• Nenhum resultado encontrado

PROJETO & MÉTODO DE TRADUÇÃO

3.1 A CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE TRADUÇÃO

A perspectiva descritiva de normas, assumida por Toury (1995), Anderman (2001) e Hermans (2002), é trazida nesse momento para o campo da retextualização de um texto multimodal (vide seção 2.2), partindo de duas considerações importantes: as normas se relacionam aqui com o pólo de chegada – no nosso caso, o contexto brasileiro, e com os dois meios de veiculação deste tipo de produção textual: espetáculos teatrais e publicações editoriais na língua-alvo; vinculados a dois sistemas: literário54

e teatral.

Cada um destes sistemas, segundo Aaltonen (2000), tem seus próprios parâmetros para a criação, circulação e recepção de seus textos. A autora se apóia nas palavras de André Lefevere (1992, apud AALTONEN, 2000), que colabora com a afirmação de que o sistema literário se auto regula, exercendo um controle sobre as suas produções, ao selecionar algumas obras/autores em detrimento de outros(as) por meio de mecanismos externos – representados por leitores, críticos, editores, professores, tradutores etc. – que podem estar agregados a algumas instituições, dentre as quais se encontra a mídia. Aaltonen (2000) sugere uma complementação ao pensamento de Lefevere quando se reporta especificamente à tradução do Drama: “although Lefevere’s interest lies mainly in the literary system, his model applies to the theatrical system too”55 (Ibid., p. 31).

54 “the literary system is an artificial system which consists of objects (texts) and human agents

who read and (re)write them”. / “o sistema literário é um sistema factício composto por objetos (textos), e por agentes humanos que os lêem e os (re)escrevem”(LEFEVERE, 1992, apud AALTONEN, 2000, p. 30).

55 “Embora o interesse de Lefevere recaia principalmente sobre o sistema literário, seu modelo

Admito, portanto, que no caso da tradução de um texto dramático, a verificação das normas ultrapassa questões puramente lingüísticas, pois o texto teatral envolve, além delas, uma necessidade de identificação imediata entre texto e público-alvo (leitor ou espectador), que, por sua vez, depende da compreensão de outros ‘códigos culturais’. Bassnett-McGuire (1985), partindo do mesmo princípio, sugere um primeiro tipo de procedimento: “Acting conventions and audiences expectations are components in the making of performance that are as significant as conventions of the written text”56 (Ibid., p. 92, grifos meus). Assim, passamos a realizar um estudo parcial

sobre as normas vigentes no sistema teatral brasileiro, utilizando a repercussão da crítica a duas produções brasileiras de peças de Bernard Shaw, (em cartaz no mesmo período, entre junho e julho de 2008), colhida em websites de jornais e de divulgação da cena teatral de São Paulo, local onde os espetáculos foram encenados. Cada uma dessas montagens, uma delas já mencionada no capítulo anterior, aderiu a propostas cênicas diferentes.

Cândida (2008) figura no site Aplauso Brasil sob o anúncio de “produção impecável”57, por seguir um estilo de montagem clássica. O diretor e tradutor da

peça, Zé Henrique de Paula, decidiu por manter em cena a ação original do enredo, que se passa em Londres, na era vitoriana. As críticas lidas para esse trabalho são unânimes, principalmente, quanto à avaliação do figurino e cenário, uma delas os considera “muito ricos e [que] caracterizam muito os lares londrinos de 1900”58, compondo “uma belíssima adaptação”59, que “não duela

56 “As convenções de encenação e as expectativas do público são componentes tão significativos na

performance quanto as convenções do texto escrito”

57 http://igbandalarga.ig.com.br/materias/486001-486500/486219/486219_1.html

58 http://n-ideias.blogspot.com/2008/06/temporada-de-temporada-de-bernard-shaw.html

com a peça e segue à risca as rubricas”60; ou seja, a produção preocupou-se em reproduzir no palco toda a riqueza de descrição que o texto fonte apresenta.

Em contrapartida, a montagem de Domingos Nunez para The Simpleton of the Unexpected Isles (Idiota no país dos absurdos) recebeu poucas avaliações explícitas nos sites que trataram da peça. Uma delas aponta que o texto “não parece ser de autoria de Shaw”61, se comparado com outros mais populares,

como Cândida, Santa Joana e Pygmalion. Porém, abriu-se bastante espaço para que o próprio diretor e tradutor respondesse pelo seu trabalho. Apesar de a montagem moderna do texto ter se beneficiado pelo fato de The Simpleton... compor a fase mais experimental da obra de Shaw, os ‘ajustes’ feitos por Nunez no texto falado e na montagem receberam o seguinte veredicto de Lucas Nevez, que pôs em discussão a qualidade da comunicação do texto no palco: “Apesar da atualidade temática, a narrativa estrambólica de Shaw por vezes soa impenetrável”62.

