• Nenhum resultado encontrado

A construção identitária na história

Capítulo 2 As identidades culturais imbricadas na Educação de Jovens e

2.1 A construção identitária na história

“O n o rd e s tin o e rra n te q u e , e d ific a um a d a s m a io re s c id a d e s d o P la n e ta e fa z B ra s ília , a m a is b e la u rb e d a m o d e rn id a d e . N ã o a c o n s tró i c o m a p la c id e z e o p ra z e r c o m q u e te c e u m a re d e ou p o e m a d e c o rd e l, n e m c o m a a le g ria c o m q u e p la n ta u m pé d e m ilh o ou in v e n ta p a s s o s n o v o s p a ra o b u m b a -m e u -b o i. A c o n s tró i s o b a b s o lu ta p re s s ã o , a lv o d e v io lê n c ia , d e a u to rita ris m o , d e m a s s a c re s - m as s u p e ra tu d o e a c o n s tró i p o rq u e a c re d ita q u e e s tá c ria n d o a lg o p a ra si, q u e a T e rra P ro m e tid a s e fa z c o m a s p ró p ria s m ã o s .” C A R V A L H O , V la d im ir. Conterrâneos Velhos de Guerra. 19 9 7 .

P e n s a p e n s a p e n s a m e n to , te m s u s té m S u s te n to , fé c a fé c o m pão, C o m p ã o c o m p ã o c o m p a n h e iro , P á ra p a ra d e iro , M ã o irm ã o , irm ã o L in h a lin h a d e m o n ta g e m , a c o r a c o ra g e m

C o ra c o ra ç ã o , a b e c ê a b e c e d á rio O p e ra o p e rá rio , pé no pé no c h ã o B U A R Q U E , C h ic o . N O V E L L I. Linha de Montagem. 19 8 0 .

O termo construção, pensado na elaboração desse trabalho e na substituição do vocábulo processo, inicialmente explorado, ganha contornos de um fazer que solicita o trabalho coletivo, afinal construir na perspectiva da individuação é limitar a expansão do potencial, a exemplo do criativo-arquitetônico e artístico-cultural. Essa concepção, pode/deve se debruçar sobre a percepção dos contextos da construção da cidade de Brasília, do seu entorno, como Ceilândia, no que se refere à capacidade dos sujeitos-trabalhadores, na grande maioria nordestinos, de aproximarem suas identidades e partilharem suas histórias num grupo de trabalho. Essa mobilidade para a unidade na materialização da aceleração da produção fez dessa gente e de suas identidades uma cultura para a vida em coletivos. Pessoas que transformaram seus sonhos, desejos, carregados na caçamba de caminhões - novos “paus de arará” - em vontade de desenvolvimento pessoal, social, progresso

econômico, sustento da família, que ficou na terra de origem. Passaram a fazer a experiência do coletivo para mobilizar uma convivência que minimizasse a falta do outro, em grande parte, da sua mulher e filho(s). A "bela urbe da modernidade”, desenhada na crônica poética de Carvalho (1997), não se arquitetaria com a práxis da individuação, ainda que carecesse da ideologia de "Marquês de Pombal” - ministro do Império Português - em construir uma nova capital imperial no centro do Brasil Colonial ou quando plasmada nas ideias de um grande arquiteto pós- moderno, Niemeyer ou idealizada num projeto, ganhador do concurso em 1957, urbanístico da Nova Capital, Lúcio Costa. Embora o pensamento, as ideias de um e outro individuo, ideólogo, ousado e capacitado movimentem o fazer, a prática convida a uma disposição de socialização, ou seja, inevitavelmente, o trabalho requer braços e mãos orquestrados pela sensibilidade e inteligência dos sujeitos trabalhadores, que numa coletividade reconhecem a força e dinâmica da história da produção. Destarte, os nordestinos palmearam as terras do Planalto Central, entrecruzando suas histórias e revelando identidades que recuperavam e atualizavam/modificavam o seu tempo-espaço em novas expressões/manifestações das práticas humanas em sua construção (HARVEY, 2004). Movimento que registra novos significados na existencialidade dessa gente e formaliza um convite à construção de um outro novo espaço e tempo em que atuem diversos atores na obra da criação. Essa concepção de tenacidade coletiva delineia a reconfiguração do viver em grupo e trabalhar na perspectiva da colaboração para alinhar as ações em direção de produções e/ou resultados satisfatórios.

