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3.1 O QUE SÃO RISCOS DE DESASTRES

3.1.1 A construção (social) do risco

Explorada de maneira a subsidiar a teoria de base da pesquisa no capítulo 2, a construção do risco e seus consequentes reflexos são fruto de complexas relações derivadas de um modelo desenvolvimento socioeconômico que tem o seu embasamento fundado a partir dos processos de industrialização e de urbanização, revelando-se pelo país com caraterísticas e consequências próprias (MARICATO, 2001; 2003; MOREIRA DE CARVALHO, 2006; MARANDOLA JR et al., 2013).

Como delineado anteriormente, as transformações ocorridas pelo mundo a partir do século XVII desencadearam uma concentração dos meios de produção e da força de trabalho que deram origem as aglomerações espaciais urbanas (CASTELLS, 2009), de tal sorte que a industrialização se tornou a ferramenta indutora “das questões referentes à realidade urbana, como o crescimento e a planificação das cidades” (SILVA, 2010, p.42).

No Brasil a formação das cidades se deu em um primeiro momento disciplinada pelos desígnios impostos por Portugal, por meio da intenção da defesa da terra dos invasores. Sequencialmente, também sobre influência da Coroa, ocorreu orientada pelos ciclos econômicos provenientes do meio rural (REIS, 2000), quadro este que figura até a segunda metade do século XIX, quando o fim do tráfico de escravos (e a abolição da escravatura), a chegada dos imigrantes, a regulamentação do trabalho urbano (não extensiva ao campo), o estabelecimento da rede ferroviária, o incentivo à industrialização, o desenvolvimento de um sistema de crédito, entre outras mudanças promoveram uma revolução na economia nacional, dando subsídios para o início de um novo momento para a ocupação e consequente urbanização das cidades, impulsionando o movimento migratório campo-cidade (MARICATO, 2003; COSTA, 2007; SILVA, 2010).

Moreira de Carvalho (2006, p.7) afirma que estes fenômenos formaram a base de profundas mudanças estruturais nas cidades, ao passo que transformaram a “antiga sociedade de base agrária em um país urbano industrial moderno”, de

modo que se deu viabilizada por uma política desenvolvimentista, como a promovida durante o governo de Juscelino Kubitschek (SANTOS, 2014), estabelecida principalmente por um processo de substituição de importações do período pós- segunda guerra até os anos 70.

Observa-se também que os avanços deste período foram dinâmicos, complexos e diversificados, contudo aconteceram a um custo alto, sobretudo aos mais pobres, devido a se realizarem de maneira desigual e excludente, impedindo que reformas sociais fossem desencadeadas e que a riqueza fosse mais bem distribuída (MOREIRA DE CARVALHO, 2006).

Tal cenário concitou a ocupação das cidades brasileiras acontecer de maneira exponencial, ao passo que o emprego “deixou” o campo e foi deslocado para a cidade, conforme Santos (2008) constata:

Entre 1940 e 1980, dá se verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira. Há meio século atrás (1940), a taxa de urbanização era de 26,35%, em 1980 alcança 68,86%. Nesses quarenta anos, triplica a população total do Brasil, ao passo que a população urbana se multiplica por sete vezes e meia (...). Entre 1960 e 1980, a população vivendo nas cidades conhece aumento espetacular: cerca de cinquenta milhões de novos habitantes, isto é, um número quase igual a população do País em 1950. Somente entre 1970 e 1980, incorpora-se ao contingente demográfico urbano uma massa de gente comparável ao que era a população total urbana em 1960 (p. 31-32).

Segundo Maricato (2001, p. 17), nesta conjuntura de acelerada ocupação urbana, as cidades tentavam se estabelecer de maneira sadia, porém tinham que dar resposta aos problemas sociais e ainda sofriam pressão dos mais poderosos para se conformarem segundo seus interesses:

Realizavam-se obras de saneamento básico para a eliminação das epidemias, ao mesmo tempo em que se promovia o embelezamento paisagístico e eram implantadas as bases legais para um mercado imobiliário de corte capitalista. A população excluída desse processo era expulsa para os morros e franjas da cidade. Manaus, Belém, Porto Alegre, Curitiba, Santos, Recife, São Paulo e especialmente o Rio de Janeiro são cidades que passaram por mudanças que conjugaram saneamento ambiental, embelezamento e segregação territorial, nesse período (p. 17).

