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O processo de reformulação do currículo de Serviço Social em 1982 ocorreu com base nas transformações societárias a partir da década de 1960, com a instauração da ditadura e a tentativa de regulação social dos governos autoritários, os quais colocam novas demandas para os(as) assistentes sociais, com uma exigência de uma formação mais qualificada que desse respostas a essas novas demandas.

Juntamente com esse processo, há uma expansão significativa dos cursos de Serviço Social no Brasil e na América Latina, o que possibilita uma maior aproximação da profissão com a sua população usuária, fazendo com que esta comece a refletir criticamente sobre as contradições existentes na sociedade e pensar em uma reorganização curricular.

As discussões que permearam a construção do novo currículo giraram principalmente em torno de dois eixos temáticos: a) a questão da formação profissional do assistente social no Brasil estar inserida no quadro geral da

problemática universitária, expressando, de modo particular os

questionamentos da educação superior na sociedade brasileira; b) a formação profissional mantém uma relação com a prática profissional numa dada

sociedade, tendo como referência fundamental a realidade social (CASTRO;

TOLEDO, 2011, p. 8).

A primeira problemática citada pelas autoras diz respeito ao contexto em que a universidade pública federal vivenciava à época, de falta de autonomia, cortes de verbas,

estrutura enrijecida e vertical, distanciamento entre o conhecimento acadêmico e a realidade social do Brasil. Considerou-se que, inspirados nos movimentos de resistência dentro e fora da universidade, a formação em Serviço Social não poderia se dar sem refletir essas questões que rebatiam diretamente na qualidade da formação profissional.

A segunda problemática girou em torno da compreensão de que a profissão está inserida nas relações contraditórias da sociedade e precisa ter como referência a realidade social que a permeia, tendo-a como parâmetro de sua prática e formação profissional. Esse entendimento possibilitou à profissão repensar a dicotomia existente historicamente entre teoria e prática e problematizar concepções que iam por uma linha mecanicista42 e/ou idealista43.

Essa dinâmica de pensar a reforma curricular coloca para a formação profissional a necessidade de construir uma formação que esteja afinada aos interesses de seus(as) usuários(as) a partir uma um referencial teórico crítico, a compreensão de que a profissão está inserida na dinâmica de trabalho e a definição de um direcionamento social hegemônico para o Serviço Social.

A proposta de reformulação do currículo mínimo foi apresentada na XXI Convenção Nacional da, à época, Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social (ABESS) e aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), em 1982. Essa proposta contava com duas partes: o ciclo básico e o profissionalizante. O primeiro, buscava aprimorar o conhecimento sobre a realidade social e englobava as disciplinas de Filosofia, Sociologia, Psicologia, Economia, Antropologia, Formação Social, Econômica e Política do Brasil, Direito e Legislação Social. (CASTRO; TOLEDO, 2011)

O segundo ciclo englobava os conhecimentos sobre a prática profissional e a sua ação nas diferentes instituições. As disciplinas desse ciclo eram: Teoria do Serviço Social, Metodologia do Serviço Social, História do Serviço Social, Desenvolvimento de Comunidade, Política Social, Administração em Serviço Social, Pesquisa em Serviço Social, Ética Profissional em Serviço Social e Planejamento Social. (CASTRO; TOLEDO, 2011)

42Concebe a relação formação profissional/exercício profissional numa perspectiva de reiteração em que a

formação profissional desenvolve-se atrelada às demandas patronais da prática profissional, no mercado de trabalho; a preparação da profissão é confundida com a simples preparação para emprego; neste sentido, consideram-se exclusivamente as demandas reais, isto é, aquelas já estabelecidas socialmente, reduzindo-se o espaço ocupacional ao qual é feito pelo profissional no mercado de trabalho (CARVALHO et al, 1984, p. 117).

43Concebe a formação profissional independente do exercício efetivo da profissão, ignorando a especificidade da

prática profissional, as condições objetivas em que se dá o exercício da profissão numa dada sociedade. Trata-se de uma perspectiva utópica deslocada de bases históricas. Neste sentido, consideram-se exclusivamente as demandas que possam vir a emergir, numa perspectiva voluntarista, menosprezando os dados da própria realidade (CARVALHO et al, 1984, p. 117)

Na construção da proposta desse currículo mínimo, houve a participação das Escolas de Serviço Social existentes à época, ligadas à ABESS, comportando também contradições em seu interior, até pela própria separação entre ciclo básico e profissionalizante. Mas, apesar das lacunas existentes, esse currículo representou um avanço dentro da profissão no que tange à sua aproximação com a Teoria Crítica e com sua interlocução com seus usuários, desembocando, inclusive, na elaboração do Código de Ética de 1986.