À medida que se esboça a história da migração dos nordestinos e de outras regiões do nosso país no tempo-espaço da construção de Brasília, se identificam/comunicam as raízes culturais desse povo. Entre o tempo da labuta e das memórias, considerando o distanciamento dos seus familiares e amigos, fazem emergir um culto às manifestações do seu espaço de origem e à expressão do fazer cultura em terras distantes. Nesse contexto, surge a comunicação pela musicalidade, que imprime à letra, sobre a história de seu lugar, sua gente e sua saga cultural, um momento de transcendentalidade do tempo real para o imaginário, o virtual. Nessa mesma perspectiva, a escrita, por parte daquele(s) que a domina(m), transforma(m) as saudades, dores, choros contidos, expectativas do progresso, pensamentos no futuro incerto, resgate das pessoas queridas/familiares em poesia de vida, a fim de superar, na construção material que realiza, de modo

coletivo, as incertezas e inseguranças. Construía-se nesse cenário do Centro-Oeste nordestino, a riqueza de comunicação de culturas, mesmo por que outros migrantes de diferentes regiões do Brasil vinham com a crença de ganhar/lucrar condições favoráveis para ofertar à sua família. Desse modo, a história do nascimento de Brasília coincidia com um outro/novo tempo-espaço para o nordestino comunicar sua identidade e, distante de seu berço memorial e cultural, tornar-se protagonista na Capital do Brasil da valorização do acervo, da produção de cultura de seu povo. Concomitantemente a essa pluralidade de manifestações culturais, despontava na tenra história de Brasília um fenômeno de hibridismo, em que ocorre um encontro de culturas, ainda que majoritariamente representada pelo povo nordestino. A cultura híbrida implica na abertura e acolhimento de um diálogo de co-existência das linguagens popular e culta-técnico-científica, esta última representada por um grupo pequeno de pessoas que estava em Brasília para conduzir, orientar, analisar e tomar decisões técnicas, convivendo com suas contradições artísticas, literárias e comunicacionais (CANCLINI, 2013). Reconhecendo que a história, por longos séculos e milênios se escreveu em páginas dogmatizadas por culturas dominantes e inscreveu um jeito de dominar nas relações sociopolíticas, econômicas e culturais, a concepção de forma de cultura híbrida acolhe/compreende o choque entre as linguagens na ação de aproximar os processos socioculturais, circunscritos até a pós-modernidade em espaços segmentados. Trata-se de uma mentalidade e comportamento que provoca uma combinação de culturas, que se entrecruzam, com a finalidade de possibilitar novas práticas, materialidades - cunhadas em objetos e ritos múltiplos - e estruturas interculturais, atentas e ocupadas em gerir os conflitos dessa interculturalidade.

O tempo-espaço da cultura híbrida passa a comunicar-se com a existencialidade dos sujeitos que a produzem e se reconhecem nesse diálogo intercultural, isso porque cada humano carrega em si o entendimento de projeto existencial, enquanto sentido de razão no mundo, e na perspectiva de contingência sartreana, poderá não admitir e tampouco afirmar um modelo rígido, hegemônico de cultura que represente, por excelência, a natureza humana. Essa proposta de vida diante da cultura ou qualquer outro fazer e manifestação humana no mundo importa reconhecer que há uma ausência de finalidade pré-determinada para a existência humana. Partindo dessa premissa, identifica-se o hibridismo cultural como possibilidade de um novo fazer, que se constrói, estabelece na história humana no

diálogo que transcende o modelo incontestável de produção econômica vigente: concorrente, competitivo, conquistador e reprodutor de ideias e matérias, negando, portanto, sua predeterminação histórica. A negação do sentido predeterminado na história, confere liberdade aos sujeitos, que na sua escolha podem/devem romper com o caráter de essencialidade para o qual foram criados, segundo concepções dogmáticas, estigmatizadas pela mente para dar sentido à existência, caso cumprida a sua função, seu papel no mundo, no tempo-espaço também estabelecidos por uma ordem racional e condutora da tarefa de materializar as coisas de modo previsível. Nesse contexto, a identidade é a marca da existencialidade de cada sujeito, incorporada pelos fazeres no mundo, agregada pela história experimentada e cunhada ao longo da existência. Todavia, que se construiu na tecitura de relações, na ambiência de uma coletividade que participa dessa história, portanto imbricada com a existência de outros, ainda que, possa não estar determinada por esses pares da relação. Na perspectiva filosófica do existencialismo sartreano, de que a "existência precede a essência”, nega-se a concepção universal de natureza humana. Supostamente, construída por uma lógica racional que confere sentido a um fazer estabelecido, padronizado no mundo, a exemplo da cultura, como expressão de toda natureza humana que tocaria tudo e a todos numa mesma configuração de realizações. Na existencialidade cunhada por Sartre (1979), inversamente à concepção de generalização/universalização da natureza, dos fazeres e das expressões humanas, importa reconhecer no próprio ser humano, na vida que herdou, mesmo pelas determinações históricas, a capacidade de moldar a sua existência. Portanto, possibilitar que a existência ganhe o caráter da liberdade, para fazer escolhas, assumir projetos existenciais, ainda que submetidos a alguma determinação, para manifestar sua identidade, que identifica e manifesta no lugar comum da coletividade a unicidade da existência.

