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CAPÍTULO 3 – OS MANUAIS DE GINÁSTICA FEMININA E RÍTMICA E SUAS

3.2 As influências científicas nos manuais de Ginástica Feminina e Rítmica

3.2.2 Construção da argumentação

Localizamos alguns elementos argumentativos que acreditamos estarem vinculados a aspectos da lógica da ciência praticada na época. O primeiro deles também é compartilhado por Gleyse e Soares (2012) ao perceberem na análise de suas fontes uma “mudança das estratégias de aprendizagem” (p. 813). O direcionamento das frases passa da primeira pessoa do plural à primeira pessoa do singular. Há um processo de individuação do discurso.

O tema da limpeza permite observar como o sistema de controle presente nos manuais sofre mudanças em termos pedagógicos e didáticos [...], tornando-se uma apropriação individual e não mais um controle moral externo. Essa interiorização e individualização não significam, todavia, que o indivíduo seja mais livre aos olhos das injunções higiênicas e morais, significa simplesmente que as pessoas se apropriaram desses discursos ou, ao menos, os autores que os escrevem supõem que essa apropriação tenha ocorrido. Vemos aqui, aliás, os progressos da didática e da pedagogia como sistemas de controle, uma vez que o aluno é implicado, pelo viés do prazer suscitado, no próprio sistema de controle. As grades da prisão não estão mais no exterior, elas foram internalizadas pela criança, pelo aluno, pelo adulto (GLEYSE; SOARES, 2012, p. 814).

Em nossos manuais analisados, há um processo semelhante, mas com uma nuance. Mormente nas partes introdutórias e teóricas, o discurso nos manuais de Ginástica Feminina e Rítmica também é individuado, mas a unidade do alvo do discurso ou a quem o discurso se refere não é a um leitor (ou leitora), mas à mulher. O essencialismo presente nos manuais é elaborado e direcionado (mas também é produto) a uma unidade feminina das potenciais leitoras. Um discurso de mulher, sobre mulher e para mulher, tudo no singular. Acreditamos que isso se manifesta de diversas formas e nos mais diferentes tipos de materiais escritos que tematizam o “universo feminino”38. Como na menção acima a Gleyse e Soares (2012),

acreditamos que “apropriação individual” e “controle moral externo” possam conviver, e a unidade mulher em nossos manuais analisados é uma forma de manifestação dessa convivência.

O tipo de argumentação construída pelas autoras pode indicar proximidades maiores ou menores com uma considerada escrita de lógica científica. Nos moldes atuais, a construção de uma pesquisa científica exige que fundamentos empíricos e de outras referências sejam mobilizados para encontrar, construir e potencialmente resolver um problema circunscrito na realidade, seja ela de qualquer ordem e contexto. Contudo, mesmo não sendo declaradamente obras científicas, os manuais de alguma forma contêm movimentos intencionais de suas autoras para ampararem aquilo que querem propor. Neles, o argumento é o preponderante para a fundamentação. A retórica dá força ao argumento, e esse é a forma da verdade. Esse é outro aspecto do perfil da vontade de verdade que mencionamos. Entendemos os essencialismos presentes nos manuais não só como uma ideia que faz parte das concepções presentes nessas obras, mas também como uma ideia formatada por meio desse tipo de argumentação.

Em Guérios (1956a; 1956b), o argumento em direção à afirmação de um aspecto julgado importante para a autora é o que prepondera no discurso. Já em Accioly (1932), a cientificidade é mais declarada, seguindo uma ordem de apresentação: uma fundamentação geral, uma fundamentação específica com indicação dos exercícios e os exercícios sistemáticos em si. Diferentemente dos manuais de Guérios, a argumentação apresenta mais fundamentos, mas atua também criticando pejorativamente o passado, apoiando-se em certos autores, e depois com argumentos fortes e essenciais. Esse tipo de argumentação, com mais

38 Por exemplo, nas pesquisas mencionadas de Del Priore (2000), Gellacic (2012), Pegoraro (2011), Sant'anna (2005; 2014) e Silva, Almeida e Gomes (2013).

elementos discursivos, é outro caminho de prova e afirmação possíveis daquilo que se quer afirmar.

Nesse mesmo sentido, em Accioly (1932) percebemos dois movimentos próximos e que se relacionam com a presença de essencialismos. Num primeiro momento, a autora critica perspectivas anteriores sobre os valores e modos de condução da ginástica, buscando constituir novas bases para o trabalho corporal feminino. Grosso modo, seria como um processo de argumentação para “derrubar” um paradigma anterior, que não sabemos, documentalmente, se era tão expressivo nos âmbitos de implementação da Ginástica Feminina e Rítmica. De qualquer maneira, não é uma crítica “neutra”, buscando apontar objetivamente problemas nas práticas anteriores e propor soluções; mas, fazendo um movimento de argumentação recrutando elementos contextuais (condição da mulher na sociedade da época) e apontando pejorativamente aspectos daquelas práticas, ela busca superar e propor uma nova ginástica, mais adequada. Assim, digamos, há vários essencialismos em jogo: os valores das práticas a serem superadas, os novos valores e diretrizes dessa nova ginástica e alguns elementos essenciais de base, sobre a mulher e sobre aspectos da fisiologia humana. Acreditamos que esses últimos tenham sido mobilizados pela autora valendo-se de algum tipo de informação médica e, portanto, científica. Porém, todo processo de alguma maneira mostra uma forma de construção lógico-argumentativa que segue preceitos de um convencimento de base científica.

É possível ver no manual de Meyer (1944) semelhanças com esses caminhos argumentativos, ao mencionar, por exemplo, um breve histórico do movimento ginástico e valer-se de algumas citações de argumentos de autores específicos. Como já mencionado, duas vias de argumentação aparecem de forma diferente em relação às outras autoras: a tentativa de fundamentação por valores artístico-expressivos e certo foco na conduta pedagógica para o ensino da modalidade e prática. No entanto, mesmo com esses conteúdos ou aspectos diferentes, a argumentação para a fundamentação é próxima, buscando afirmar uma nova prática para mulheres, assim como busca dar contornos, de forma mais ou menos sistemática, a esses mesmos conteúdos.

Pudemos perceber também que a construção da argumentação, categoria não desvinculada das outras, permite localizarmos em que nível de foco a mulher é definida. Localizamos que a noção de feminino está muito atrelada aos essencialismos presentes nas obras. Contudo, a noção de mulher parece-nos variável. Num primeiro momento, pensaram numa prática para cada uma desenvolver-se plenamente. Em seguida, a prática em grupos em Guérios, mesmo com o mesmo princípio de direção a cada mulher, avança numa

uniformização, numa prática para mulheres (dentro da categoria mulher); ao mesmo tempo que é uma prática para cada uma, é algo realizado por todas juntas. O coletivo de mulheres constitui o que é o feminino. Já Accioly escreveu para cada mulher, para cada uma realizar e desenvolver-se através das atividades propostas. No entanto, há uma uniformização semelhante. Em alguns momentos, a autora absolutiza características das mulheres devido ao seu percurso de hábitos em sociedade; em outros, ela não absolutiza que todas as mulheres não apresentarão certas características corporais. Porém, a fundamentação científica utilizada uniformiza as mulheres num grupo com características anatomofisiológicas específicas e com certos hábitos socioculturais recorrentes.