A partir da identificação dessas lacunas, como deliberação da XXVIII Convenção da ABESS, começa-se o processo novamente de revisão do currículo de Serviço Social vigente desde 1982, culminando na elaboração das Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social, documento que direciona toda a formação em nível de graduação dos cursos de Serviço Social Brasileiro até os dias atuais.

As Diretrizes são resultado de uma construção coletiva da categoria, por intermédio de diversos debates realizados entre os anos de 1994 e 1996, promovidos pela ABESS (hoje Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS) e o Centro de Documentação e Pesquisa em Política Social e Serviço Social (CEDEPSS), com a colaboração do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e da Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO) (ABESS, 1997).

Foi realizada uma pesquisa diagnóstica que desembocou no documento “ABESS/CEDEPSS/ENESSO. Relatório Síntese dos impasses e tensões da formação

profissional. Sistematização dos relatórios das oficinas regionais. Maio, 1995”. Documento

este que deu subsídios para as discussões da XXIX Convenção Nacional da ABESS, realizada em Recife, no ano de 1995, na qual foi elaborada a proposta básica para a nova formatação curricular.

Este documento foi a base para as discussões junto com grupos de consultores que sistematizaram um segundo documento Proposta Básica para o Projeto de Formação Profissional: contribuições para o debate, que foi apresentado a categoria e subsidiou o debate com as unidades acadêmicas, compondo propostas destas diretrizes em 6 (seis) relatórios de oficinas regionais e sistematizados pela diretoria da ABESS e representação da ENESSO e CFESS, grupo de consultores da área e consultoria pedagógica que resultou na Proposta Nacional do Currículo Mínimo para o curso de Serviço Social , apreciado na II Oficina Nacional de Formação Profissional e aprovado em Assembleia Geral da ABESS ocorridas em 7 e 8 de novembro de 1996 na cidade do Rio de Janeiro/RJ. (GUELLI, 2013, p. 41)

Já em dezembro de 1996, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (Lei 9394), o que favoreceu o processo de normatização das diretrizes gerais para o Curso de Serviço Social. A ABESS então, encaminha a nova proposta para o Conselho Nacional de

Educação do Ministério da Educação (CNE/MEC), estabelecendo uma base comum nacionalmente para os cursos de graduação em Serviço Social, de acordo com o qual, cada Instituição de Ensino Superior (IES) constrói o seu currículo pleno.

O que impulsiona o processo de revisão curricular do Serviço Social na década de 1990, é a compreensão da profissão “enquanto especialização do trabalho coletivo, inserido na divisão social e técnica do trabalho”, diante das transformações societárias impressas nessa década, determinadas “pela reestruturação produtiva, pela reforma do Estado e pelas novas formas de enfrentamento da questão social” (ABEPSS, 1997, p. 60), a partir das quais se constroem os pressupostos44 que direcionam a formação profissional.

Os núcleos de fundamentação que constituem a formação profissional e traduzem os conhecimentos que são considerados indispensáveis para a profissão, são: núcleo de fundamentos teórico-metodológico da vida social; núcleo de fundamentos da formação sócio- histórica da sociedade brasileira; e núcleo de fundamentos do trabalho profissional45. Estes

núcleos são concebidos de forma indissociável, tendo como eixo fundante da formação profissional a “questão social” e

[...] afirmam-se como eixos articuladores da formação profissional pretendida e desdobram-se em áreas de conhecimento que, por sua vez, se traduzem pedagogicamente através do conjunto dos componentes curriculares,

44 “Os pressupostos norteadores da concepção de formação profissional, que informa a presente revisão curricular,

são os seguintes: 1. O Serviço Social se particulariza nas relações sociais de produção e reprodução da vida social como uma profissão interventiva no Âmbito da questão social, expressa pelas contradições do desenvolvimento do capitalismo monopolista; 2. A relação do Serviço Social com a questão social – fundamento básico de sua existência – é mediatizada por um conjunto de processos sócio-históricos e teórico-metodológicos constitutivos de seu processo de trabalho; 3. O agravamento da questão social em face das particularidades do processo de reestruturação produtiva no Brasil, nos marcos da ideologia neoliberal, determina uma inflexão no campo profissional do Serviço Social. Esta inflexão é resultante de novas requisições postas pelo reordenamento do capital e do trabalho, pela reforma do Estado e pelo movimento de organização das classes trabalhadoras, com amplas repercussões no mercado profissional de trabalho; 4. O processo de trabalho do Serviço Social é determinado pelas configurações estruturais e conjunturais da questão social e pelas formas históricas de seu enfrentamento, permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado, através das políticas e lutas sociais (ABEPSS, 1997, p. 60).