Na relação entre a história dos nordestinos, a questão da existencialidade na perspectiva filosófica sartreana e a estada dessa gente em Brasília, mobiliza-se uma identidade trabalhadora que destaca o sentido da coletividade. Para reforçar essa associação de assuntos, a alusão ao recorte do diálogo de Jean Paul Sartre com Daniel Cohn-Bendit, publicado na obra Maio de 68, confere significado à existência e faz sua leitura no engajamento político, que não escapa ao coletivo social. A pujança/força das manifestações de rua, por parte de estudantes - jovens e adultos - na França de 1968 - Rua no Quartier Latin - encorpando um movimento político

de consciência pela queda do regime vigente e implicando no movimento operário por suas reivindicações, dá o tom de força de um coletivo. O fato de serem estudantes, numa realidade sociopolítica de lutas operárias, talvez não incomodasse o poder daquela época, mas pensar na capacidade de aplicarem/mobilizarem seus objetos de estudo e transformarem-nos numa ação política de rua, mesmo massiva, reforça o movimento operário e ressignifica a história existencial do estudante. Nesse contexto, a existência pulsa de sentido na vida desses jovens e adultos, que se permitiram experimentar a liberdade de manifestar-se contra o regime, não obstante ao caráter da contingência da luta operária que predeterminaria a saída dos jovens às ruas. Essa singularidade que explode na existência nega também a suposta essência social do estudante, numa predeterminação, que deve estar para os estudos, focado no aprofundamento de leituras e numa escrita, quiçá distante da realidade política, portanto, ocupado com seu crescimento acadêmico, direcionado pela cátedra. Uma posição bastante confortável para os governantes, até que se faça uma reflexão sobre o sentido da natureza humana no mundo e sua responsabilidade existencial em moldar-se, articula-se para responder situações- problema emersas de uma realidade. Traçando uma linha transversal com a chegada dos nordestinos nas terras do Planalto Central, ocupando consideravelmente a região, até então não desbravada, ainda que sob o foco do trabalho e suposto progresso econômico, uma contingência do modelo de produção capitalista, a escolha/decisão de deixar seu território origem ressignificou sua existência. Uma nova resposta era dada ao estranhamento de uma existencialidade que foi capaz de romper com a pretensa determinação de viver em condições desfavoráveis, sobretudo no interior do Nordeste e, mesmo nas áreas centrais dessa região. Certamente, não tinham a amplitude da visão para aquilo que esperava por eles, para além da dureza do trabalho, ou seja, a pressão por parte de construtoras e seus chefes encarregados de monitorá-lo, uma marca de autoritarismo, violências morais/trabalhistas e até físicas. Mas, fizeram de sua história existencial uma escolha por superar quaisquer adversidades, contingências no objetivo de construir uma Capital, não qualquer uma, mas a do Brasil - Brasília - acreditando que estão criando algo para si, a "Terra Prometida”, que se faz com as próprias mãos de quem assim escolheu/decidiu viver e, nela, pode desfrutar de condições de dignidade.

Figura 3 - A equipe de filmagem de Conterrâneos confraterniza com trabalhadores no topo do Edifício do Banco Central ainda em construção (1997).

Fonte: Vladimir Carvalho. Conterrâneos Velhos de Guerra. Brasília: GDF/Secretaria de Cultura e Esporte/ Fundação Cultural do DF, 1997. p. 163.

Vivia-se a negação/fuga dos migrantes da velha política, da tirania econômica dos “terra-tenentes” e da indústria agropecuária que os expulsou de seu lugar, terra de origem, para a qual muitos desejavam retornar, não mais sair e lá sepultados (CARVALHO, 1997, p. 7). Na interlocução entre os nordestinos, sudestinos e de outras regiões do Brasil e os estudantes jovens e adultos da França de 1968, na perspectiva da existencialidade, se evidencia o entendimento, internalizado, de modo espontâneo da caracterização da contingência na vida. Esses sujeitos contrariam a predeterminação de realizar aquilo para o qual suas vidas, supostamente na condição de linearidade, devem obediência ao modelo previsível de essencialidade. Assumindo o caráter da contingência, trataram-se de experiências que expressaram a perspectiva da construção de uma nova identidade no curso de sua história, que emergiram de uma espontaneidade, singular, da liberdade de poder escolher, ser ator na/da história, de decidir incorporar a ação política protagonista. Essa ação, deliberada pela existência, ressignifica o tempo- espaço da história e oportuniza, por meio de outro projeto de vida, o sentido da existência pelo engajamento político na história, de consonância coletiva, uma marca que adere à existencialidade. Trata-se, portanto, de uma construção identitária coletiva, em que os sujeitos reconhecem os seus pares na construção de um conhecimento coletivo.

Documentos relacionados