• Nenhum resultado encontrado

A construção com ter existencial

No documento M ESTRADO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E CULTURAIS (páginas 169-176)

3. A NÁLISE DOS DADOS

3.3 Perceção de construções sintáticas não-padrão

3.3.2 A construção com ter existencial

169

Para esta pergunta, apresentámos aos inquiridos, para além da opção/variante padrão em PE, duas opções/variantes não padrão. Contudo apenas uma foi selecionada para a análise:

Q.C.5.A. – “Tem muito trânsito nas ruas”

Interessa-nos saber se os inquiridos madeirenses aceitam a construção existen- cial com o verbo ter, embora a variante padrão seja com o verbo haver, como em “há muito trânsito nas ruas”.

o Resultados gerais

Globalmente, a opção Q.C.5.A. – “Tem muito trânsito nas ruas” registou uma percentagem de 33% de aceitabilidade, ou seja, cerca de um terço dos inquiridos madei- renses não rejeita esta variante não padrão. Estes valores poderão ser superiores ou infe- riores consoante o condicionamento de fatores sociais, como iremos observar nos pon- tos seguintes.

o Fator idade

No Gráfico 54, verifica-se que a perceção avaliativa da resposta “tem muito trânsito nas ruas”, oscila entre o polo positivo e negativo por parte dos inquiridos, em todas as faixas etárias. Assim, os valores para a aceitabilidade desta variante são, por ordem decrescente: 38% (18-35 anos), 36 % (56-65 anos) e 24% (36-55 anos). Parale- lamente, os valores de inaceitabilidade, traduzem-se em 50% (56-65 anos), 48% (36-55 anos) e 43% (18-35 anos).

170

Gráfico 54: Q.C.5. “No Funchal pelas 18 horas… “ e Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” e fator idade.

Ainda que a prevaleça a preferência pela avaliação negativa, é de notar, tal como já referido para os resultados gerais, a percentagem considerável dos inquiridos para quem esta variante é aceitável. Segundo Carrilho e Pereira (2011), com base nos dados dialetais obtidos nos anos 70 e 80, junto de informantes analfabetos ou pouco escolari- zados (cf. CordialSin), o uso desta variante parece estar confinada aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, como mostram os seguintes exemplos, em (11), atestados no arquipélago da Madeira, em vários pontos de inquérito, e fornecidos pelas autoras:

(11) a. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora”; (CORDIAL SIN CLH03)

b. “porque aqui à nossa frente, tinha um alto tinha um moinho de vento.” (CORDIAL SIN PST16)

Esta construção parece remontar ao português mais arcaico do século XVI, de que se dá um exemplo, citado em Bazenga (2012):

(12) “Antre esta coroa e esta ilha tem canal pera poder sahir.”

Bazenga (2012) considera tratar-se de uma variante “histórica”, que resistiu à mudança operada na variedade padrão do PE, conservando-se no espaço insular mas também no Brasil. A autora, citando Callou e Moraes Leite (2003), refere que “O uso de

ter por haver tem sido objeto de estudo sistemático e costuma-se dizer que essa substi-

171

guês do rasil.”. Este uso marcado especialmente no português brasileiro prevaleceu durante séculos, o que parece ter acontecido também no arquipélago da Madeira.

Os dados obtidos por Bazenga (2012), confirmam o uso desta variante no Fun- chal, meio urbano e capital insular, quarenta anos depois das recolhas realizadas pelos investigadores do CLUL no âmbito de projetos de geografia linguística e que iriam dar origem ao CORDIALSIN. Em (13), apresentamos algumas ocorrências desse uso, reti- radas do trabalho desta pela autora:

(13) a. “porque no continente tem [padrão: há] as discotecas onde vai toda a gente e tem [padrão: há] as discotecas que são escondidas só vai quem quiser.” (FNC11_HA2)

b. “no meu trabalho onde eu trabalho onde eu trabalho tem [padrão: há] muita gente de idade e há velhotes que têm pensões.” (FNC11_MB2)

c. “eu vi que no marítime [marítimo] tinha [padrão: havia] melhor ambiente e melhores condições.” (FNC11-MA 2.1.) d. “comecei eh no porto da cruz num lugar onde não tinha [padrão: havia] estrada.” (FNC-MC3)

e. “lá em baixo onde tem [padrão: há] um italiano espetacu- lar” (FNC11-HA1)

O seu uso está atestado em todos as categorias sociais: em informantes jovens (cf. exemplos (13a., c. e e.), ou mais velhos, em (13d.), com poucos estudos, em (13e.) ou com curso superior, em (13d.), do sexo feminino, por exemplo, em (13c.) e masculi- no, por exemplo, em (13a.)