Deste modo, a segregação territorial promovida pela política de classes sociais em combinação com a ausência de elementos de regulação e controle do uso e da ocupação do solo eficazes, somados com as usurpações do capitalismo praticado no Brasil, acabaram por estabelecer uma condição de vulnerabilidade

social impar no país, ocasionando em uma exposição ao risco, sobretudo dos mais pobres, com características deveras profundas, em que a resolução dos problemas hoje existentes é de enorme complexidade (MARANDOLA JR et al., 2013). Nesta perspectiva envolta da vulnerabilidade estabelecida no Brasil, Maricato (1995) afirma que:

o processo de urbanização, acelerado e concentrado, marcado pelo "desenvolvimento moderno do atraso", cobrou, a partir dos anos 80, após poucas décadas de intenso crescimento econômico do país, um alto preço, através da predação ao meio ambiente, baixa qualidade de vida, gigantesca miséria social e seu corolário, a violência. (p. 14-15).

Como consequência, além dos riscos e dos desastres verifica-se que a segregação urbana é uma das facetas mais importantes da desigualdade social, ao passo que a dificuldade de acesso aos serviços e infra-estrutura urbanos somam-se a “menos oportunidades de emprego, menos oportunidades de profissionalização, maior exposição à violência (marginal ou policial), discriminação racial”, dentre outros (MARICATO, 2003, p. 152), estabelecendo uma condição de reversão de cenário aparentemente utópica aos mais pobres. Por outro lado, aqueles com melhores condições financeiras conseguem se estabelecer em áreas com uma exposição aos riscos consideravelmente menor e por consequência com acesso a insumos sociais que o proporcionam uma qualidade de vida melhor (JANCZURA, 2012).

Explicitando essas relações entre os afetados pelos desastres com a desigualdade social, o estudo de Júnior, Doustdar e Cortesi (2011) sobre a vulnerabilidade de municípios paranaenses aos riscos de desastres naturais sugere que pela grande similaridade do mapa quantitativo de desastres por município com os mapas de assentamentos precários, a vulnerabilidade socioeconômica está diretamente relacionada com a vulnerabilidade física e ambiental, fato este que corrobora com o pensamento de Torres (2000), que entende que existe uma sobreposição entre as áreas de degradação ambiental e social e de Marandola Jr. e Hogan (2005), que constatam que a vulnerabilidade numa dimensão ampla é um atributo definido pelas condicionantes ambientais (biofísicas – naturais) em conjunto com os recursos socioeconômicos.

Portanto, Veyret e Richemond (2007a) definem que as condições de risco e consequentemente de vulnerabilidade são indissociáveis da política, ao passo que a

organização do território, a repartição de bens, o estabelecimento de regulamentações, dentre outras ferramentas de promoção da resiliência são os meios pelos quais são feitas apostas no futuro, os quais culminam na assunção de riscos.

Dessa forma, Cunico e Oka-Fiori (2014) compreendem que a superação dos desafios resultantes do constructo social atual está alicerçada em incorporar a percepção do risco e das vulnerabilidades aos mecanismos de promoção da adaptação e da resiliência, para que ações de planejamento e de governança sejam aprimoradas, em alinhamento com projeções lineares que levem em consideração a dinâmica das relações e os possíveis imprevistos e incertezas, característicos de sistemas desiguais e complexos.

Faz-se necessário também considerar que em paralelo as circunstâncias de produção e agravamento das vulnerabilidades, a intensificação e a instabilidade das ameaças relacionadas às mudanças climáticas (PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS, 2014), configuram-se como um propulsor no desencadeamento de desastres (HOUGHTON, 2003).