participação quando da organização do Sistema Nacional de Cultura, que deverá ser organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa (Art. 216-A). Nesse contexto, as políticas públicas de cultura deverão ser democráticas, promovidas conjuntamente com o Estado e a sociedade. Da mesma forma, preza-se, nesse contexto, pela democratização dos processos decisórios com participação e controle social (art. 216-A, inciso X).

Em relação ao amparo às pessoas idosas, conclama-se a família, a sociedade e o Estado a assegurar a participação do idoso na comunidade (art. 230). No que se refere à Administração Pública, em todas as suas esferas, conforme estabelece o § 3º do art. 37, da CF/1988:

§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:

I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;

II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;

III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.

Com isso, o que se observa é que a compreensão de cidadão na abordagem constitucional implica realmente na figura de um indivíduo pleno, comprometido não somente com as questões políticas do Estado, mas com os serviços públicos, as finanças públicas, o cuidado com os idosos e com as crianças, com o trânsito, com os menos favorecidos etc. Nesse contexto, sua participação parece vital para o bom funcionamento do sistema democrático.

Mas qual seria a relação da cidadania com a educação? Pois bem, partindo do pressuposto de que cidadania, no contexto democrático, envolve muito mais do que a titularidade de direitos políticos, mas também sociais e coletivos, de maneira que ser cidadão implica em ser membro da comunidade de maneira integral, compreende-se que a educação é um dos principais mecanismos para integração desses direitos, inclusive como um pré- requisito histórico para a expansão de outros direitos (CARVALHO, 2014, p. 17).

No contexto da CF/1988, a educação destaca-se como um direito social (art. 6º), sendo competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proporcionar os devidos meios de acesso a esse direito (art. 23, V). Trata-se de um direito de todos, possuindo, portanto, um caráter eminentemente universalista.

Nesse sentido, Lamas (2012, p. 254) entende que esse princípio da universalidade de acesso significa dizer que não deve haver discriminação no processo educacional de acordo com gêneros, origem de nascimento, orientação sexual, localidade regional, religião, cor, ou, ainda desigualdade sócio econômica. Assim, educação para todos inclui os portadores de deficiência, os infratores, os índios, os idosos, os estrangeiros, entre outros. Ademais, seria inconstitucional qualquer dispositivo legal que viesse a impedir o acesso à escola16.

Conforme disposto no caput do art. 205, a educação é também um dever do Estado e da família. A promoção e incentivo da educação são realizados com a colaboração da sociedade, tendo como objetivos o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Contudo, o que isso significa? O pleno desenvolvimento da pessoa significa que é na pessoa humana que reside a centralidade da educação, cabendo ao Estado o seu reconhecimento como medida de concretização de um direito humano fundamental.

Lamas (2012, p. 295) interpreta que esses objetivos firmados no plano constitucional indicariam que o processo educacional prima pelos valores humanos culturais, políticos e profissionais. Assim, a prática educativa deveria levar o ser humano a se habituar a condutas de uma boa moral, por meio do desenvolvimento cognitivo, emocional e espiritual. Envolveria, portanto, uma dimensão ética, para realização de uma vida feliz, assim como teria observado Aristóteles em sua obra Ética a Nicômano, no qual teria argumentado o autor que o

16 Nesse sentido, a autora cita como exemplo a restrição realizada pela Lei 6.850, o Estatuto do Estrangeiro, de 19/08/1980 ao considerar o imigrante um problema de segurança nacional, podendo-se essa condição se estender a todo o grupo familiar, nos termos do art. 26, §2º. Com isso, estrangeiros em geral, inclusive crianças e adolescentes, só poderiam se matricular devidamente em escolas brasileiras com suas situações devidamente regularizadas, o que mitigaria a realização do direito à educação (LAMAS, 2012, p. 253).

pleno desenvolvimento humano só se completaria pela busca pela felicidade a partir do equilíbrio e da prudência.

Além disso, a concepção do pleno desenvolvimento humano teria uma função transformadora capaz de viabilizar a concretização da potencialidade do saber em ato de conhecimento. Nesse processo, a pessoa humana estaria forçada a buscar não somente a sua felicidade, mas também a do outro. Assim, suas decisões e escolhas seriam tomadas a partir do crivo de responsabilidade prática para consigo e para o outro (LAMAS, 2012, p. 295).

O preparo para o exercício da cidadania implicaria em preparar e habituar o sujeito para a prática da vivência em uma República Constitucional e Democrática, na medida em que contribui na conscientização de que parte da vontade individual no meio social se transforma em vontade geral, em soberania popular (LAMAS, 2012, p. 296-297). Ainda segundo a autora, preparar para a cidadania envolveria a obrigação moral da família e o dever jurídico do Estado de oferecer um ensino que desenvolvesse também uma cultura política em seus cidadãos.

A qualificação para o trabalho significaria preparar o homem para lidar com produção, circulação e distribuição de riquezas. Seria, através do ensino, tornar o homem útil para si e para a sociedade, de modo a contribuir para geração e distribuição de receitas em prol de erradicar a pobreza e a marginalidade (LAMAS, 2012, p. 305).

Dispõe a CF/1988, no art. 208, que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência; IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do aluno; VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, através de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Com isso, observa-se que o Estado volta-se a conferir condições para que o direito à educação, consubstanciado no ensino, nesse caso, possa abranger a todos.

Estabelece ainda a Constituição Cidadã que o ensino é baseado nos princípios da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; de liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; do pluralismo de ideias e de

concepções pedagógicas, e de coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; da valorização dos profissionais da educação escolar; da gestão democrática do ensino público; da garantia de padrão de qualidade e do piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública (art. 206).

A partir disso, Horta (2007) teria identificado três classes de princípios relativos ao sistema educativo, estabelecidos a partir de uma gradação de especialidade princípios gerais (princípios do dever estatal, da participação sócio-familiar e da máxima finalidade ética do ato educacional), princípios especiais e princípios conexos. Contudo, a sólida base principiológica seria, na verdade, independentemente da classificação adotada, um desdobramento dos valores republicanos fundamentais, na tríade pessoa-cidadania-trabalho (CAMPOS, 2010, p. 2774). Nesse sentido, a autora esclarece que as possíveis interpretações do art. 205 da CF/1988 seriam reduzidas pelas diretrizes estabelecidas no art. 206. Afirma ainda que

“[...]inegavelmente, o sentido constitucional do ato de educar se mostra como uma prática

voltada à formação do ser livre, capaz de participar de sua comunidade”.

Nesse contexto, Campos (2010, p. 2775) sintetiza então os princípios específicos relativos à educação em quatro pilares valorativos básicos: igualdade, pluralismo político, valorização do trabalho docente e democratização da gestão escolar. Seria, pois, a partir dos quatro vetores axiológicos elencados que se tornaria possível organizar os princípios do sistema nacional de ensino em prol de garantir materialmente a prestação da prática pedagógica.

Cabe destacar que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, de tal forma que o não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

Em suma, observa-se que a relação estabelecida constitucionalmente entre educação e cidadania é ampla, de maneira que busca englobar todos os aspectos da vida social do indivíduo. Por tal razão, compreende-se que no plano normativo o que se almeja com a educação é, de fato, a formação de um cidadão pleno. Sua atuação se reflete na soberania popular, no exercício de direitos políticos, na realização de sua dignidade como pessoa humana e dos demais, no convívio social, na participação e no fortalecimento da democracia.