45 Núcleo de fundamentos teórico-metodológicos da vida social, que compreende um conjunto de fundamentos

teórico-metodológicos e ético-políticos para conhecer o ser social enquanto totalidade histórica, fornecendo os componentes fundamentais para a compreensão da sociedade burguesa, em seu movimento contraditório; Núcleo de fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira que remete à compreensão dessa sociedade, resguardando as características históricas particulares que presidem a sua formação e desenvolvimento urbano e rural, em suas diversidades regionais e locais. Compreende ainda a análise do significado do Serviço Social em seu caráter contraditório, no bojo das relações entre as classes e destas com o Estado, abrangendo as dinâmicas institucionais nas esferas estatal e privada; Núcleo de fundamentos do trabalho profissional que compreende todos os elementos constitutivos do Serviço Social como uma especialização do trabalho: sua trajetória histórica, teórica, metodológica e técnica, os componentes éticos que envolvem o exercício profissional, a pesquisa, o planejamento e a administração em Serviço Social e o estágio supervisionado. Tais elementos encontram- e articulados por meio da análise dos fundamentos do Serviço Social e dos processos de trabalho em que se insere, desdobrando-se em conteúdos necessários para capacitar os profissionais ao exercício de suas funções, resguardando as suas competências específicas normatizadas por lei (MEC, 1999).

rompendo, assim, com a visão formalista do currículo, antes reduzido a matérias e disciplinas. Esta articulação favorece uma nova forma de realização das mediações – aqui entendida como a relação teoria-prática – que deve permear toda a formação profissional, articulando ensino – pesquisa – extensão. (ABESS, 1997, p. 63)

A proposta dessa nova lógica curricular é que se consiga superar a fragmentação no processo de formação e que permita uma maior integração entre os(as) sujeitos curriculares, de forma que reflita criticamente sobre a conjuntura histórica e construa respostas profissionais qualificadas.

As diretrizes curriculares têm como princípios:

1. Apreensão crítica do processo histórico como totalidade; 2. Investigação sobre a formação histórica e os processos sociais contemporâneos que conformam a sociedade brasileira, no sentido de apreender as particularidades da constituição e desenvolvimento do capitalismo e do Serviço Social no país; 3. Apreensão do significado social da profissão desvelando as possibilidades de ação contidas na realidade; 4. Apreensão das demandas - consolidadas e emergentes - postas ao Serviço Social via mercado de trabalho, visando formular respostas profissionais que potenciem o enfrentamento da questão social, considerando as novas articulações entre público e privado; 5. Exercício profissional cumprindo as competências e atribuições previstas na Legislação Profissional em vigor. (ABEPSS, 1997, p. 7)

Essa proposta das Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social deu base para as Diretrizes Curriculares finalizadas em 1999, que resultou no Parecer CNE 492/2001, aprovado em 03 de abril de 2001. No entanto, é importante ressaltar que, no momento da aprovação do parecer, algumas alterações foram feitas que, de acordo com Guelli (2013, p.45), afetaram principalmente a fundamentação teórica da formação profissional "impregnando na formação do assistente social o legado da política do governo Fernando Henrique Cardoso e da lógica neoliberal: formação profissional em nível superior de caráter tecnicista para resolutividade imediatista”, reduzindo drasticamente a proposta pedagógica originalmente construída, processo que até os dias atuais é alvo de duras críticas da ABEPSS e das outras entidades de representação da categoria.

Diante do exposto, é fundamental dizer que a construção das diretrizes curriculares na década de noventa foi um processo de construção coletiva da profissão, resultado de grande mobilização que possibilitou mudanças profundas no Serviço Social no que diz respeito à organização e consolidação de sua formação. No entanto, algumas questões ainda devem ser colocadas, no que se refere à formação profissional. Acreditamos que há a necessidade de aprofundamento e atenção do Serviço Social brasileiro para questões como as de gênero,

raça/etnia, sexualidade, geração, etc., questões que consideramos ser imprescindíveis para a compreensão da realidade social brasileira e que devem ser transversais em todo o currículo.

Dito isto, vamos ao Serviço Social na UFBA.