No nosso estudo percetivo, no entanto, são os mais jovens quem manifesta uma maior aceitação desta forma (38%).

o Fator género

Relativamente aos julgamentos de aceitabilidade da variante por género (Gráfico 55), os inquiridos do sexo masculino, com 49%, e os do sexo feminino, com 44%, opta- ram por avaliá-la como sendo não aceitável ou incorreta.

172

Gráfico 55: Q.C.5. “No Funchal pelas 18 horas… “ e Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” e fator género.

Ainda assim, focando a análise nos inquiridos que a aceitam como sendo correta, verificámos existirem percentagens consideráveis, com 38% (mulheres) e 27% (homens).

Esta variante conservadora ou histórica, como já assinalado anteriormente, que perdurou na oralidade dos madeirenses, poderá explicar a adesão do sexo feminino, uma vez que as mulheres privilegiam formas não-padrão mais que os homens, quando estas não poem em risco a sua identificação social, ou, ainda, como parece ser o caso, são marcadas por algum prestígio, aquela que advém da sua historicidade,

o Fator nível de escolaridade

O Gráfico 56, a seguir, procura analisar a aceitação dos falantes, atendendo ao seu nível de escolaridade.

173

Gráfico 56: Q.C.5. “No Funchal pelas 18 horas… “ e Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” e fator nível de escolaridade.

Verifica-se, tendo em conta o fator nível de escolaridade, variação nos valores percentuais de aceitabilidade da variante em questão, com os informantes do ensino básico e secundário a registarem 36% e os do ensino superior 26%. Seria de esperar uma maior rejeição pelos informantes mais instruídos, com formação superior.

o Fator localidade.

Pretende-se observar, através do fator localização dos inquiridos, se o facto de viverem em zonas com maior contacto externo, na orla marítima, através dos portos, ou na proximidade do aeroporto da Madeira, tem alguma influência na perceção da varian- te (Gráfico 57).

174

Gráfico 57: Q.C.5. “No Funchal pelas 18 horas… “ e Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” e fator localidade.

No gráfico acima, podemos observar que três concelhos apresentam percenta- gens consideráveis para a aceitação da variante com ter existencial: o do Funchal, com 61%, seguido do de Machico e de Santa Cruz, com 44%. Apesar de Machico e Santa Cruz terem a mesma percentagem positiva, é em Santa Cruz onde se regista uma maior percentagem de não aceitabilidade (44%), igualando, em números percentuais os de avaliação positiva, o que mostra que os falantes de Santa Cruz se encontram divididos.

São, aliás, os informantes dos concelhos situados a Este da Madeira quem mais privilegia como aceitável esta variante, aspeto coincidente com o facto de ser nesta região onde estão localizados os concelhos mais urbanos e mais desenvolvidos do ponto de vista social e económico. Como já referido anteriormente, o concelho de Santa Cruz é aquele que apresenta maiores índices de educação. A hesitação quanto à aceitabilidade desta variante por parte dos inquiridos deste concelho poderá ter origem no facto de, apesar da consciência linguística do PE padrão que a escolaridade proporciona, os falan- tes mesmo reconhecendo não se tratar de uma variante padrão, ainda assim aceitam-na na sua variedade falada.

Relativamente aos outros concelhos, observamos que Santana e São Vicente são quem mais condena esta opção, com 78% e 72%, respetivamente. Estes resultados vêm confirmar, uma vez mais, a dualidade já referida, entre o Norte e o Sueste da ilha, para além do também mencionado contraste Sudoeste / Sudeste, diferenças que advogam a

175

favor da variação linguística interna observada na Ilha, nos usos, mas também do ponto de vista da perceção e atitudes relativamente a esses usos.

No documento M ESTRADO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E CULTURAIS (páginas 169-176)