Ao se fazer uma comparação entre as duas tendências de avaliação, percebe-se que avaliações positivas recaem principalmente sobre o estilo de montagem clássica, “sem invenções mirabolantes ou misturas de sambas e palavrões, como fez Cacá Rosset em A megera domada de Shakespeare”63, como

afirma um dos espectadores/críticos de Cândida, ao reverenciar a qualidade do espetáculo. Esta amostra sinaliza que uma das normas vigentes para traduções teatrais de autores estrangeiros consagrados no Brasil é: traduzir e encenar o mais próximo possível do texto fonte, sem muitas alterações.

60 http://www.bocaboca.com.br/novo/paginas/dicasteatro.asp 61 http://www.folhadaregiao.com.br/noticia?92679&PHPSESSID=2f1ef7915731d8f 62 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u409080.shtml 63 http://n-ideias.blogspot.com/2008/06/temporada-de-temporada-de-bernard-shaw.html

Nunez, por sua vez, defende a sua proposta, que surgiu de um “estudo aprofundado sobre a obra do autor”64, sugerindo que “a chave para montar

qualquer peça de Shaw é não encará-lo como teatro realista. O que ele pretendia era justamente renovar a estética do teatro inglês, acabar com o melodrama”65. Pelas palavras do diretor-tradutor, entendo que uma tradução e

representação próxima ao realismo/naturalismo da época de Shaw soa para ele tão convencional hoje quanto era o drama que se fazia no século XIX, antes da existência destes movimentos. Nunez captou como o grande legado do dramaturgo a defesa por uma renovação teatral constante, e por isso, se sentiu autorizado a romper com as normas teatrais de hoje, assim como Shaw o fez no passado, e acrescenta:

Não sou contrário, nem tenho qualquer oposição aos encenadores que preferem respeitar o texto de forma absoluta, embora não veja isso acontecer no cenário teatral paulista, via de regra. Sempre se toma algum tipo de liberdade, em maior ou menor grau. No meu caso em relação ao Simpleton... essa liberdade foi absoluta.66

Naturalmente que uma análise técnica aprofundada de questões de dramaturgia ultrapassa o escopo desse trabalho. A crítica teatral e os comentários de Nunez, que exponho aqui, me servem apenas como uma sinalização de como, na atualidade, as montagens de textos traduzidos de dramaturgos notáveis como Shaw são realizadas e avaliadas pela mídia por

64

http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/2008/06/09/idiota_no_pais_dos_absurdos_de_bern ard_shaw_ganha_montagem_da_cia_ludens_1347800.html

65 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u409080.shtml 66 Entrevista concedida a mim por email, setembro de 2008.

conta das escolhas dos encenadores, numa tentativa de colher as normas que informam, de alguma maneira, a prática desses profissionais.

**************************

O segundo ponto observado por Bassnett-McGuire (1985) se volta às expectativas do público, o que vem a suscitar alguns questionamentos: o que justificaria a encenação de Widowers’ Houses hoje? A que tipo de público interessaria? A peça ainda seria desagradável, como Shaw assim o desejou? E que tipo de repercussão teria no contexto de chegada?

Na medida em que fui respondendo a estas perguntas, pude concluir que o mote social inserido no enredo da peça (uma família que faz fortuna com o comércio de casas em condições sub-humanas pagas por uma população miserável em Londres no século XIX) não faz mais parte do cenário atual da cidade de Londres, e, por isso, essa temática parece não mais causar hoje uma repercussão social que justifique uma tradução para encenação próxima ao direcionamento apresentado originalmente no texto fonte, tal como sugere a prática normativa adotada por Zé Henrique de Paula67. Uma outra proposta possível seria a de enfatizar a questão das

relações humanas e familiares da peça – que Morgan (1974) aponta como um de seus méritos – colocando o caráter de denúncia social em segundo plano. Este procedimento caracterizaria uma releitura do texto parecida com aquela realizada por Nunez em O Idiota... Uma terceira possibilidade seria a de re- locar a ação para o Brasil atual, e, se assim fosse, o enredo necessitaria de modificações coerentes à realidade nacional, que, por conseqüência, alterariam profundamente os elementos presentes no texto, já que estes vêm carregados de marcas temporais/culturais e geográficas, tanto nas falas quanto nas

67 A montagem americana feita por Ron Russel e Godfrey L. Simmons Jr. é um bom exemplo

indicações. Para a realização de qualquer uma das três opções, a tradução cooperativa, descrita por Bassnett-McGuire (1985), seria um procedimento viável se, nesta pesquisa, fosse possível contar com uma encenação imediata do texto.

A construção do meu projeto de tradução, nesse momento, toca no dilema principal, apresentado no capítulo II, cujas abordagens distintas permeiam tanto os estudos do Drama quanto os da Tradução. Defino então, que o meu posicionamento é o de buscar produzir um texto que seria destinado à publicação, acreditando que essa decisão o direcione para estudos literários sobre a obra de Bernard Shaw, pertencente à fase inicial do Naturalismo, e com um provável público-leitor formado por estudantes de literatura e dramaturgia.

Documentos relacionados